3 – As atribuições.
A atuação do Estado frente aos atos de corrupção é interdisciplinar, formando as diversas normas que o regulamentam e os vários órgãos que nele atuam um microssistema de combate à corrupção.
Nesse sentido, a Constituição Federal, ao delimitar as funções institucionais de cada órgão de Estado, deixou claro que o combate à corrupção consiste em uma atuação concatenada e sequencial entre os agentes de Estado. Apesar de em alguns momentos o caráter interdisciplinar da matéria fazer transparecer uma atuação sobreposta, na verdade, deve ser interpretada como uma atuação interligada, com o compartilhamento de informações e o sequenciamento de atos.
Os acordos de leniência consistem em meio alternativo à sanção tradicional implementada pelo Estado. Assim, a partir do momento em que a função punitiva não se mostra eficaz, ante a realidade do caso concreto, para restabelecer a harmonização das relações sociais e o desincentivo às práticas ilícitas, busca-se um instrumento mais eficiente para a apuração do ilícito e a responsabilização dos infratores.
O acordo de leniência, como visto, foi previsto inicialmente no direito concorrencial, em virtude das dificuldades encontradas na apuração ordinária dos atos de cartel.
Segundo Simão e Vianna (2017, p. 70):
... a implementação de instrumentos negociais no combate à ilícitos parece ter-se fundamentado precipuamente na investigação e repressão dos delitos de maior complexidade, aqueles cujas características acabam por dificultar a ação persecutória ordinária do Estado. Mas entendemos que a matéria pode ser vista ainda sob uma amplitude maior. Acreditamos que os instrumentos negociais, quando implementados de forma coesa, juridicamente sólida e transparente, exercem importante papel na política de repressão à prática de ilícitos.
A partir de então, diversos instrumentos normativos passaram a prever a possibilidade de celebração de acordo de leniência na apuração de ilícitos administrativos e criminais, gerando uma posição crítica em diversas searas do Direito quanto a eventual insegurança jurídica na pulverização do instituto.
Ocorre que, conforme já explanado acima, os diversos acordos de leniência passíveis de serem celebrados no ordenamento jurídico possuem escopos diferentes e dizem respeito a atos lesivos com naturezas jurídicas diversas.
O acordo de leniência celebrado no âmbito do direito concorrencial decorre do poder atribuído ao Cade de investigar, decidir e aplicar penalidades quando praticadas infrações à ordem econômica, consistindo em um dos principais instrumentos de combate à prática de cartel. Abrange tanto pessoas físicas quanto pessoas jurídicas envolvidas na conduta anticoncorrencial coletiva e concede benefícios administrativos e criminais com a celebração do acordo.
O objetivo principal do Programa de Leniência do Cade é “detectar, investigar e punir infrações contra a ordem econômica; informar e orientar permanentemente as empresas e os cidadãos em geral a respeito dos direitos e garantias previstos nos artigos 86 e 87 da Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC) e nos artigos 197 a 210 do Regimento Interno do Cade (RICADE); e incentivar, orientar e assistir os proponentes à celebração de Acordo de Leniência Antitruste do Cade (Acordo de Leniência)”.
O âmbito de incidência do Acordo de Leniência Antitruste são as infrações contra a ordem econômica, notadamente o Cartel e aquelas infrações previstas no artigo 36 da Lei nº 12.529/2011, bem como os crimes descritos na Lei 8.137/1990, na Lei 8.666/1993 (BRASIL, 1993), e no art. 288 do Código Penal, conforme art. 87 da Lei 12.529/2011.
Os artigos 29 e 30 da Lei Anticorrupção, de outra banda, expressamente ressalvam as competências do Cade, diante de suas proteções jurídicas distintas. A Lei 12.846/2013 visa proteger a Administração Pública Nacional e Estrangeira de atos que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, enquanto que a Lei 12.529/2011 visa proteger o sistema econômico nacional de práticas anticompetitivas.
Conforme se observa, as tratativas de leniência previstas na Lei Antitruste e na Lei Anticorrupção ocorrem perante autoridades distintas, ante a sua autonomia e seu objeto jurídico diverso. O acordo firmado por uma das autoridades competentes e no âmbito de sua atribuição não impedirá o acordo firmado pela outra autoridade, que também possui legitimidade diante das competências legais a ela estabelecidas.
Dessa forma, a mesma conduta tipificada como crime de cartel, prevista no art. 4º, da Lei nº 8.137/90 também configura infração permanente de fraude à licitação, prevista no art. 5º, IV, “d” da Lei 12.846/2013, a depender do caso concreto, referente ao ajuste entre os ofertantes, e não há que se falar em bis in idem, uma vez que tutelam objetos jurídicos com naturezas distintas.
No combate à prática de cartel, tutela-se a ordem econômica. Na conduta de fraude à licitação, pune-se a ofensa ao patrimônio público, aos princípios da Administração Pública e aos compromissos internacionais (art. 5º da Lei nº 12.846/2013), incluindo a proteção de direitos humanos e o ressarcimento ao erário.
No tocante ao acordo de leniência firmado com a Comissão de Valores Mobiliários, o escopo consiste na preservação do funcionamento regular e eficiente do mercado de capitais. Assim, os efeitos do acordo estão restritos às sanções administrativas impostas em decorrência da competência fiscalizatória da própria CVM, não havendo identidade com o fundamento das penalidades impostas pelo Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União no âmbito do processo administrativo de responsabilização.
Os acordos de leniência foram previstos em diferentes diplomas normativos, perante autoridades administrativas diversas e com negociações independentes, em virtude da particularidade de cada objeto jurídico tutelado perante a Administração Pública. As tratativas são desenvolvidas com independência e a critério das autoridades competentes conforme o bem jurídico tutelado, e a celebração de um acordo não depende da celebração de outros acordos nas demais esferas.
Da mesma forma em que explanado quanto aos acordos de leniência firmados perante o Cade, não há que se falar em bis in idem, uma vez que a prática do mesmo fato pode ofender o sistema financeiro nacional, o mercado de capitais e, ainda, atentar contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra os princípios da Administração Pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
O que não há é previsão normativa de “Acordo de Leniência’ feito exclusivamente pelo Ministério Público. No direito positivo, não há. E que não se diga que o art. 127 da Constituição o indica. Estamos a falar de escopos e atribuições diversas, com ferramentas diversas, justamente no sentido de permitir visão e atuação sistemáticas. Utilizar-se de fundamentos indiretos ou genéricos configura justamente o descompasso do sistema que o legislador construiu. A insegurança jurídica, talvez, venha justamente do não respeito ao sistema estabelecido. Em suma, do não respeito à norma positivada.
O artigo 131 da Constituição Federal prevê que cabe à Advocacia Geral da União a representação judicial e extrajudicial da União. A LC 73/1993 (BRASIL, 1993), no artigo 4º, inciso VI, estabelece como atribuições do Advogado Geral da União “desistir, transigir, acordar e firmar compromisso nas ações de interesse da União, nos termos da legislação vigente”.
Feito o Acordo de Leniência previsto na lei 12846/2013, de titularidade do Ministério da Transparência e Controladoria-geral da União, evidencia-se o porquê da participação suficiente da AGU no processo administrativo. Não só por expressa previsão legal, o que já seria suficiente, mas também porque se os “Acordos de leniência” transigirem acerca da não propositura da ação de improbidade administrativa, cuja titularidade pertence à Advocacia Geral da União ao representar a União, estará a AGU legitimada a fazê-lo pois pode, regra geral e por força de lei, como visto, celebrar acordos pela União.
A celebração do acordo de leniência pode acarretar o não ajuizamento da ação de improbidade administrativa em relação aos fatos descritos e objetos do acordo. A partir do momento em que a legislação atribuiu a competência para a instauração do processo administrativo de responsabilização ao Ministério da Transparência, e Controladoria-Geral da União e, o ajuizamento da ação de improbidade administrativa à Advocacia Geral da União, quando os atos de corrupção forem praticados em âmbito federal, tais entidades também detém a competência para negociar e eventualmente celebrar o acordo de leniência.
Com efeito, o artigo 17 da Lei 8.429/92 (BRASIL, 1992), define a legitimidade ativa para a propositura da ação de improbidade, e elenca, dentre os legitimados, a pessoa jurídica interessada. O interesse a que se refere a Lei de Improbidade Administrativa é aquele que diz respeito à relação jurídica de direito material, abrangendo o interesse direto e o indireto.
A diferença, destaca-se, é que apesar de tanto o ente como o Ministério Público terem legitimidade para o ajuizamento de ação de improbidade, apenas a Advocacia Pública respectiva poderá transigir quanto a seus interesses na seara civil. Neste campo a advocacia pública representa o ente, sendo vedado ao MP o fazer, pela mesma Constituição Federal que especifica os papéis das Funções Essenciais à Justiça.
Segundo a Desembargadora Federal Vânia Hack de Almeida, relatora do Agravo de Instrumento 5023972-66.2017.4.04.0000/PR, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, “Não há antinomia abrogante entre os artigos 1º e 2º da Lei nº 8.249/1992 e o artigo 1º da Lei nº 12.846/2013, pois, naquela, justamente o legislador pátrio objetivou responsabilizar subjetivamente o agente ímprobo, e nesta, o mens legislatoris foi a responsabilização objetiva da pessoa jurídica envolvida nos atos de corrupção”.
Repise-se, ainda, que o Ministério Público não tem poder para transacionar o processo administrativo de responsabilização, de titularidade do Ministério da Transparência e Controladoria Geral da União, levando em conta que não é cabível ao Parquet aplicar multas administrativas e sanções de inidoneidade às empresas.
Nesse sentido, há que se distinguir duas situações: a possibilidade de celebração do acordo de delação premiada com a pessoa física que praticou o fato que também possui natureza criminal e a celebração do acordo de leniência em virtude da responsabilidade administrativa da pessoa jurídica na prática de atos de corrupção, nos termos do artigo 16 da Lei nº 12.846/2013.
Neste ponto, importante diferenciar a delação premiada realizada pelo MPF do Acordo de Leniência. Apesar de possuírem algumas características em comum, como a figura do colaborador e a redução de sanções, não se confundem, tendo em vista o âmbito de sua aplicação diferenciado.
A colaboração premiada é instituto do direito penal, tendo por finalidade principal a obtenção de provas para fins de investigação. O delator é pessoa física e o benefício obtido tem reflexos diretamente na liberdade individual do sujeito colaborador. Devido à natureza do instituto, seu objetivo principal não é a reparação do dano, mas a obtenção célere de informações que possam funcionar em prol do Sistema Nacional Anticorrupção.
Neste sentido, percebe-se que o paralelismo entre a ratio que norteia a colaboração em meio ao processo penal, e aquela que fundamenta os acordos de leniência do Direito Administrativo Sancionador; em ambos, o que se busca é aumentar a carga de eficiência das investigações dos ilícitos que, por sua complexidade e nível de organização, oferecem dificuldades ao deslinde tão somente através da atuação do Poder Público. (FIDALGO e CANETTI, 2016, p. 351).
(...) Portanto, a Carta Magna conferiu ao parquet funções específicas, que lhe conferem, ao mesmo tempo, competências exclusivas (caso da promoção da ação penal pública), concorrentes (como a proteção do patrimônio público) e a de fiscal da aplicação da lei. Nada obstante, a promoção da responsabilização administrativa de pessoas jurídicas, nos termos previstos pela Lei 12.846/2013, é claramente a atividade que se insere na função executiva do Estado. Cenário diferente seria se o legislador tivesse optado pela via da esfera penal, como o fez para as condutas lesivas ao meio ambiente. Mas não é esse o caso. Trata-se de hipótese clássica do que a doutrina conceitua como o exercício do poder de polícia do Estado, em sentido estrito. (SIMÃO e VIANNA, 2017, p. 231/232).
A atuação do Ministério Público, portanto, dá-se no âmbito criminal e na seara civil da Lei nº 8.429/1992, não se confundindo com a atividade típica do exercício do poder de polícia pela Administração Pública e no exercício do poder sancionatório, instrumentalizado, dentre outras formas, pelo acordo de leniência previsto pela Lei Anticorrupção. Como é sabido, um mesmo fato pode configurar um ilícito penal, ato de corrupção e improbidade administrativa, acarretando responsabilidade nas três esferas, independentes entre si.
Nesse sentido é o entendimento manifestado pela Desembargadora Federal Vânia Hack de Almeida, relatora do Agravo de Instrumento 5023972-66.2017.4.04.0000/PR, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
Com efeito e, em suma, no âmbito das competências, parecem acertadas e harmônicas as normas integrantes do microssistema de combate à corrupção, uma vez que, na seara administrativa, a empresa dispõe do acordo de leniência (Lei 12.846/2013), enquanto na seara penal o instrumento é o acordo de colaboração, (Lei nº 12.850/2013), este alcançando, como visto, a pessoa física. Coerentemente, no primeiro, administrativo, a autoridade competente integra a Administração Pública Direta ou Autárquica, enquanto no segundo, penal, a atribuição é do Ministério Público.
A crítica ao sistema consiste no fato de que, em âmbito administrativo, tanto os atos de corrupção quanto os de improbidade são objeto do Direito Administrativo Sancionador, o que ensejaria bis in idem.
Ocorre que, conforme já explicitado, o combate à corrupção integra um microssistema, composto pela Lei Anticorrupção, pela Lei de Improbidade Administrativa e pela Lei de Organizações Criminosas. A integração desse sistema é extraída, além da natureza jurídica da sanção aplicada e da norma de responsabilização, do princípio da conformidade funcional, mediante o qual cada órgão de Estado deve exercer sua atribuição de acordo com o que estabelecido pelas leis e pela Constituição Federal. Não há bis in idem, assim como a um servidor público podem lhe ser aplicadas as penas de infração disciplinar, sem prejuízo das penas da Lei de improbidade administrativa caso o fato e/ou a conduta também se configure improbidade, conforme arts. 9, 10 e 11 do citado diploma.
Em suma, complexidade não quer dizer ausência de sistema e a multiplicidade de campos de responsabilização ou entes decorre muito mais da também complexa conceituação, configuração e identificação do fenômeno da corrupção, e da criatividade do corrupto, do que de uma vontade explícita e institucional de não atuar ou atuar mais.
Não se pode perder de vista que a corrupção é um problema social que se põe à resolução dos órgãos de controle pelos corruptos, servidores públicos e particulares, e não um problema gerado pelos órgãos de controle. Caso, em utópica visão, estivéssemos livres de corrupção, sequer se precisaria de um órgão de controle. Mas não é essa nossa realidade.