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Lei de Anistia: uma análise sobre o processamento das ações penais dos crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil

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Agenda 02/09/2018 às 11:00

2. OS CRIMES CONTRA A HUMANIDADE E A OBRIGAÇÃO DE RESPONSABILIZAR DO ESTADO BRASILEIRO

2.1. O conceito e a evolução dos crimes contra a humanidade

O conceito de crimes contra a humanidade é definido em 1950 pelo Estatuto do Tribunal de Nüremberg, (doravante denominado “Estatuto”), que foi o tribunal responsável por processar e julgar os crimes cometidos durante a segunda guerra mundial. Após o fim da segunda guerra, o supracitado tribunal foi criado em 1945, “fruto de acordo entre EUA, França, Grã-Bretanha e ex-URSS”24, para que pudessem ser verificadas as irregularidades e violações de direitos humanos cometidos pelos nazistas durante a segunda guerra.

De 1945 a 1949, “o Tribunal de Nuremberg julgou 199 homens, sendo 21 deles líderes nazistas.”25. Nesse momento, o Estatuto define o primeiro conceito do que seriam os crimes contra a humanidade, sejam eles cometidos individual ou coletivamente, trazendo em seu Princípio 6.c a sua primeira definição formal:

Princípio 6: […]

(c) CRIMES CONTRA A HUMANIDADE: A saber, o homicídio, o extermínio, a escravidão, a deportação e outros atos desumanos cometidos contra a população civil ou perseguição por motivos políticos, raciais ou religiosos, quando tais atos são realizados ou tais perseguições ocorrem ou em conexão com qualquer crime de guerra ou contra a paz. (grifo nosso)26

Em observância à tipificação do que seriam os crimes contra a humanidade previstos no Estatuto de Nüremberg, “a Comissão de Direito Internacional especificou que, em relação aos crimes contra a humanidade, estes distinguem-se em dois tipos diferentes de atos passíveis de punição: a) Assassinato, extermínio, escravidão, deportação e outros atos inumanos cometidos contra a população civil; b) Persecução por motivos raciais, políticos ou religiosos”.27

Em 11 de dezembro de 1946, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, através da Resolução nº 95, ratificou os princípios invocados pelo Tribunal de Nüremberg no julgamento dos casos levados a sua jurisdição, sendo que em 1947, à pedido da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a Comissão de Direito Internacional consolidou os sete princípios do Tribunal de Nüremberg em um documento escrito.28

Chamamos atenção para o princípio 2 do Tribunal de Nüremberg, que acaba por nortear as questões que tratam da responsabilização de pessoas pelos tribunais penais internacionais, e reza que “o fato do direito interno não impor punição a um ato que constitui crime segundo o direito internacional, não exime a pessoa que cometeu o ato de ser responsabilizada perante o direito internacional.”29

Com base nesse princípio, afirmamos que o direito internacional preocupou-se em garantir que os crimes cometidos contra a humanidade, como os que aconteceram no período ditatorial no Brasil, não saiam impunes por questões de direito interno. Nesse sentido, resta claro que qualquer tentativa de promover prescrições, auto-anistias ou atipicidade aos crimes cometidos durante a ditadura militar, não podem apresentar impedimentos à responsabilização dos agentes estatais que cometeram crimes bestiais contra a população civil.

Diante dos conflitos históricos e da necessidade de afirmação dos direitos humanos diante desses conflitos, os estatutos dos tribunais penais internacionais sofreram alterações que buscavam adequar-se aos casos sobre sua apreciação, acabando por promover mudanças nos elementos que envolvem o conceito de crimes contra a humanidade, sem, todavia, alterar quatro elementos existentes: a) o caráter e natureza dos atos inumanos que envolvam os atos integrantes da categoria; b) a enunciação taxativa da enumeração dos atos, para atender fundamentadamente ao caráter e à natureza de imunidade; c) que estes atos inumanos são dirigidos contra a população civil; e um quarto elemento, fruto deste terceiro, o de generalidade ou sistematicidade dos atos.30

Sendo assim, convenções e tratados internacionais passaram a tipificar quais crimes passariam a ser resguardados pelo direito internacional, em virtude da competência dos tribunais penais internacionais para processá-los e julgá-los. Nesse sentido, o Brasil passa a fazer parte do sistema universal e interamericano de proteção aos direitos humanos, bem como ratifica esses instrumentos internacionais.

O Brasil ratificou os seguintes tratados:

1) Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992, entrando em vigor em 24 de abril de 1992;

2) Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, Inumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989, ratificado em 12 de janeiro de 2007;

3) Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, em 15 de abril de 1952. O Brasil ainda assinou a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas do Desaparecimento Forçado, em 06 de fevereiro de 2007, sem ratificação.

No sistema interamericano, o Brasil ratificou os seguintes tratados:

1) Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecido como Pacto de San Jose da Costa Rica, em 09 de julho de 1992, que reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para interpretar e aplicar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos;

2) Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos referente à abolição da pena de morte, assinado em 07 de julho de 1994 e ratificado em 31 de julho de 1996;

3) Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, assinada em 24 de janeiro de 1986 e ratificada em 09 de junho de 1989;

4) Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas assinada em 10 de junho de 1994, sem ratificação;

5) Protocolo de São Salvador, ratificado em 08 de agosto de 1996;

6) Convenção Interamericana para Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as pessoas Deficientes, assinada em 08 de junho de 1999 e ratificada em 17 de julho de 2001;

7) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, “Convenção de Belém do Pará”, assinada em 09 de junho de 1994 e ratificada em 16 de novembro de 1995.31

Nesse sentido, não acreditamos na possibilidade do Estado Brasileiro escusar-se da obrigação de responsabilizar os crimes cometidos durante o período negro da ditadura, pois iria de encontro ao que este ratificou, reconhecendo a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para promover a responsabilização desses agentes, e não apenas isso, de aplicar ao Estado brasileiro as devidas sanções por ainda não ter implementado aqui uma política de memória e verdade, sem uma efetiva justiça de transição, que promova o conhecimento a todos do que foi feito durante aquele período, afirmando-se assim a base da democracia e do verdadeiro estado de direito que se pretende implementar neste país.

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O que nos parece, é que houve a ruptura do regime ditatorial, mas a base política, aquela mesma que promulgou a Lei de Anistia em 1979, manteve-se infiltrada dentro da cúpula política, o que impediu a implementação de uma justiça de transição eficaz. A falta da devida responsabilização, processamento das ações, e o julgamento dos casos pelo direito interno e internacional é que geram a sensação de impunidade, enfraquecendo a democracia e atingindo os alicerces mais fundamentais dos direitos humanos, que é o combate à violações materializadas em torturas, desaparecimentos forçados, sequestros, estupros e tantas outras anormalidades cometidas pelos militares.

Como se não bastasse, o direito à verdade e ao luto às famílias que sofreram ou tiveram entes queridos levados pela ditadura é algo que nos parece inexplicável, inestimável. O ritual póstumo é algo que lhes foi negado durante a ditadura, e ainda o é até hoje, por falta de efetividade dessa justiça transicional, que muito pouco foi implementada no Brasil, se comparado à outros países da própria América Latina como veremos adiante. A crueldade do homem parece não ter fim.

É nesse sentido, que defendemos a ideia de que crimes desta estirpe, que ferem não apenas aos que são vítimas deles, mas que são cometidos contra a própria humanidade como vimos acima, e que geram insegurança e medo sentidos através da impunidade pela falta de responsabilização dos agentes que os cometeram, não podem ficar isentos de processamento e julgamento de suas ações por uma impropriedade interpretativa da lei de Anistia, que ressalte-se, foi promulgada durante a ditadura militar, pelos próprios militares, e posteriormente declarada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos e com a Constituição Federal de 1988.

Deste modo, como salientado anteriormente, o Brasil é signatário do Tratado, conhecido como Estatuto de Roma, que deu origem ao Tribunal Penal Internacional, assinado durante a Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, realizada em Roma, entre 15 e 17 de julho de 1988, sendo ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 2002.32

O Tribunal Penal Internacional é o tribunal competente para julgar os crimes mais graves cometidos contra os direitos humanos, conforme disposto no artigo 5º, alínea “b” do seu estatuto. No artigo 7º do mesmo estatuto, encontramos o rol de crimes contra a humanidade33, que foram elencados de forma que nos resta claro entender, que crimes como tortura e desaparecimento forçados, descritos naquele rol, e que foram utilizados sistematicamente contra a população civil durante a ditadura militar, não podem ser anistiados, sofrer prescrição e muito menos serem atípicos.

Nas palavras de Mello:

A tortura e o desaparecimento forçado de pessoas são figuras apontadas como expressivas desta modalidade criminosa, quando praticados no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil. Foi precisamente isto que ocorreu no Brasil: um ataque sistemático contra o segmento da população civil estigmatizada como subversiva, por sua radical rebeldia contra a ditadura militar instaurada a partir do golpe de 1964.34

Ainda nesse sentido, tem-se que os crimes contra a humanidade são considerados imprescritíveis por força do artigo 29 do Estatuto de Roma35. Dessa forma, compreendemos ser possível o processamento de ações penais no sentido de se obter a proteção do Estado com relação aos crimes cometidos pelos agentes estatais durante a ditadura militar, “pois descabe qualquer alegação que se proponha a tê-los como imunizados pelo decurso do tempo.”36

Considerando-se os crimes contra a humanidade como insuscetíveis de anistia ou prescrição, passaremos ao estudo do instituto da imprescritibilidade desses crimes, levando em consideração os aspectos que tornam possível o processamento das ações penais, sejam interna ou internacionalmente, buscando a responsabilização desses agentes estatais, conforme veremos adiante.

2.2. A questão da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade

Ao pensarmos na possibilidade de processamento e julgamento das ações penais que envolvam os agentes estatais pelos crimes praticados por estes durante a ditadura militar, poderíamos nos questionar se os referidos crimes não teriam sido atingidos pelos institutos da prescrição, já que estamos nos referindo à crimes cometidos em um período entre os anos de 1964 e 1979, ano de promulgação da Lei de Anistia.

Atualmente, o direito internacional, por meio de tratados e convenções, trata do assunto com clareza e pontualidade, alegando que os crimes cometidos contra a humanidade são imprescritíveis. São inúmeros os instrumentos legais que tratam da imprescritibilidade desses crimes.37

Podemos ver, por exemplo, a resolução nº 2.338 de 1967 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, que tratou, em caráter de urgência, sobre a afirmação do entendimento da aplicação do instituto da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade. Vejamos as considerações iniciais trazidas no bojo da resolução:

Observando que nenhuma das declarações solenes, instrumentos ou convenções para o ajuizamento e punição por crimes de guerra e por crimes de lesa humanidade tenham previsto limitação no tempo,

Considerando que os crimes de guerra e os crimes de lesa humanidade figuram entre os delitos de direito internacional mais graves,

Convencida de que a repressão efetiva dos crimes de guerra e dos crimes de lesa humanidade é um elemento importante para prevenir esses crimes e proteger os direitos humanos e liberdades fundamentais e pode fomentar a confiança, estimular a cooperação entre os povos e contribuir para a paz e segurança internacional,

Advertindo que a aplicação aos crimes de guerra e aos crimes de lesa humanidade das normas de direito interno relativos à prescrição de delitos comuns suscita grave preocupação na opinião pública mundial, pois impede o ajuizamento das ações e punição das pessoas responsáveis por estes crimes,

Reconhecendo que é necessário e oportuno afirmar no direito internacional, por meio de convenção, o princípio da imprescritibilidade dos crimes de guerra e de lesa humanidade, e assegurar sua aplicação universal. (grifo nosso)38

Para ao fim resolver:

Recomenda que não se adotem medidas legislativas ou de outra índole que possam comprometer os objetivos e propósitos de uma convenção sobre imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade até sua aprovação pela Assembléia Geral.39

A preocupação do direito internacional em tratar da questão nos parece iminente. O direito internacional e os direitos humanos, principalmente após o fim da 2ª Guerra Mundial com a criação do Tribunal de Nüremberg, passaram a exercer papel fundamental para a realização de garantias e direitos fundamentais em âmbito internacional.

Percebemos nesse sentido, a importância de se reconhecer a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, não apenas por se tratar de questões de efetivação de um regime ditatorial para um regime democrático através da justiça de transição e da busca da responsabilização dos agentes criminosos, mas é por meio da afirmação de imprescritibilidade desses crimes, que se buscará a aplicação das penalidades cabíveis, além de frear o sentimento de impunidade, bem como para buscar o direito à memória e à verdade, para que esses delitos não caiam no esquecimento e possam ser efetivamente evitados no futuro.

Destarte, tendo em vista a necessidade da criação de uma convenção que tratasse da imprescritibilidade dos crimes cometidos contra a humanidade, conforme vimos na resolução nº 2.338 de 1967, a resolução nº 2.391 da Assembleia geral da ONU aprovou em 26 de novembro de 1968, a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade.40

Em seu artigo 1º, alínea “b”, a Convenção sobre Imprescritibilidade nos esclarece o seguinte:

Artigo 1º: São imprescritíveis, independentemente da data em que tenham sido cometidos, os seguintes crimes:

1.Os crimes contra a humanidade, sejam cometidos em tempo de guerra ou em tempo de paz, como tal definidos no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg de 8 de agosto de 1945 e confirmados pelas resoluções nº3 ( I ) e 95 ( i ) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 13 de fevereiro de 1946 e 11 de dezembro de 1946; a evicção por um ataque armado; a ocupação; os atos desumanos resultantes da política de "apartheid"; e ainda o crime de genocídio, como tal definido na Convenção de 1948 para a prevenção e repressão do crime de genocídio, ainda que estes atos não constituam violação do direito interno do país onde foram cometidos.41

Nesse sentido, não há que se falar em prescrição dos crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar no Brasil. A justificativa se torna mais clara após o que foi demonstrado, pelo fato de que alegar a prescrição desses crimes é ir contra normas de caráter internacional, aprovadas e reconhecidas antes mesmo da promulgação da Lei de Anistia, o que por sua vez, além de afastar a questão da irretroatividade da lei para prejudicar o acusado, nos permite entender que aqueles crimes são considerados como imprescritíveis desde antes de serem cometidos pelos agentes estatais brasileiros, de certo que, até então, não encontramos óbice processual para o processamento das ações penais que visam essa responsabilização.

Neste sentido, ressaltamos os comentários de Barbosa e Vannuchi quando tratam acerca da questão:

O Brasil é signatário de tratados internacionais que o incluem em diversos sistemas de proteção dos direitos humanos, os quais não estabelecem prescrição para os crimes contra a humanidade, entre eles a tortura e a prática de outros atos desumanos que causem grande sofrimento, ou sério dano ao corpo ou à saúde mental e física de um indivíduo.42

E concluem a respeito da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade:

A qualificação dos atos praticados pelos agentes públicos, mandantes, ou executores, como crimes contra a humanidade é suficiente, portanto, para impedir a concretização de qualquer instituto que possa significar impunidade, conforme preceituam os tratados internacionais aos quais o Brasil aderiu, comprometendo-se a observar todas suas determinações.43

É por isso que afirmamos: os crimes cometidos contra população civil durante a ditadura militar no Estado Brasileiro são imprescritíveis, por ferirem convenções e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, e que passaram a incorporar a Constituição Federal, por força do artigo 5º, §§ 2º e 3º da CF/88.

2.3. A obrigação do Estado Brasileiro de responsabilizar e punir os crimes cometidos durante a ditadura militar

Conforme vimos acima, o Brasil assinou e ratificou por meio do Decreto nº 678/92, a Convenção Americana de Direitos Humanos, chamada também de Pacto de São José da Costa Rica, e em virtude disso, passou a se comprometer internacionalmente pelos crimes contra os direitos humanos cometidos desde antes da promulgação dessa Convenção.

Depreende-se do artigo 2º da supracitada Convenção, que o Estado, a partir do momento que assina e incorpora as regras de direito internacional, compromete-se a adotar medidas de prevenção e combate às violações de direitos humanos. Vejamos:

Artigo 2º - Dever de adotar disposições de direito interno

Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 144 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.45

Nesse sentido, por meio da promulgação do decreto nº 4.463, o Brasil reconhece a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para interpretação e aplicação da Convenção Americana de Direitos humanos a “fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998”46.

Com a ressalva de competência criada pelo governo brasileiro, restringindo a competência da Corte Interamericana para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1988, teríamos, por exemplo, que todos os crimes cometidos durante a ditadura militar estariam fora da competência da Corte Interamericana.

Todavia, por força do artigo 2º supracitado, o Brasil tem por obrigação, efetivar a garantia de direitos humanos que ainda não tenham sido observadas por questões legislativas internas, acabando por tangenciar a situação da impunidade dos agentes militares em virtude da Lei de Anistia.

Nos ensinamentos de Weichert, temos que:

O Estado Brasileiro, a partir do momento em que firmou o pacto de São José da Costa Rica, se obrigou a agir para punir perpetradores de violações a direitos humanos, independentemente da data em que consumados os atos. Portanto, a simples manutenção de uma situação de não-investigação dos fatos e de manutenção sob sigilo de arquivos pertinentes a essa época caracteriza, por si só, descumprimento da Convenção.47

Nesse sentido, é que entendemos que a falta do direito à verdade e à memória, a auto-anistia, a prescrição, e os próprios crimes contra a humanidade cometidos pelos agentes estatais, permitem a responsabilização do Estado Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, até porque os referidos crimes, especialmente no que tangem aos crimes contra a humanidade, são consideradas como imprescritíveis e impossíveis de serem anistiados.48

Nesse sentido, a Corte Interamericana entende que as limitações temporais estabelecidas para sua competência, não impedem que as violações que tenham caráter contínuo ou permanente fujam à sua competência. É a ideia que retiramos de trecho da decisão desta Corte, no Caso “Las Hermanas Serrano Cruz versus El Salvador”:

66. A Corte não pode exercer sua competência contenciosa para aplicar a Convenção e declarar uma violação a suas normas quando os fatos alegados ou a conduta do Estado demandado, que possa implicar em responsabilidade internacional, forem anteriores ao reconhecimento da competência do Tribunal.

67. Contudo, quando se tratar de uma violação contínua ou permanente, iniciada antes do reconhecimento pelo Estado demandado da competência contenciosa da Corte e que persista mesmo depois desse reconhecimento, o Tribunal será competente para conhecer das condutas ocorridas posteriormente ao reconhecimento da competência e dos efeitos das violações.49

Ressalte-se que, a inobservância do Estado brasileiro em promover a responsabilização dos crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar, e ainda o fato de que durante este período houve sequestros e desaparecimentos, tendo estes crimes caráter permanente, o permitem ser responsabilizado perante a Corte Interamericana, pois esta não está limitada ao critério temporal estabelecido pelo Brasil.

Destarte, para Weichert:

A ressalva temporal efetuada no ato de reconhecimento da jurisdição da Corte não exime o País de cumprir a obrigação fixada na Convenção de promoção da verdade e da justiça, nem impede que o Estado brasileiro venha a ser julgado e condenado internacionalmente por sua omissão em cumprir esse dever.50

Nesse sentido, entendemos que enquanto o Brasil continuar a guardar sob sete chaves os arquivos da ditadura, bem como o Poder Judiciário se manter algemado à uma Lei de Anistia que vai contra o que se espera de um efetivo Estado Democrático de Direito, que resguarde os direitos humanos e fundamentais, fazendo valer o que consta dentro de sua própria Constituição, o Estado brasileiro passa a ser responsável pelas omissões e impunidades que aqui ocorrem.

O que nos preocupa é a ideia de que o Judiciário encontre óbice ao processamento dessas ações penais, que buscam responsabilizar os mandantes e executores desses crimes, em um texto de lei que é impreciso, obscuro em seus termos, e ainda assim foi ratificado pelo Supremo Tribunal Federal, em detrimento de garantias e direitos fundamentais violados durante a ditadura militar.

É nesse sentido que abordaremos as questões atinentes à implantação de uma justiça de transição efetiva no Estado brasileiro, que se faz necessária para que se estabeleça um regime democrático pleno e efetivo, garantidor de direitos e liberdades fundamentais, pautado em mecanismos que reprimam e previnam que atrocidades como as cometidas durante a ditadura militar voltem a acontecer fundamentada na impunidade desses crimes.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESSIAS, Marcos. Lei de Anistia: uma análise sobre o processamento das ações penais dos crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5541, 2 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64399. Acesso em: 5 nov. 2024.

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