Normas híbridas (material e processual) e o princípio da retroatividade benéfica

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01/02/2018 às 18:27
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CAPÍTULO III – O ORDENAMENTO JURÍDICO

3.1 – Disposições Gerais

A esta altura, convém enfrentar a pergunta problema deste estudo, que consiste na indagação sobre: como considerar o postulado constitucional em relação às normas híbridas (de natureza penal e processual penal), quando confrontadas com o princípio da retroatividade benéfica?

Observa-se que na doutrina é possível encontrar o ensinamento do professor Nestor Távora, o qual, ao seu turno reconhece a importância da presente temática, ao consiguinar que: “Questão palpitante diz respeito à solução para aplicação da lei mista (ou híbrida), entendida como aquela que comporta aspectos de direito material e direito processual.” (TÁVORA & ROQUE, 2013, p. 11)

Problematizando, denota-se que encontram-se em cena um princípio constitucional, a norma penal material e a norma penal processual, sendo que o princípio, por ser de índole constitucional possui natureza transcedental, todavia, por ser mais difuso do que uma norma-regra, encontra suas condicionantes nas normas infraconstitucionais. E, neste plano é que reside em tese uma provável antinomia, no mínimo uma antinomia aparente (conforme retroanalisado no capítulo II, item 2.3).

É sabido que, às normas, penais-processuais penais e às normas em geral integram o sistema e devem coexistir harmonicamente, sendo certo que eventuais antinomias devem ser expurgadas pelo sistema com os mecanismos nele já previstos. Logo, na sequência passa-se a analisar como deverá ocorrer esta interação normativa.

3.2 – Modos de Aplicação da Norma Híbrida

A vista do exposto, antes de se aprofundar em questões doutrinárias, importa colacionar o texto do artigo 2º do Decreto-Lei nº 3.689 de 3 de outubro de 1.941 (Código de Processo Penal), o qual estabelece que: “Art. 3.º A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da valiade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.”

Como cediço, referida norma trata do princípio do tempus regit actum, ou princípio da aplicação imediata. E, avaliando a importância deste instituto, o professor Júlio Fabbrini, aduz que: “o fundamento lógico desse princípio é o de que a lei nova presumidamente é mais ágil, mais adequada aos fins do processo, mais técnica, mais receptiva das novas e avançadas correntes do pensamento jurídico.” (MIRABETE, 1997, p. 58)

Para o professor Fernando da Costa, não resta dúvidas de que às normas processuais penais diferenciam das penais, pois, para referido autor: “[...] a lei processual penal tem aplicação imediata. [...] Infere-se, pois, que a lei processual penal não tem, como já se pensou, efeito retroativo”. (TOURINHO FILHO, 1995)

Por outro lado, é certo que o entendimento retroexposto, embora largamente predominante, não é majoritário. Eis que, para os professores Alexandre Cebrian Araújo Reis e Victor Eduardo Rios Gonçalves, a norma mista deverá retroagir se for mais benéfica ao agente. Por pertinente à análise, segue abaixo o texto atinente às normas híbridas:

São aquelas que possuem conteúdo concomitantemente penal e processual, gerando, assim, consequências em ambos os ramos do Direito. Em tais casos, em atenção à regra do art. 5º, XL, da Constituição Federal, a lei nova deve retroagir sempre que for benéfica ao acusado, não podendo ser aplicada, ao reverso, quando puder prejudicar o autor do delito cometido antes de sua entrada em vigor. (REIS & GONÇALVES, 2015, p. 40)

Referidos professores seguem aduzindo no sentido que às normas híbridas mais severas não retroagirão. Neste caso, citam os exemplos de possível alteração legislativa no instituto da prescrição e decadência (norma de direito material) que por se referir à possibilidade de extinção da punibilidade, possuem conteúdo de natureza processual penal; bem como, menciona possível alteração mais gravosa no instituto da suspensão condicional do processo – artigo 89 da Lei nº 9.099/1.995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), não deveria retroagir. (idem, ibidem). Contudo, referidos autores tratam do tema “normas híbridas ou mistas” em apenas três parágrafos, sendo que no primeiro deles demonstram serem favoráveis à retroatividade da lei mista e ao não especificarem quanto ao aspecto material, leva a crer que também deverá retroagir.

Há também, o posicionamento de Aury (LOPES JR., s. a., p. 214 apud TÁVORA e ROQUE, 2013, p. 11) no sentido da admissibilidade da retroatividade não apenas da norma híbrida, mas também da norma processual propriamente dita, bem como há posicionamento contrário dos professores Nestor Távora e Fábio Roque, in verbis:

Percebemos que no Direito Processual Penal, não vigora o princípo da retroatividade ou princípio da retroatividade benéfica (art. 5º, XXXIX e XL, CF e art. 2º, CP), como ocorre no Direito Penal. Assim, benéfica ou maléfica, a lei processual será aplicada de pronto. Em sentido diverso, minoritário na doutrina, Aury Lopes Jr. sustenta que à norma processual penal aplica-se a regra da retroatividade benéfica, segundo a mesma rotina da lei material. (TÁVORA & ROQUE, 2013, p. 11)

Um dado interessante, reside na observação do professor Heráclito Antônio, para quem: “o princípio geral do efeito imediato é uma antinomia relativamente à retroatividade.” (MOSSIN, 2005, p. 9). Logo, surge a necessidade de resolver o problema, atribuindo-se tramento específico para a norma mista, pois, a norma penal é retroativa, mas a processual penal não o é.

Com efeito, já antecipando o entendimento ora adotado, destaca-se que em relação às normas híbridas, duas soluções são possíveis, sendo certo que para tanto o hermeneuta deverá focar no aspécto material da norma, portanto, conforme destacou o professor Nestor Távora, “se for benéfico, retroagirá, e a parte processual da lei terá aplicação a partir da sua vigência, já que os atos processuais eventualmente já praticados reputam-se válidos” (TÁVORA & ROQUE, 2013, p. 11). Por outro lado, destacou: “sendo maléfico, não há retroação, e aparte procerssual da lei só é aplicada aos crimes ocorridos após a sua entrada em vigor, ou seja, nenhum aspecto da norma é aplicado aos delitos que lhe são anteriores” (idem, ibidem).

Posto isto, referido posicionamento parece mais adequado para o tratamento específico das normas híbridas.

3.2.1 – Jurisprudência

No presente tópico, cabe frisar que o tema ora escalpelado encontra-se pacificado atualmente pela jurisprudência, como se observa no julgado colacionado abaixo:

TJ-RJ - HABEAS CORPUS HC 00509831820118190000 RJ 0050983-18.2011.8.19.0000 (TJ-RJ)

Data de publicação: 20/05/2013

Ementa: HABEAS CORPUS. DOIS HOMICÍDIOS QUALIFICADOS PELO EMPREGO DE RECURSO QUE DIFICULTE A DEFESA DO OFENDIDO, UM CONSUMADO E OUTRO TENTADO, EM CONCURSO MATERIAL (ART. 121 , § 2º , IV , E ART. 121 , § 2º , IV , C.C ART. 14 , II , N/F DO ART. 69 , TODOS DO CP ). ACUSADO QUE, APESAR DE CIENTIFICADO DA PRONÚNCIA E DO LIBELO, SE EVADE DO SISTEMA PRISIONAL, PERMANECENDO EM LOCAL INCERTO E NÃO SABIDO. PROCESSO SOBRESTADO, NOS TERMOS DO DISPOSTO NA ANTIGA REDAÇÃO DO ART. 451 , § 1º , DO CPP . DECISÃO DO JUÍZO DO PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO QUE, EM RAZÃO DO ADVENTO DA LEI N.º 11.689 /08 QUE DEU NOVA REDAÇÃO AOS ARTS. 420, 422 E 431 DO CÓDIGO DE RITOS , DETERMINOU A INTIMAÇÃO EDITALÍCIA DO RÉU PARA O JULGAMENTO PERANTE O TRIBUNAL DO JÚRI. NORMAS DE NATUREZA HÍBRIDA, QUE NÃO PODEM RETROAGIR EM PREJUÍZO DO ACUSADO. ORDEM QUE SE CONCEDE. 1. A nova redação de dispositivos do Código de Processo Penal introduzida pela Lei n.º 11.689 , de 09/06/2008, que entrou em vigor em 09/08/2008 estabeleceu a possibilidade de intimação editalícia da decisão de pronúncia do acusado solto que não for encontrado (art. 420 e seu parágrafo único), bem assim passou a permitir, em idêntica situação, que o réu seja intimado por edital para a sessão de instrução e julgamento (art. 431, c.c. o art. 420, parágrafo único) e que seja ele, caso não compareça, julgado à revelia pelo Tribunal do Júri (art. 457). 2. Cuidando-se, portanto, de normas de natureza processual e material, eis que influem no curso do prazo prescricional porquanto restará ele interrompido em caso de condenação do acusado pelo júri , é de se reconhecer a irretroatividade dos referidos dispositivos legais, que, por serem mais gravosos, não têm aplicação aos delitos cometidos anteriormente à sua vigência, impondo-se, pois, a anulação do processo a partir da decisão que determinou a realização de julgamento do paciente pelo Tribunal Popular sem a sua intimação pessoal, reconhecendo-se, em consequência, a ultra-atividade do disposto no § 1...

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Referido entendimento também é encampado pelos Tribunais de Cúpula, conforme colacionado pelo professor Nestor Távora:

STF/589 – Aplicação da lei no tempo. Porte ilegal de arma. Denúncia e sentença. Aplicação da lei no tempo. Norma instrumental. Envolvida na espécie norma instrumental, como é o caso da revelada no art. 384 do CPP, tem-se a validade dos atos praticados sob a vigência da lei anterior – art. 2.º do CPP.//Denúncia e sentença. Porte ilegal de arma. Descabe cogitar de descompasso entre denúncia e sentença quando a primeira, baseada no art. 16, parágrafo único, inc. IV, da Lei 10.826/03, muito embora consignando a posse ilegal de arma, retrata a apreensão em via pública, havendo ocorrido a prisão em flagrante, lastreando-se o título condenatório na posse ilegal. HC 96.296-RS, rel. Min. Marco Aurélio. (TÁVORA & ROQUE, 2013, p. 11)

Finalmente, ratificado o posicionamento retroexposto, segue abaixo mais um julgado pertinente ao tema:

Informativo Nº: 0509 - Período: 5 de dezembro de 2012 – 6.ª Turma.

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. NORMA PROCESSUAL PENAL MATERIAL.

A norma que altera a natureza da ação penal não retroage, salvo para beneficiar o réu. A norma que dispõe sobre a classificação da ação penal influencia decisivamente o jus puniendi, pois interfere nas causas de extinção da punibilidade, como a decadência e a renúncia ao direito de queixa, portanto tem efeito material. Assim, a lei que possui normas de natureza híbrida (penal e processual) não tem pronta aplicabilidade nos moldes do art. 2º do CPP, vigorando a irretroatividade da lei, salvo para beneficiar o réu, conforme dispõem os arts. 5º, XL, da CF e 2º, parágrafo único, do CP. Precedente citado: HC 37.544-RJ, DJ 5/11/2007. HC 182.714-RJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/11/2012.

Desta forma, resta destacado por meio do citado acórdão a posição predominante na jurisprudência dos Tribunais do País.


CONCLUSÃO

Ao longo do presente estudo fora analisada a norma penal, suas características peculiares, bem como da norma processual penal. Isso porque, para além de referidas normas, a proposta do trabalho visou solucionar o problema das normas híbridas (norma penal material e processual penal).

Com efeito, também se fez necessário lançar mão das normas constitucionais, pois, às retromencionadas normas híbridas deveriam ser confrontadas com o magno princípio da retroatividade in bonam partem.

Ora, se por um lado a norma penal de direito material, indiscutivelmente admite a retroatividade benéfica, o mesmo não se diz em relação às normas penais de natureza instrumental ou processual. E, de referida circunstância resulta a pergunta problema, por meio da qual indagamos inicialmente: como considerar referido postulado constitucional em relação às normas híbridas (de natureza penal e processual penal) quando confrontadas com o princípio da retroatividade benéfica?

Deveras, a pergunta problemas ao considerar às normas jurídicas e sua aplicação, necessário se fez abordar em linhas gerais o processo de elaboração das normas jurídicas, bem como, a análise também volveu-se ao âmbito de aplicação da norma jurídica, porquanto, da natureza dualista da norma híbrida, eventualmente seu manejo poderia render ensejo a antinomias, o que por sinal deve ser rechaçado pelo hermenêuta.

Neste contexto, observou-se que o próprio ordenamento jurídico, enquanto sistema de normas de direito positivo, é unico, harmônico e possui em seu âmbito meios próprios de solução de possíveis antinomias.

De resto, adentrando no cerne da questão, restou insito no capítulo III que da análise das normas híbridas o jurista deverá se ater precipuamente ao aspecto material da norma, sendo que, uma vez mais constatado no caso concreto como sendo mais benéfico ao agente, deverá retroagir para beneficia-lo.

Não obstante, o conteúdo de direito processual deverá ser aplicado a partir de sua vigência, uma vez que os atos processuais anteriores reputam-se válidos, com base no princípio do tempus regit actum.

Adverte-se, contudo, que a referida solução não consiste na cisão do conteúdo da norma jurídica híbrida, mas sim no enfoque do direito material, que constitui sua tônica para fins de análise da viabilidade da implementação do princípio da retroatividade benéfica, quando o caso concreto assim o admitir.

Outrossim, nos Tribunais do país, a despeito de posições contrárias apresentadas no texto, prevalece o entendimento ora adotado de forma pacífica.

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Sobre o autor
André Luiz Cardoso

Possui o grau de bacharel em Direito pelo Centro Universitário Católico Salesiano Auxílium (2009). Atualmente é advogado profissional liberal, já atuou como advogado pleno - SAMAR - SOLUÇÕES AMBIENTAIS DE ARAÇATUBA S.A. e advogado - André Luiz Cardoso Advocacia. Possui experiência no setor público, pois, já ocupou o cargo de Procurador Jurídico Adjunto no DAEA - DEPARTAMENTO DE ÁGUA E ESGOTO DE ARAÇATUBA, bem como, possui experiência no serviço notarial e registral, bem como, já atuou como advogado associado e como profissional liberal. Também dedica-se à área acadêmica, pois, já cursou a Disciplina Didática do Ensino Jurídico no Mestrado da UNIVEM, bem como, atualmente cursa Docência do Ensino Superior na UNIP. Atualmente é Assessor Técnico de Tributos Municipais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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O presente estudo visa atribuir solução para a aplicação das normas híbridas penais e processuais em face do princípio da retroatividade benéfica.

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