1. A LEI DE ANISTIA E SEUS EFEITOS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL
1.1. Contexto Histórico
Com o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, o Brasil passou por um momento decisivo da sua história, em virtude das influências comunistas que chegavam por aqui e abalavam a ideia de segurança nacional. Com a renúncia do Presidente Jânio Quadros em 1961, a política brasileira encontrou-se instabilizada, e passou a assumir traços de fragilidade política, econômica e social, que acabaram culminando com o golpe militar de 1964.1
Com a subida de João Goulart, vice-presidente de Jânio Quadros, à presidência da República, o quadro político e econômico do país passou por sérias transformações que davam a sensação de instabilidade à sociedade, principalmente por João Goulart passar a imagem de que era adepto ao regime comunista, que emanava em virtude da expansão dos ideais da URSS durante a Segunda Guerra Mundial.
Dentro do âmbito social difundia-se a ideia de segurança nacional, fruto da influência dos EUA nos países da América Latina, o que tornaria os ideais comunistas rejeitados pela população, e, posteriormente, legitimaria o golpe militar de 1964. Antes da chegada de Jango - como era chamado o então presidente - ao governo, os militares declararam oficialmente que eram contra a subida do vice-presidente à presidência, e acabaram por aproveitar o momento político desfavorável, gerado pela crise financeira e pelo isolamento de João Goulart na política, aplicando, em 31 de março de 1964, o golpe militar que deporia o então Presidente João Goulart e estabeleceria o início do regime opressor.
Pode se perceber assim, que os militares “absorveram o lema do combate à expansão do comunismo e promoveram uma série de mudanças de ordem política, econômica e social nos países latinos em detrimento dos direitos fundamentais da população”.
Em 09 de abril de 1964, é decretado o Ato Institucional 1 pelo novo Presidente, o General Costa e Silva, que marcaria a instalação do Regime Ditatorial Militar no Brasil. Em síntese, por meio do AI-1, houve a cassação de mandatos legislativos e a suspensão de direitos políticos, a marcação de eleições indiretas para Presidente e Vice Presidente da República, a suspensão das garantias da vitaliciedade e estabilidade dos servidores públicos, dentre outras medidas restritivas de direitos fundamentais.2
Observe-se que, o texto preambular do Ato Institucional 1 buscava legitimar a tomada do Poder pelos militares, justificando o golpe pela necessidade de se adequar o Estado Brasileiro às necessidades sociais dos mais variados tipos, que anteriormente não eram supridas pelo regime adotado, e ainda, afirmando que o golpe militar havia sido legitimado pela população.
Em 13 de dezembro de 1968, o Presidente Costa e Silva decreta o Ato Institucional 5 (AI-5), que autorizava o Presidente da República a decretar o recesso do Poder Legislativo, bem como dava poderes para aquele legislar enquanto durasse o recesso, sobre toda e qualquer matéria de seu interesse. O AI-5 cria ainda o julgamento em Tribunais de Crimes Políticos, dá a possibilidade de confisco de bens e suspende o Habeas Corpus, dentre outras medidas repressivas.
Em 28 de agosto de 1979, é sancionada a Lei nº 6.683/79, conhecida como Lei de Anistia. Por meio desta, quem houvesse praticado crimes políticos estaria anistiado, e poderia voltar a ter seus direitos e garantias fundamentais reestabelecidos pela nova ordem que estava por surgir. Acontece que o §1º foi alvo de grande controvérsia, pois concedia a anistia também aos agentes militares que cometeram crimes conexos aos crimes políticos, o que acabava por incluir os crimes de tortura, dentre os outros supracitados.
Esse entendimento passa a ser discutido, e em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, a Lei de Anistia foi considerada compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, não apresentando óbice à Constituição Federal de 1988. Tal entendimento se manteve até a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em 24 de novembro de 2010, no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) VS. BRASIL.
A referida decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que o Estado Brasileiro tinha obrigação de responsabilizar os crimes cometidos durante a ditadura militar, julgando a Lei de Anistia incompatível com o pacto de São José da Costa Rica, que trata sobre direitos humanos, do qual o Brasil é signatário.
Vale salientar que a decisão foi de suma importância, dada o conteúdo da mesma, que foi firme em afirmar que a Lei de Anistia é incompatível com a ordem constitucional vigente atualmente no Estado Brasileiro, do que retiramos a possibilidade de responsabilização dos agentes militares, por terem sido suas condutas tipificadas como crimes contra a humanidade, o que, por sua própria natureza, são considerados crimes imprescritíveis.3
Nesse sentido, passaremos a abordar as questões atinentes aos aspectos processuais que surgiram em virtude da decisão supra referida, e como o Estado Brasileiro passou a reagir a essa medida, diante da possibilidade de responsabilização desses crimes.
1.2. A promulgação da lei de anistia e seus efeitos
A lei nº 6.683/79, também chamada Lei de Anistia, foi promulgada em 28 de agosto de 1979, ou seja, durante a ditadura militar, e trazia no bojo do seu artigo 1º o seguinte:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.4
Depreende-se do artigo 1º da lei, que o Estado Brasileiro, na tentativa de estabelecer um reequilíbrio social, estaria perdoando os crimes cometidos por agentes insurgidos contra o regime militar que aqui se criou, abrangendo aqueles que tiveram seus direitos políticos suspensos, bem como reestabelecendo as garantias dos servidores públicos, que outrora foram desrespeitadas pelo AI-1.
O governo ditatorial sentindo que perdia sua estabilidade em decorrência das crises que vinha sofrendo, tanto econômica, quanto política, acreditou na possibilidade de repatriar aqueles que foram banidos do país, bem como de conceder perdão a todos os crimes cometidos por civis contra a ordem que aqui vigia.
Por outro lado, as interpretações mais abrangentes da lei, acabaram por beneficiar não só aqueles que foram vítimas do Estado Ditatorial, como também os agentes políticos e militares que cometeram os mais variados crimes durante a ditadura, ou seja, a partir da promulgação da lei de anistia, os agentes estatais e militares não mais poderiam ser processados pelo Judiciário Brasileiro, por estarem anistiados de seus crimes. Nesse sentido, pertinente se fazem os estudos de Kai, Malarino e Elsner, ao comentar os efeitos da lei de anistia, ressaltando que:
[...] além de anistiar os autores de crimes políticos, permitindo assim, o retorno daqueles que haviam sido exilados, as interpretações que prevaleceram levaram à consagração da impunidade dos responsáveis pela prática de tortura, prisões ilegais e desparecimentos forçados.5
Entendemos nesse sentido, que a promulgação da Lei de Anistia, ao extinguir a punibilidade dos crimes políticos e conexos com estes cometidos durante a ditadura, buscou eximir-se da responsabilização que poderia sofrer após o fim do governo ditatorial. Basta imaginar como viveriam os agentes estatais em um momento pós-ditadura no Brasil. A primeira sensação que temos é a de revanchismo.
Nesse sentido, a Lei de Anistia nos parece ter um caráter mais político, protecionista dos agentes estatais, do que garantidora de direitos da sociedade. Pode-se dizer assim, que a promulgação da lei durante a ditadura, acabou por impossibilitar a ideia de justiça de transição, que caracteriza a busca pela responsabilização desses agentes, quando da ruptura de um governo marcado pela imposição política, que violava direitos humanos e constitucionais, que por muitas vezes se voltou contra a própria sociedade, que a priori, o teria legitimado no poder.
Dessa forma, o Estado Brasileiro por muito tempo, manteve-se inerte com relação ao entendimento de que os crimes cometidos durante a ditadura militar estariam anistiados, tanto para militares e agentes estatais, quanto para aqueles que foram exilados. Qualquer tentativa contrária, no sentido de buscar a responsabilização de qualquer desses agentes era inviabilizada pelo Poder Judiciário, por estar extinta a punibilidade desses crimes.
A tese de que a anistia tem por efeito jurídico penal extinguir a punibilidade, vem de antes da Constituição Federal de 1988, sendo utilizada pelo Supremo Tribunal Federal dessa forma até os dias atuais, tendo o Ministro Relator Firmino Paz, decidido, no ano de 1982, que:
A anistia, que é efeito jurídico resultante do ato legislativo de anistiar, tem a força de extinguir a punibilidade, se antes da sentença de condenação; ou a punição, se depois da condenação. Portanto, é efeito jurídico, de função extintiva, no plano puramente penal.6
A tese vem mantendo-se até os dias atuais, de onde podemos observar decisão recente do STF acerca da consideração da extinção da punibilidade com relação à anistia, conforme abaixo:
CONSTITUCIONAL E PENAL. HABEAS CORPUS ESTELIONATO – ART. 251. DO CÓDIGO PENAL MILITAR. CONDENAÇÃO. APELAÇÃO DA DEFESA. RECONHECIMENTO DA PRELIMINAR DE PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. QUESTÃO DE FUNDO PREJUDICADA. INCONFORMISMO. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – CF, ART. 1º, INC. III. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. AUSÊNCIA DE EFEITOS DE NATUREZA PENAL OU CÍVEL.
[...]
3. In casu, houve condenação pelo crime de estelionato (CPM, art. 251), ensejando recurso de apelação da defesa cuja preliminar de prescrição da pretensão punitiva restou acolhida, por isso não procedem as razões da impetração no que visam à análise dos argumentos que objetivavam a absolvição no recurso defensivo, não cabendo, consequentemente, falar em violação do princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), sobretudo porque, reitere-se, o reconhecimento dessa causa extintiva da punibilidade não acarreta quaisquer efeitos negativos na esfera jurídica do paciente, consoante o seguinte trecho do voto proferido pelo Ministro Francisco Rezek no HC 63.765, verbis: “Há de existir em nosso meio social uma suposição intuitiva, evidentemente equívoca do ponto de vista técnico-jurídico, de que em hipóteses como esta a prescrição – mesmo a prescrição da pretensão punitiva do Estado – deixa sequelas e por isso justifica, na pessoa que foi um dia acusada, o interesse em ver levada adiante a análise do processo, na busca de absolvição sob este exato título. Sucede que não é isso o que ocorre em nosso sistema jurídico. A pretensão punitiva do Estado, quando extinta pela prescrição, leva a um quadro idêntico àquele da anistia. Isso é mais que a absolvição. Corta-se pela raiz a acusação. O Estado perde sua pretensão punitiva, não tem como levá-la adiante, esvazia-a de toda consistência. Em tais circunstâncias, o primeiro tribunal a poder fazê-lo está obrigado a declarar que ocorreu a prescrição da pretensão punitiva, que o debate resultou extinto e que não há mais acusação alguma sobre a qual se deva esperar que o Judiciário pronuncie juízo de mérito. […] Quando se declara extinta a punibilidade pelo perecimento da pretensão punitiva do Estado, esse desfecho não difere, em significado e consequências, daquele que se alcançaria mediante o término do processo com sentença absolutória. (grifo nosso)7
Observa-se do julgado acima, que o posicionamento mantido pela Corte é que a anistia tem o caráter de esvaziar a pretensão punitiva, não podendo prosperar a possibilidade de responsabilização estatal pelos crimes cometidos durante a ditadura militar. É como se não existissem crimes, ou os mesmos não tivessem sido cometidos, ou simplesmente esquecidos.
Nesse sentido, enquanto o Ministério Público Federal (MPF) agia para responsabilizar os agentes estatais pelas violações a direitos fundamentais de todas as espécies praticadas durante a ditadura militar, o Judiciário se “amarrava” a lei de anistia para negar seguimentos as ações penais ajuizadas pelo MPF, julgando sempre pela extinção da punibilidade como consequência da aplicação da anistia à esses crimes, conforme examinaremos no momento oportuno.
Cabe salientar, que apesar de todos os esforços do Ministério Público Federal em promover a ação penal cabível para apuração desses crimes, o Supremo Tribunal Federal, quando instado a se manifestar sob a legalidade da lei de anistia através da ADPF nº 153, julgou pela constitucionalidade da lei de anistia, entendendo que esta encontra-se compatível com o ordenamento jurídico brasileiro.
1.3. A ratificação da lei de anistia pelo STF através da ADPF nº 153
Em 21 de outubro de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, na tentativa de buscar a verdadeira interpretação do artigo 1º da lei de anistia, ajuizou a ação de Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais perante o Supremo Tribunal Federal, questionando a validade do §1º do artigo 1º da lei supracitada, bem como a sua compatibilidade com a Constituição Federal de 1988.
Em suma, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) alegava na inicial duas ideias centrais: (i) a inexistência de conexão entre os crimes políticos e os de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar, e; (ii) a própria disposição expressa da Constituição Federal Brasileira, em seu artigo 5º, inciso XLIII, que veda a anistia a prática de tortura e crimes hediondos, não tendo a Constituição Federal de 88, em tese, recepcionado a Lei de Anistia por expressa disposição constitucional.
Com relação à inexistência da conexão entre os crimes políticos e os crimes comuns cometidos pelos militares, Greco afirma que:
Inicialmente, devemos destacar o fato de que, quando levamos a efeito a diferença entre crimes comuns e crimes políticos, a palavra ‘comum’ é utilizada no sentido de que não há nenhuma intenção especial, de natureza política, exigida por aquela determinada infração penal.8
Ora, não nos parece correto que a anistia aos crimes políticos cometidos para defender o governo ditatorial de ataques feitos por opositores políticos, devam ser estendidas aos crimes comuns praticados pelos militares durante o regime militar. Observa-se que aqueles crimes são cometidos contra a segurança do Estado, ao passo que estes, são tutelados penalmente pelo próprio Estado e voltados a defender a tutela de interesses privados do indivíduo.
Apesar dos questionamentos suscitados pela OAB, em 29 de abril de 2010, a ADPF nº 153 foi julgada improcedente pelo STF. Naquela ocasião, foi decidido que a Lei de Anistia valeria tanto para os cidadãos que cometeram crimes políticos, como para os agentes militares que atuaram em nome do Estado, e que dela se beneficiavam por força do §1º do artigo 1ª, da referida Lei, além dessa ser considerada compatível com a CF/88, tendo esta recepcionado-a.
A questão defendida pela Suprema Corte era que este não possuía competência para modificar a lei de anistia, mas tão somente aplicá-la ao caso concreto, fixando sua interpretação e alcance quanto as pessoas e aos fatos. Na decisão do STF, que teve como relator o Ministro Eros Grau, este ressalta que a lei de anistia surgiu de um acordo político para que houvesse a transição entre os governos, e que esse acordo só poderia ser revisto pelo Poder Legislativo, sendo “certo que ao Poder Judiciário não incumbe revê-lo. Dado que esse acordo resultou em um texto de lei, quem poderia revê-lo seria exclusivamente o Poder Legislativo.”9
Quanto à recepção ou não da Lei de anistia pela Constituição Federal, o Ministro Eros Grau nos remete a emenda constitucional nº 26/85, que segundo ele, “inaugura uma nova ordem constitucional. Consubstancia a ruptura da ordem constitucional que decairá plenamente no advento da Constituição de 05 de outubro de 1988.”10
Nesse sentido, em seu artigo 4º, a EC nº26/85 reafirmou a concessão de anistia aos servidores públicos civis e militares, punidos por atos de exceção, para em seguida, no seu §1º, concedê-la aos autores de crimes políticos ou conexos com estes cometidos no período de 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, conforme seu parágrafo 2º.
Conforme o voto do ministro Eros Grau, sendo a EC nº 26/85, o instrumento mediante o qual convocou-se o Poder Legislativo Constituinte Originário para a elaboração da CF/88, e estando previsto no artigo 4º, §1º, da supracitada emenda constitucional a concessão de anistia para os crimes políticos ou conexos a todos os agentes, fica demonstrado que a Constituição Federal anistiou os crimes cometidos durante a ditadura militar, sem que isto cause antinomia com o artigo 5º, inciso XLIII.
Destarte, a decisão do STF na ADPF nº 153 tratou de dar validade a lei de anistia, bem como aos seus efeitos relacionados aos crimes políticos ou conexos, praticados por agentes estatais durante a ditadura militar. Conforme elucida Tavares:
A decisão, em resumo, fundamentou-se no entendimento de que a Lei 6.683/79 é compatível com a Constituição Federal de 1988 e a anistia por ela concedida foi ampla e geral, alcançando os crimes de qualquer natureza praticados no período compreendido entre 1964 e 1979, por ter sido sua publicação um acordo político entre a sociedade civil e o governo desse período. Entendeu-se, ainda, que o § 1.º do art. 1.º da Lei de Anistia definiu os crimes conexos como sendo as infrações de qualquer natureza que estivessem relacionadas à prática por motivação política, ou seja, incluindo os delitos comuns. Após fazer alusão a crimes políticos e conexos existentes na concessão de anistia por vários decretos, observou-se que as expressões delitos conexos e políticos tiveram uma conotação no sentido do momento histórico da lei. Aduziu-se que o legislador realmente teria procurado estender a conexão aos crimes praticados pelos agentes públicos e aos que lutavam contra o governo de exceção.11
Afirmada a validade da Lei de Anistia, o posicionamento dos Tribunais Regionais Federais, que são a quem compete processar e julgar as ações penais ajuizadas neste sentido pelo MPF, mantiveram-se nos termos de negar prosseguimento a ação, por falta de justa causa penal e condições para o exercício da ação penal. Neste sentido, vejamos decisão proferida pela 10ª Vara Federal criminal de São Paulo, proferida pelo juiz Márcio Rached Millani, conforme segue:
Decido.
As questões trazidas pelo Ministério Público Federal já foram objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da [...] ADPF - nº 153/DF.
[...]
Por todo o exposto, pode-se asseverar que os crimes praticados durante o período do regime militar foram anistiados.
[...]
O recebimento da denúncia implicaria, pois, por um lado, na desconsideração, por via oblíqua, de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em processo concentrado de controle de constitucionalidade e, por outro, na aceitação de tese ministerial comprovadamente dissociada da realidade.
Posto isso, rejeito a denúncia oferecida em desfavor de C.A.B.U. e D.G. quanto ao crime previsto no art. 148, 2º, c.c. o art. 29, ambos do Código Penal, com fundamento no art. 395, II e III, do Código de Processo Penal.
[...]
Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpra-se.12
Pode-se observar, assim, que a possibilidade de responsabilização dos crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar, acabaram por ficar distante da realidade processual que se encontrava o Judiciário. Neste sentido, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos deu nova roupagem a interpretação sobre a lei de anistia.
A decisão da Corte IDH condenou o Estado Brasileiro e o responsabilizou pelos crimes cometidos durante o regime ditatorial, além de declarar a Lei de Anistia incompatível com os tratados internacionais assinados pelo Brasil, possibilitando novamente a discussão acerca do tema, que de fato nunca fora esquecida, mas estava presa a anistia concedida pela Lei.
Ressalte-se que a decisão não tem o condão de reformar o acórdão proferido pelo STF na ADPF nº 153, mas tão somente fazer o controle de convencionalidade da Lei de Anistia com a Convenção Americana de Direitos Humanos da qual o Brasil é signatário, já que por expressa disposição constitucional, os tratados internacionais assinados pelo Brasil tem, no mínimo, força de garantia constitucional, conforme se verá a seguir.
1.4. A declaração de incompatibilidade da lei de anistia com a Constituição Federal de 1988
Com a decisão da ADPF nº 153 pelo STF, no sentido de validade da Lei de Anistia, e sua compatibilidade com a Constituição Federal de 1988, a possibilidade de processamento e responsabilização dos crimes políticos ou conexos com estes cometidos durante a ditadura militar se tornou inviável, tendo em vista o posicionamento adotado pelo Excelso Pretório.
Nesse sentido, em 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos foi incitada a se manifestar sobre a decisão do STF na referida ADPF, e acabou por decidir no sentido de considerar a Lei de Anistia incompatível com a Constituição Federal de 1988, bem como ao Estado Democrático de Direito que existe no Brasil, além de classificar os crimes cometidos durante a ditadura militar como crimes contra humanidade ou de lesa-humanidade. Logo, seriam esses crimes imprescritíveis e passíveis de responsabilização pelo Estado, acarretando, em caso de não-observância por este, em sua responsabilização internacional.
Em extensa decisão, a Corte IDH reconheceu que a lei de Anistia é incompatível com o Pacto de San Jose da Costa Rica, pois diante das violações a direitos humanos ocorridas a época da ditadura militar brasileira, como os casos de torturas, desaparecimento forçados e sequestros na Guerrilha do Araguaia, o Estado Brasileiro tinha a obrigação de investigar, e se for o caso, julgar e punir os crimes dessa natureza, conforme parágrafo 137 da decisão da Corte, que assim diz:
Desde sua primeira sentença, esta Corte destacou a importância do dever estatal de investigar e punir as violações de direitos humanos. A obrigação de investigar e, se for o caso, julgar e punir, adquire particular importância ante a gravidade dos crimes cometidos e a natureza dos direitos ofendidos, especialmente em vista e que a proibição do desaparecimento forçado de pessoas e o correspondente dever de investigar e punir aos responsáveis há muito alcançaram o caráter de jus cogens.13
Observa-se ainda, que a Corte IDH estabeleceu a diferença existente em sua competência para julgar o descumprimento de obrigações internacionais referentes a direitos humanos, fruto do controle de convencionalidade exercido por este Tribunal, da competência do STF para fazer o controle de constitucionalidade das leis com a CF/88. Vejamos o parágrafo 49 da decisão da Corte Interamericana:
Em numerosas ocasiões, a Corte Interamericana afirmou que o esclarecimento quanto à violação ou não, pelo Estado, de suas obrigações internacionais, em virtude da atuação de seus órgãos judiciais, pode levar este Tribunal a examinar os respectivos processos internos, inclusive, eventualmente, as decisões de tribunais superiores, para estabelecer sua compatibilidade com a Convenção Americana, o que inclui, eventualmente, as decisões de tribunais superiores. No presente caso, não se solicita à Corte Interamericana a realização de um exame da Lei de Anistia com relação à Constituição Nacional do Estado, questão de direito interno que não lhe compete e que foi matéria do pronunciamento judicial na Arguição de Descumprimento No. 153. mas que este Tribunal realize um controle de convencionalidade, ou seja, a análise da alegada incompatibilidade daquela lei com as obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção Americana. (grifo nosso) 14
Com a validação da Lei de Anistia pelo STF, a impossibilidade de responsabilização dos agentes políticos pelo Estado tornou-se um grave problema diante dos tratados de direitos humanos assinados pelo Brasil, principalmente no que se refere à Convenção Interamericana de Direitos Humanos. A Corte IDH entendeu que a lei nº 6.683/79 apresentava óbice a aplicação dos direitos humanos previstos nos tratados internacionais, e assim o declarou em seu parágrafo 135:
Em virtude dessa lei, até esta data, o Estado não investigou, processou ou sancionou penalmente os responsáveis pelas violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar, inclusive as do presente caso. Isso se deve a que “a interpretação da Lei de Anistia absolve automaticamente todas as violações de direitos humanos que tenham sido perpetradas por agentes da repressão política.15
Dessa forma, na conclusão do julgamento realizado pela Corte IDH acerca da incompatibilidade da Lei de Anistia brasileira com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, aquela Corte assim decidiu no parágrafo 3, decidindo que:
As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.16
Com essa decisão, passa-se a discutir se a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos teria o condão de reformar a decisão do STF, tornando a Lei de Anistia incompatível com o Pacto de San Jose da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, bem como declarando que os crimes de tortura, sequestros e desaparecimento forçado, cometidos na ditadura militar seriam imprescritíveis, por sua características de crimes permanentes e de crimes contra a humanidade, estando os agentes políticos, dessa forma, passíveis de serem responsabilizados pelo cometimento destes.
Nesse momento, tínhamos um conflito aparente entre a decisão do STF que ratificava a ampla anistia dada pela Lei nº 6.683/79, motivo da ADPF nº 153 ajuizada pela OAB Federal, e a decisão da Corte IDH que decidia pela responsabilização dos agentes militares, bem como pela responsabilização internacional do Estado Brasileiro.
Todavia, antes de adentrarmos o estudo do conflito aparente de normas e controle de convencionalidade das normas infraconstitucionais, cabe-nos ressaltar a controvérsia jurídica existente sobre a posição hierárquica dos tratados de direitos humanos assinados pelo Brasil e incorporados à nossa Constituição Nacional.
Ocorre que, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, e a inclusão do §3º ao artigo 5º da CF/88, passou-se a discutir se os tratados de direitos humanos incorporariam à Constituição Brasileira como normas supralegais ou como normas constitucionais. Isso porque o §3º do artigo 5º, traz o requisito de aprovação por quórum qualificado em votação nas duas casas legislativas nacionais, para que o tratado de direitos humanos seja elevado ao patamar constitucional. Todavia, em seu §2º do mesmo artigo, a CF/88 trouxe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Ora, parece-nos incontestável que, admitida a ideia de que o tratado internacional, independentemente do valor normativo com que este seja incorporado ao nosso ordenamento jurídico, seja como Emenda a Constituição, ou como norma supralegal, este terá como um de seus efeitos, o questionamento de leis que sejam contrárias aos mandamentos contidos naqueles tratados por meio do controle de convencionalidade.
Para o ilustre professor Mazzuoli, os tratados internacionais de direitos humanos, independentemente de observarem a aprovação por quorum qualificado ou não, incorporam-se ao ordenamento como norma constitucional. Nesses termos são seus ensinamentos, conforme se depreende do excerto a seguir:
Portanto, deve-se excluir, desde logo, o entendimento de que os tratados de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada do art. 5.º, § 3.º, da CF equivaleriam hierarquicamente à lei ordinária federal, uma vez que eles teriam sido aprovados apenas por maioria simples - nos termos do art. 49, I, da CF (LGL/1988/3) - e não pelo quorum que lhes impõe o referido parágrafo. O que se deve entender é que o quorum que tal parágrafo estabelece serve tão-somente para atribuir eficácia formal a tais tratados no nosso ordenamento jurídico interno, e não para atribuir-lhes a índole e o nível materialmente constitucionais que eles já têm em virtude do art. 5.º, § 2.º, da CF (LGL/1988/3).17
Corrobora com esse entendimento, a Procuradora do Estado de São Paulo, Piovesan:
Também de extrema relevância é o alcance da previsão do art. 5.º, § 2.º, da CF/1988 (LGL/1988/3), que tece a interação entre a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional dos direitos humanos. Ao estabelecer que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, este dispositivo constitucional incorpora os preceitos dos tratados internacionais de direitos humanos, atribuindo-lhes natureza de norma constitucional. Assim, os direitos garantidos nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados.18
A questão foi levada ao STF, que em julgamento pelo Pleno, nos HC 87.585-Tocantins e Recurso Extraordinário (RE) 466.343-São Paulo, em decisão não-unânime, defendida pelo Ministro Gilmar Mendes, julgou no sentido de que os tratados de direitos humanos que observassem os requisitos de aprovação do artigo 5º, §3º da CF/88 seriam incorporados a esta com força de Emenda Constitucional, ao passo que, os tratados vigentes no Brasil que não observem a aprovação do referido parágrafo, teriam força de norma supralegal. Vale a lição de Gomes sobre o assunto:
Caso algum tratado venha a ser devidamente aprovado pelas duas casas legislativas com quorum qualificado (de três quintos, em duas votações em cada casa) e ratificado pelo Presidente da República, terá ele valor de Emenda Constitucional (CF, art. 5º, § 3º, com redação dada pela EC 45/2004). Fora disso, todos os (demais) tratados de direitos humanos vigentes no Brasil contam com valor supralegal (ou seja: valem mais do que a lei e menos que a Constituição).19
Nesse sentido, tendo em vista a competência para julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da compatibilidade ou não das normas infraconstitucionais com relação aos tratados de direitos humanos assinados pelos países participantes, e incorporados à Constituição destes, é que se torna possível o controle de convencionalidade da Corte IDH sobre as leis ordinárias brasileiras, o que não se confunde com o controle de constitucionalidade exercido pelo STF.
1.5. O controle de convencionalidade exercido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
Cabe primeiramente ressaltar, que a Corte não atuou como 4ª instância judicial, reformadora da decisão do STF. Inclusive, o STF, ao julgar a ADPF nº 153, já tinha ciência de que o caso estava sendo tratado perante a Corte IDH. Ainda assim, assumiu o risco: Tomar uma decisão que poderia ser contrária ao julgado pela Corte IDH.20
Nesse sentido, em sede de exceção preliminar, o Estado Brasileiro peticionou à Corte IDH, alegando que a possível condenação do Estado Brasileiro e a declaração de incompatibilidade da Lei de Anistia transformaria a referida Corte na 4ª Instância Judicial, reformadora das decisões do STF. Nesse sentido, é o que Ramos nos ensina que:
Como o processo perante San José ainda estava em curso, tanto que a ADPF 153 foi julgada improcedente por maioria de votos, o Brasil imediatamente peticionou perante a Corte IDH arguindo mais uma exceção preliminar: a existência de uma decisão da mais Alta Corte brasileira levaria à Corte IDH a um papel proibido, de ser uma “quarta instância” judicial, reformando o julgamento local. Para o Estado, caso o julgamento internacional prosseguisse, a Corte IDH se transformaria em uma instância de revisão das decisões judiciais do STF, uma verdadeira “quarta instância”. Só que a jurisdição interamericana de direitos humanos aprecia a conduta do Estado brasileiro em face da Convenção Americana de Direitos Humanos. Não há, então, nenhuma pretensão de rescindir julgados nacionais, mas sim em obrigar o Estado a respeitar os direitos humanos. (grifo nosso)21
O que acontece, é que o STF é responsável pelo controle de constitucionalidade dos atos internos, referentes ao Brasil e a aplicação de sua Constituição Federal. Por sua vez, a Corte IDH exerce controle de convencionalidade sobre os países que ratificam e assinam as convenções de direitos humanos, ou seja, o referido Tribunal é responsável por fiscalizar e aplicar as penalidades cabíveis quando da não-apreciação das convenções ou tratados internacionais pelos países que as incorporam em seu ordenamento jurídico.
Para a resolução deste conflito aparente, utiliza-se a teoria do duplo controle ou crivo de direitos humanos, que consiste na possibilidade de qualquer ato ou norma a ser praticado no país, que diga respeito aos direitos humanos, passar por um duplo controle realizado tanto pelo STF quanto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O STF e juízos nacionais passariam a realizar o controle de constitucionalidade desses atos, buscando sua compatibilidade com a Constituição Federal.
Por outro lado, a Corte IDH realizaria o controle de convencionalidade desses atos, estabelecendo se os mesmos encontram-se ou não com o disposto nos tratados sobre direitos humanos do qual o Brasil for signatário. Sendo assim, “os direitos humanos, então, no Brasil possuem uma dupla garantia: o controle de constitucionalidade nacional e o controle de convencionalidade internacional.”22
Nas palavras de Ramos que esclarece a ideia do conflito aparente existente no caso:
De um lado, o STF, que é o guardião da Constituição e exerce o controle de constitucionalidade. Por exemplo, na ADPF 153 (controle abstrato de constitucionalidade), a maioria dos votos decidiu que a anistia aos agentes da ditadura militar é a interpretação adequada da Lei da Anistia e esse formato amplo de anistia é que foi recepcionado pela nova ordem constitucional. De outro lado, a Corte de San José é guardiã da Convenção Americana de Direitos Humanos e dos tratados de direitos humanos que possam ser conexos. Exerce, então, o controle de convencionalidade. Para a Corte Interamericana, a Lei da Anistia não é passível de ser invocada pelos agentes da ditadura. Mais: sequer as alegações de prescrição, bis in idem e irretroatividade da lei penal gravior merecem acolhida. Com base nessa separação, vê-se que é possível dirimir o conflito aparente entre uma decisão do STF e da Corte de San José.23
Sendo assim, o duplo controle apresenta-se como solução apta a resolver o conflito aparente no caso em tela, pois não se trata da Corte IDH interferindo ou revisando a decisão do STF. O que acontece, é que os dois controles, de constitucionalidade e o de convencionalidade, existem concomitantemente, sendo que o ato que não respeite aos dois, será considerado inválido por violar direitos humanos expressos na Constituição ou nas Convenções Internacionais, devendo o Estado responsabilizar e buscar a cessação da conduta ilícita violadora desses direitos.
É nesse sentido, que o Brasil foi condenado pelo Tribunal Internacional de Direitos Humanos, para que fossem tomadas uma série de medidas referentes aos crimes cometidos durante a ditadura militar, bem como para que sejam responsabilizados os agentes autores desses crimes, sem que esta decisão caracterizasse reforma da sentença proferida na ADPF nº 153.
Ressalte-se que ainda aguardamos um posicionamento do STF quanto ao tema aqui discutido. O que se tem até o momento é que foi dito anteriormente: Os tratados sobre direitos humanos serão considerados como normas constitucionais, com valor de Emenda Constitucional, quando forem observados os requisitos do artigo 5º, §3º da Constituição Federal. Não observados tais requisitos, serão incorporados como norma supralegal. De uma forma ou de outra, estariam aptos a ensejar o controle de convencionalidade pela Corte IDH, sem prejudicar o controle de constitucionalidade exercido pelo STF.