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Necessidade de intimação pessoal do leigo em processos administrativos contenciosos

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4. Overruling do precedente esposado no MS 24.691/DF

Através da leitura da ementa do MS 24.691/DF fica claro que o segundo capítulo do precedente contraria toda a tutela constitucional do processo administrativo contencioso, especialmente a garantia do devido processo legal, em sua acepção neoconstitucional.

Negou-se ao leigo, no exercício de sua capacidade postulatória, um tratamento diferenciado em relação ao advogado ou mesmo em comparação ao leigo assistido tecnicamente.

Ignorou-se ainda o caráter excepcional e diferenciado do jus postulandi do leigo, desprezando ainda que as intimações fictas se destinam, via de regra, aos advogados.

4.1.Caráter excepcional do jus postulandi do leigo

O art. 133 da Carta da República deixa claro que a capacidade da parte de postular e responder em processos (jus postulandi) depende da assistência de advogado.

Essa é a regra. Um requisito processual subjetivo que condiciona a validade do processo, extraído da própria Constituição.

Mas, não se tratando de um direito absoluto, pode ser excepcionado por lei (ADI 3.168 e ADI MC 1.127).

Outorga-se ao leigo, excepcionalmente, por lei, a capacidade postulatória. Dá-se por lei justamente porque a Constituição só permitiu a ela o poder de limitar este munus privativo da advocacia.

Há previsão nesse sentido na lei Maria da Penha, na lei de alimentos, na lei dos Juizados Especiais, na CLT, entre outros exemplos.

Doutrinariamente, entende-se que “em processos estranhos ao âmbito do Judiciário, a participação do advogado não é, de regra, incontornável, mesmo que se mostre relevante a garantia do contraditório.”[9]

Em outras palavras, nos processos administrativos, regra geral, é possível contornar a regra, ou seja, na maior parte dos casos é possível que a própria parte produza sua manifestação.

Inclusive, no precedente que se tornou paradigma, a Suprema Corte, com o acerto de costume, dispensou a presença de advogado em processo de tomada de contas (MS 24.961/DF).

Equivale a afirmar, que mesmo em processos administrativos externos restritivos sancionadores não é obrigatório a presença de advogado.

Os votos proferidos no RE 434.059/DF, um dos precedentes que sustentam a Súmula Vinculante nº 05, são por demais esclarecedores no aspecto.

A segunda parte do acórdão proferido no MS 24.961/DF merece ser revista, mas quanto ao jus postulandi do leigo em processos administrativos contenciosos não se há de fazer ponderações.

Via de regra, quando o legislador outorgou capacidade postulatória ao leigo, o fez motivado pela necessidade de facilitar o acesso à justiça ou compensar desigualdades.

O legislador entendeu que, em certas situações, a exigência de defesa técnica seria obstáculo irrazoável à realização do direito.

A indispensabilidade do advogado e a qualidade do contraditório cedem espaço ao princípio do acesso à Justiça, sem intermediários.

As pequenas causas e as reclamações trabalhistas protocoladas pelo empregado hipossuficiente são exemplos de situações que justificam a exceção.

4.2. Caráter diferenciado do jus postulandi do leigo

O jus postulandi, no direito processual, é sinônimo de capacidade técnica. Contudo, sabe-se que o leigo, regra geral, não é um profissional jurídico. Logo, a capacidade postulatória do leigo não é apenas excepcional, também é diferenciada.

O direito não pode ignorar que deu a um não técnico a possibilidade do exercício de um direito que, normalmente, exige uma técnica.

Assim, não há como conceber um processo justo dando ao leigo o exato tratamento que se dá ao advogado – considerando-os cientificados por meio de intimação ficta.

O consumidor, o empregado, a vítima de violência doméstica, o necessitado de alimentos, usuais litigantes desassistidos, por necessitarem de maior proteção ou de facilitação da postulação/defesa se encontram em condição de desigualdade, reclamando tratamento diferenciado, com vistas à igualização.

Necessário se faz demonstrar a “correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida”[10].

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Uma norma que dá tratamento igual a realidades diversas é tão inconstitucional quanto uma que dá tratamento diferente a realidades iguais, desde que haja a mencionada correlação lógica entre os fatores de discriminação e o tratamento diferenciado.

As palavras de Celso Antônio sobre a questão são precisas:

“Com efeito, há espontâneo e até inconsciente reconhecimento da juridicidade de uma norma diferenciadora quando é perceptível a congruência entre a distinção de regimes estabelecidos e a desigualdade de situações correspondentes.

De revés, ocorre imediata e intuitiva rejeição de validade à regra que, ao apartar situações, para fins de regulá-las diversamente, calça-se em fatores que não guardam pertinência com a desigualdade de tratamento jurídico dispensado.”[11] (destaques nossos)

Para o mestre, a validade de uma norma perante a isonomia é determinada pelo vínculo de conexão lógica entre as diferenças próprias do objeto tratado (pessoas, fatos ou situações) e a disparidade das disciplinas estabelecidas em vista delas.

Pergunta-se: Há justificativa racional para exigir tratamento diferenciado para os leigos em processos administrativos contenciosos? Há justificativa racional para não aceitar a intimação dos leigos no exercício do jus postulandi por via de Diário Oficial? É justo exigir intimação pessoal nesses casos? Claro que sim! Ainda mais quando o discrímen aventado não se mostra gratuito, fortuito, discriminatório ou preconceituoso.

O que se constata concretamente é a existência de uma correlação lógica entre os fatores de diferenciação dos sujeitos processuais, e o necessário tratamento diferenciado entre os leigos e os advogados e seus constituintes.

A distinção admitida só é possível porque além de não ser ofensiva ao princípio da igualdade substancial, prestigia o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e o acesso à Justiça, sem prejuízo das balizas constitucionais e infraconstitucionais do processo.

Nos processos administrativos contenciosos, tratar os leigos de forma diferenciada dos advogados ou partes assistidas é um dever constitucional. É necessário intimá-lo pessoalmente, sob pena de negar-lhe o devido processo legal.

4.3. O advogado como destinatário das publicações dos Diários Oficiais e de Justiça

O parágrafo primeiro do art. 370 do Código de Processo Penal deixa claro que o destinatário o da publicação é o profissional jurídico que atua no processo (HC 355190/SP, Rel. Min. Jorge Mussi).

O caput do artigo citado clareia que as demais figuras do processo, acusados, testemunhas etc., serão intimados na forma do capítulo anterior, ou seja, pessoalmente (HC 388.940/PE, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura).

Observe que nos exemplos dados pouco importa se o nome das partes constante da publicação em Diário estava correto ou não, o que interessa à norma infraconstitucional é o acerto do nome do causídico, porque é a ele que se destina a publicação.

No processo civil a realidade não é diferente, conforme se lê no parágrafo segundo do art. 272 e 274 do NCPC (REsp 1608424/SP; AREsp 865319/PB; REsp 1536420/RS; REsp 1290208/RJ).

Noutra direção, nos juizados especiais cíveis e criminais, as intimações não serão fictas, conforme arts. 18, I e 67, da lei 9.099/90.

Vejam que o legislador mudou o critério de intimação quando abriu espaço para o jus postulandi do leigo. Nos Juizados Especiais não se presumiu a ciência do leigo pela publicação em Diário.

Enfim, as publicações em Diários Oficiais e de Tribunais não se destinam a leigos, mas a advogados.

Nesse contexto, qual a razão para permitir a Administração Pública igualar leigos e advogados em processos administrativos contenciosos, de que são exemplos os processos de contas?

Para colocar pá de cal no assunto, consultem o art. 26, § 3º da lei 9.784/90 e percebam que o jus postulandi do leigo requer intimação pessoal, sob pena de inconstitucionalidade.


5. Conclusão

A necessidade de intimação pessoal do leigo em processos administrativos contenciosos, de que são exemplos os processos de contas, é tema constitucional inacabado, seja por um vácuo doutrinário, seja pela necessidade de superação de precedentes jurisprudenciais, mas principalmente pela necessidade de releitura do processo administrativo sob uma ótica constitucional.

Considerar um gestor fictamente intimado num processo perante uma Corte de Contas representa uma dupla subversão hermenêutica, elevando a norma infraconstitucional processual e rebaixando dos direitos fundamentais, invertendo as bases interpretativas e atingindo frontalmente a Supremacia da Constituição.

O devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88), compreendido segundo o movimento neoconstitucionalista, reclama um tratamento diferenciado para o leigo no exercício do jus postulandi, com vistas a garantir o contraditório e a defesa com a amplitude necessária (art. 5º, LIV, CF/88).

Uma decisão sancionatória proferida em desfavor do administrado, num processo sem o respeito à certeza de suas intimações, atenta contra o Estado de Direito, positivado no art. 1º da Carta Política.

Em que pese o objeto do presente estudo seja centrado em cláusulas gerais processuais, há qualificado acervo teórico e jurisprudencial acumulado historicamente a configurar um mínimo ético que garanta segurança em sua aplicação, de forma a respeitar a dignidade do administrado. Um processo que não respeite esse núcleo duro de direitos conflita com o art. 1º, III, da Carta Fundamental.

Regimentos de Cortes de Contas, verbi gratia, que impõem a intimação ficta do leigo são, no aspecto, absolutamente inconstitucionais, devendo assim serem reconhecidos pelos meios próprios.

O art. 1º do Novo Código de Processo Civil representa mais uma “virada hermenêutica” a exigir o overruling do MS 24.961/DF, aqui tomado como arquétipo de uma nova postura diante do processo.

Os deveres de razoabilidade e proporcionalidade, portanto, não são privilégios da aplicação do direito substantivo, mas valores ínsitos também à dimensão procedimental do princípio do due process of law. O direito material não tem maior densidade normativa que o direito processual.

A manutenção do precedente acima citado desrespeita o princípio da igualdade na medida em que desconsidera o caráter excepcional e diferenciado da capacidade postulatória do leigo.

É inegável o acerto do STJ quando assevera que a intimação por Diário se destina a advogados.

Ao fim e ao cabo, razões constitucionais e infraconstitucionais levam à conclusão que o leigo deve ser pessoalmente intimado nos processos administrativos contenciosos, sob pena de, demonstrado o prejuízo, ocorrer a nulidade processual absoluta.


Notas

[1] Assistida ou não, tecnicamente.

[2] Parte não assistida por advogado.

[3] MS.961/DF; ms 29.137/DF E 26.732/DF.

[4] Neste estudo também não foi considerado o rigor técnico quanto à distinção entre processo e procedimento.

[5] Basta entender a palavra “bens” como sinônimo de patrimônio jurídico, material ou imaterial, como soi acontece.

[6] Partes em processos contenciosos, judiciais ou administrativos.

[7] Juiz natural, contraditório, ampla defesa, legalidade, publicidade, boa-fé, entre outros.

[8] O princípio tem força normativa.

[9] Mendes, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 4ª ed. rev. e atual. Sâo Paulo: Saraiva, 2009. Pag. 1045.

[10] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 4ª ed. São Paulo: Maleiros, 2005.

[11] Op. Cit. p. 37.

Sobre os autores
José Eduardo Martins Cardozo

Ex-ministro da Justiça, professor de Direito Administrativo da PUC/SP e da pós-graduação da Unisantos, procurador do Município de São Paulo, ex-secretário do Governo, ex-vereador.

Adir Machado Bandeira

Advogado. Fundador do escritório Adir Machado advogados associados. Foi Diretor de Controle Externo de Obras e Serviços do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe (TCE/SE), é bacharel em Direito, graduado em 1999 pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), quando aos 23 anos de idade também se tornou advogado. Como advogado atuou na defesa de diversas Câmaras Municipais e Prefeituras. Na qualidade de consultor jurídico, prestou serviços para os Legislativos junto ao Congresso Nacional e escreveu diversos pareceres, respondendo consultas de órgãos públicos e corporações privadas. No período de junho de 2009 a 2015 assessorou o Conselheiro Clóvis Barbosa, coordenando as atividades da 5ª Coordenadoria de Controle e Inspeção do TCE/SE. Entre 2008 e maio de 2009, assessorou o Governo de Marcelo Déda exercendo a função de controle interno na Secretaria de Estado da Educação, durante a gestão do Prof. Dr. José Fernandes de Lima. Em 2007, passou pela Assembleia Legislativa como assessor parlamentar. Entre os anos de 2000 e início de 2007, chefiou a Procuradoria da Câmara Municipal de Aracaju, capital do Estado de Sergipe. Durante sua trajetória como jurista lecionou Hermenêutica Jurídica, Filosofia do Direito, Ética Geral e Profissional e Introdução ao Estudo do Direito na UFS. Foi ainda professor de Direito Civil da Faculdade de Sergipe e da Faculdade de Administração e Negócios do Estado de Sergipe, com destaque para a disciplina Responsabilidade Civil. Além disso publicou diversos artigos científicos em áreas como o Direito Constitucional, Administrativo, Financeiro, Civil e Processo Civil. Durante sua fase de formação jurídica, lecionou História Geral e do Brasil em escolas particulares.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOZO, José Eduardo Martins; BANDEIRA, Adir Machado. Necessidade de intimação pessoal do leigo em processos administrativos contenciosos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5347, 20 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64167. Acesso em: 17 nov. 2024.

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