4 – Conclusão.
No presente texto destacou-se, de início, a motivação do mesmo, qual seja: o discurso geral de insegurança jurídica supostamente gerada pela multiplicidade de órgãos, sem maior preocupação de se especificar papéis e searas de responsabilização, no contexto dos chamados “Acordos de Leniência”. Tal visão pode ser verificada em diversas fontes como recentes sítios jurídicos na internet[1] e leva a manifestações generalistas como suposta solução[2].
Em segundo momento, dedicou-se a detalhar as competências e atribuições, ou a falta delas, das entidades diretamente envolvidas em tais acordos, para tentar melhor delimitar seus escopos e diferenças. Indicou-se, pois, que atuação harmônica, ou coordenada, não quer dizer, e nem poderia significar, órgãos fazendo absolutamente a mesma coisa em qualquer situação. As atuações devem se complementar, não necessariamente concorrer, como regra.
O’Donnell (1998) destaca que a questão de existência de autonomia e defesa de fronteiras com, por outro lado, existência de coordenação e trabalho conjunto é tão complexa quanto necessária. Ao ponto de O’DONNELL classificar a usurpação ilegal de autoridade de uma agência sobre outra agência como uma das duas formas ou direções principais de violação da accountability horizontal. A outra seria a obtenção de vantagens ilícitas obtidas por autoridade pública, ou, para o Autor, “corrupção”.
O Autor (1998, p. 47), para bem demarcar sua preocupação com a questão da usurpação de atribuições, indica que, no longo prazo, “a usurpação seja mais perigosa que a corrupção para a sobrevivência da poliarquia”, pois “uma utilização sistemática da primeira simplesmente liquida a poliarquia, enquanto a disseminação sistemática da segunda (corrupção) irá seguramente deteriora-la, mas não a elimina necessariamente”. Para o autor, a usurpação apresentaria, ainda, maior barreira ao surgimento de agências estatais autônomas típicas às poliarquias formalmente institucionalizadas.
Assim, a atuação harmônica das instituições de Estado quanto à responsabilização decorrente da prática de um mesmo fato atende ao interesse público, ao princípio da eficiência e à economicidade, uma vez que ocorre a utilização racional dos recursos e informações obtidas nas diversas searas e a integração dos agentes estatais responsáveis pelo combate à corrupção.
O arranjo necessário à eficiente atuação tem como norte, porém, o direito, em especial normas constitucionais e infraconstitucionais que estabelecem competências. Insegurança jurídica, parece, advém mais de desrespeito ao direito positivo do que da distribuição de searas de responsabilização. Evidentemente não se está a falar que todo o sistema está perfeitamente implantado. Longe disso. Diversas são as falhas, inclusive normativas. Ruídos entre as instituições são público e notórios, a exemplo da relação Ministério Público Federal e Polícia Federal, como mencionado por Rodas (2017).
Entretanto, é o respeito às normas basilares, às atribuições constitucionalmente definidas que permitirá o seguro caminhar da atuação estatal no combate à corrupção por suas várias ferramentas. O “Acordo de Leniência” é uma destas. Tais determinações de competência é que configuram e delimitam o sistema que se quer implementar. Não se respeitar norma, ou a imprevisibilidade institucional de seu respeito é demonstração categórica da falha do sistema em si, o que pode ser mais grave que a própria ocorrência do fenômeno da corrupção, este como a falha (social) esperada para solução via sistema.
Dessa forma, o combate à corrupção consiste em uma atuação conjunta das instituições de Estado, de maneira concatenada, não havendo que se falar em sobreposição necessária de ações, mas no compartilhamento de informações e no sequenciamento dos atos. As atribuições institucionais estão expressamente delimitadas pela Constituição Federal e pelas leis que integram o microssistema de combate à corrupção, excluindo-se, portanto, a ideia de insegurança jurídica ou qualquer espécie de vácuo normativo que possa acarretar a atuação desalinhada dos órgãos de Estado. Ao contrário, a atuação compartimentada e, ao mesmo tempo, integrativa, na medida em que as questões se correlacionam, torna efetivo o sistema.
Forte em O’Donnell, não se trata a cooperação ou colaboração do não exercício de atribuições por uma ou outra instituição. É o contrário. Devem todas exercer as suas e se complementar. Não exercer ou impedir que se exerça uma atribuição constitucional ou legal, por exemplo, significa usurpação que, no Estado Democrático de Direito, é tão ou mais grave que a corrupção.
Ao complexo fenômeno da corrupção não cabe solução única, pois são várias as configurações e consequências de tal fenômeno em nossa sociedade, levando-se a previsão de responsabilização múltipla em nosso ordenamento. “Culpar o sistema”, isoladamente, pela baixa eficiência no combate a corrupção, sem buscar o respeito ao estabelecido e às atribuições dos entes de accountability horizontal parece-nos, em especial ante “soluções generalistas”, querer exatamente que nada seja feito.
Não por menos Colaço (2009), após esclarecer sobre a evolução pós 1988 da Política de Controle da Gestão Federal, deixa claro que a crítica comum, e fundamentada, à estrutura de “múltiplas chibatas”, ou “múltiplas camadas de controle”, no sentido de vários órgãos realizando a mesma atividade de controle, gera efeitos negativos à gestão pública (COLAÇO, 2009, p. 101-104), o que a torna legítima. Entretanto, após evolução dos órgãos de controle fortalecidos ou criados pela Constituição de 1988, inclusive com atribuições ali definidas, imprescindível que a atuação dos órgãos de controle seja coordenada e complementar (ou sequencial), ou seja, que diferentes aspectos sejam controlados de forma combinada.
A recomendação se aplica, parece, de forma clara ao uso do instituto da Leniência. Colaço (2009) salienta que o objetivo da coordenação, ou compreensão sistemática dos papéis, evitará super-dosagem, redundância ou a presença de lacunas graves no processo de controle (acrescentamos que efetivamente se evita desperdício de recursos públicos). E isso quer dizer que não será efetiva estratégia de controle fundada apenas na presença de múltiplos atores controlando o mesmo aspecto.
Em conclusão, a complexidade da atuação de controle demanda multiplicidade de atores. Tal multiplicidade foi definida, em grau, pela Constituição Federal, estabelecendo-se, ali, as atribuições fundantes. Entretanto, a todo o ordenamento jurídico, ou seja, normas infraconstitucionais incluídas, cabe sistematizar o uso das ferramentas de combate à corrupção existentes, transformando-se o potencial acúmulo ou repetição não econômica de atuações, em coordenado e mais efetivo exercício de competências de controle. É possível, pois, um arranjo institucional adequado no complexo e novo sistema dos Acordos de Leniência. O “arquiteto”, porém, é o direito positivado.
5 - Referências:
ARAÚJO, Kleber Martins de. Processo Administrativo de Responsabilização. Lei Anticorrupção e temas de compliance. Salvador: Editora JusPodivm, 2016, 2ª ed.
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Notas
[1] Por exemplo, a reportagem do site TV Migalhas: Acordo de leniência: Multiplicidade de órgãos envolvidos gera insegurança a empresas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI241885,71043-Acordo+de+leniencia+Multiplicidade+de+orgaos+envolvidos+gera>.
[2]Como a apresentada pelo site da Folha de São Paulo, na reportagem: Governo quer balcão único para negociar acordos de leniência. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/07/1905533-governo-busca-balcao-unico-para-negociar-com-empresas-sob-suspeita.shtml>.