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A transferência de embriões excedentários heterólogos após a dissolução da sociedade conjugal

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3.POSICIONAMENTO DO CÓDIGO CIVIL

3.1.Código Civil de1916

Se a interpretação de normas editadas em contexto histórico e social diverso daquele em que ocorre a situação fática muitas vezes dificulta a atividade do aplicador, os obstáculos se tornam ainda maiores se, ao tempo da edição, sequer se imaginava a possibilidade de determinado evento ocorrer. É o que acontece, por exemplo, com as técnicas de reprodução humana assistida, surgidas em meados do século passado, muito depois, portanto, do advento do Código Civil de 1916.

Por esse motivo, não havia como esse diploma legal disciplinar matérias relativas à inseminação artificial e à transferência de embriões excedentários.

Desse modo, restava ao intérprete, tão somente, fazer a subsunção do caso concreto às normas legais até então existentes, o que, dada a desatualização destas, poderia gerar decisões controvertidas em face à atual realidade técnica, científica e, sobretudo, social.

O Código Civil de 2002, disciplinando apenas superficialmente a matéria, deixa várias lacunas que terão que ser decididas pelo intérprete à luz do caso concreto. É o caso da transferência de embriões excedentários heterólogos após a dissolução da sociedade conjugal, tema do presente artigo, do qual pelo menos dois aspectos devem ser retirados para análise mais aprofundada.

O primeiro é a relação de parentesco entre a criança e o doador do material fertilizante. O outro aspecto envolve a transferência de embriões após a dissolução da sociedade conjugal, que, subsidiariamente, exige a análise da necessariedade e da essencialidade da autorização do cônjuge.

O Código Civil de 1916 dedica os art. 330 a 405 às relações de parentesco, objeto do Título V do mencionado diploma.

Com relação à filiação, a referida codificação, como era de se esperar, haja vista a época de sua elaboração, não previu a transferência de embriões heterólogos.

Desse modo, qual seria a solução jurídica para o caso concreto em que um dos cônjuges, após a dissolução da sociedade conjugal, viesse a realizar a transferência de embriões heterólogos?

Assim dispõe o Código Civil de 1916:

Art. 338. Presumem-se concebidos na constância do casamento:

(...)

II – os nascidos dentro nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação.

Nascendo em até trezentos dias, após a dissolução da sociedade conjugal, presumir-se-á concebido na constância do casamento. Decorrido este prazo, a criança não seria filha do casal, mas de apenas um dos ex-cônjuges, o que, a rigor, só poderia ser legalmente admitido se considerada a Constituição Federal de 1988 (CF/88), que reconhece a família monoparental.

Esta interpretação parece pouco recomendada, haja vista que dois embriões fertilizados em uma mesma época, porém transferidos em momentos distintos teriam tratamentos desiguais, que variariam em função do nascimento da criança. A nascida dentro do prazo legalmente instituído iria usufruir de todos os benefícios advindos da filiação legítima, a outra, apenas por ter nascido após aquele prazo, não seria filha do casal.

À luz do dispositivo normativo acima mencionado, pouco importa a origem do embrião (homólogo ou heterólogo) para a presunção de concebidos na constância do casamento. Do cotejo com o tratamento dispensado à adoção pelo art. 376 do Código Civil de 1916, onde ocorria a quebra da relação de parentesco entre o adotado e seus pais genéticos (sendo mantidos, apenas, os impedimentos matrimoniais), pode-se concluir que, mutatis mutandis, deveria ocorrer o mesmo entre a criança e o terceiro doador do material genético. Assim, não seria reconhecida qualquer relação de parentesco entre os dois, sendo mantidos os impedimentos matrimoniais.

Digna de grifo era a dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de se garantir esses impedimentos em face do anonimato, ínsito às técnicas de reprodução humana assistida.

Também estava esvaziada de importância a manutenção do material embrionário após a dissolução da sociedade conjugal, sendo necessário para a presunção de concebidos na constância do casamento apenas a época de nascimento da criança.

Situações como esta mereceram uma melhor disciplina no Código Civil de 2002. É o que será abordado no próximo sub-item.

3.2.Código Civil de 2002

O Código Civil de 2002 disciplina o tema da filiação – um dos capítulos do subtítulo Relações de Parentesco – nos artigos 1596 a 1606.

No que tange a esse assunto, é inegável que valiosas inovações foram trazidas em relação a seu antecessor, porém o novel diploma ainda não trata da matéria com a devida profundidade, pois deixou muitas lacunas que, por certo, serão preenchidas pelos tribunais e que, inexoravelmente, ensejarão uma futura disciplina legal.

O art. 1597, inc. II, do Código Civil de 2002, atualizando o art. 338, inc. II, do Código Civil de 1916 dispõe:

Art. 1597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

(...)

II – Nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento.

Diante da existência, neste mesmo artigo, de incisos específicos acerca da inseminação artificial e de embriões excedentários, fica clara a intenção do legislador em direcionar essa norma aos nascidos mediante o método natural de reprodução humana.

O inciso III do mencionado artigo reza que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido.

Vale salientar que a expressão fecundação artificial, trazida no dispositivo citado, abarca duas técnicas distintas: a inseminação artificial e a transferência de embriões. Como já explicado, a primeira é também chamada de fertilização in vivo, a outra, fertilização in vitro.

Sem dúvida, no mencionado inciso ocorreu uma atecnia do legislador, que quis, em verdade, se referir à inseminação artificial. Pelo menos dois argumentos podem ser utilizados para fundamentar esta tese.

O primeiro considera o disposto no inciso IV: (presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos) havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários decorrentes de concepção artificial homóloga. Não fosse a interpretação ora defendida, os dois incisos (III e IV) versariam sobre a mesma matéria, sendo que o inciso III o faz implicitamente, pois cita uma técnica (fecundação artificial) que engloba a outra (transferência de embriões), enquanto o inciso IV traz expressamente o método a que se refere. Ademais, no inciso III, indiretamente, está se considerando a qualquer tempo, tal qual o item que o sucede.

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Outro argumento é que o inciso III só se refere a marido, o que só faz sentido se o dispositivo quiser se referir, apenas, à inseminação artificial. Se intencionasse abranger também a transferência de embriões, considerando que esta técnica pode ser usada por qualquer um dos cônjuges mesmo após a morte do outro, jamais poderia se restringir ao marido.

Na leitura do inciso IV, verifica-se que o legislador se referiu apenas aos embriões excedentários decorrentes de concepção artificial homóloga, excluindo do tratamento legal os embriões heterólogos.

Trilhando nesse raciocínio e considerando a seqüência lógica traçada no artigo, isto é, inseminação artificial homóloga (inc. III), embriões excedentários homólogos (inc. IV) e inseminação artificial heteróloga (inc. V), a presunção da concepção na constância do casamento de filhos havidos da transferência de embriões excedentários heterólogos deverá, ter tratamento expresso, de lege ferenda, pelo legislador.

Os tribunais devem enfrentar tal matéria construindo uma interpretação do dispositivo em consonância com os ditames da preservação do princípio da dignidade da pessoa humana.


4.POLÊMICAS ACERCA DA MATÉRIA

4.1.Reprodução Humana Assistida e União Estável

No ordenamento jurídico brasileiro, não há qualquer impedimento legal em relação ao fato de casais que mantenham uma união estável venham a constituir livremente sua descendência. Ao contrário, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, §3º, erige a união estável à entidade familiar:

Art. 226

(...)

§3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Diante disso, pode-se afirmar que a exigência de vínculo matrimonial para os casais que venham a se submeter às técnicas de reprodução assistida constitui um desrespeito às normas constitucionais, uma postura manifestamente discriminatória e descabida, embora adotada por países como Áustria, Japão, Coréia, Egito, Líbano, Singapura e África do Sul, conforme ensinam Sérgio Costa, Gabriel Oselka e Volnei Garrafa [13].

A família decorre tanto do casamento quanto da união estável, e não é a formalidade de relação entre os casais que servirá de parâmetro para aplicação dos métodos reprodutivos em questão. Deve-se considerar, nestes casos, a estabilidade e a afetividade do casal, que será o suporte emocional que permitirá o crescimento saudável da criança [14]. O casamento, em si mesmo, não é garantia de um ambiente familiar adequado ao desenvolvimento da prole do casal.

4.2.A Filiação Sócio-Afetiva

A filiação representa um dos direitos fundamentais do ser humano, já que é um vínculo indispensável ao adequado desenvolvimento de sua personalidade. O desconhecimento acerca de suas origens pode levar a danos muitas vezes irreparáveis no que tange à formação de sua própria identidade.

Sob o aspecto do Direito, a filiação é um fato jurídico que abrange todas as relações e, respectivamente, sua constituição, modificação e extinção, que tenham como sujeitos pais e filhos [15].

Em tempos remotos, costumava-se asseverar que a maternidade era sempre certa (mater semper certa est), ao contrário da paternidade, muitas vezes imprecisa (pater semper incertus est). Com o advento das técnicas de reprodução humana assistida, entretanto, pode-se afirmar que tais princípios, anteriormente tidos como verdades absolutas, foram sendo relativizados.

Diante do avanço da Engenharia Genética e da Biotecnologia, avulta de importância o esclarecimento da noção de filiação afetiva. Tal conceito nem sempre coincide com a filiação biológica ou genética, pois considera os laços de amor e carinho existentes nas relações familiares. Nesse sentido,

Segundo José Roberto Moreira Filho, pela atual orientação doutrinária, o pai e a mãe não se definem apenas pelos laços biológicos que os unem ao menor e sim pelo querer externado de ser pai ou mãe, de então assumir independentemente do vínculo biológico, as responsabilidades e deveres em face da filiação com a demonstração de afeto e de bem-querer ao menor. Para o referido autor, partindo dessa premissa, poderemos definir a filiação do nascituro concebido por técnicas reprodutivas artificiais, tanto pelo aspecto biológico, quanto pelo aspecto sócioafetivo.

O Direito não pode permanecer alheio a esse novo desafio que lhe impõem as circunstâncias sociais. Neste sentido, preleciona o professor Sílvio de Salvo Venosa:

De qualquer modo, no campo do Direito, por maior que seja a possibilidade da verdade técnica, nem sempre o fato natural da procriação corresponde à filiação como fato jurídico. O legislador procura o possível no sentido de fazer coincidir a verdade jurídica com a verdade biológica, levando em conta as implicações de ordem sociológica e afetiva que envolvem essa problemática. [16]

Frente ao exposto, convém examinar as repercussões da filiação afetiva no que tange à transferência dos embriões excedentários decorrentes da fertilização in vitro heteróloga após a dissolução da sociedade conjugal.

4.3.Consentimento Informado e Ação Negatória de Paternidade

Em face do critério sócio-afetivo acima explanado, pode-se perceber que a filiação definida apenas pelo critério biológico revela-se insuficiente diante da nova realidade tecnológica pós-moderna. A utilização de técnicas de reprodução humana assistida fez surgir uma modalidade peculiar de vínculo, visto que a maternidade e a paternidade advêm não da conjunção carnal, mas sim de um querer expressamente destinado a este fim. Destarte, a vontade do casal é fator determinante e indispensável ao surgimento da relação entre os pais e a criança gerada mediante as técnicas supracitadas, tendo em vista os princípios constitucionais da paternidade responsável e do livre planejamento familiar. Neste sentido, pondera a Professora Mônica Aguiar em sua tese de doutorado:

O critério biológico é relevante para que se possa atribuir essa responsabilidade, na relação paterno-filial, àquele que deu ensejo ao nascimento. Se o dado biológico tem esse peso na concepção sexuada, impõe-se, para a geração levada a efeito sem prévia conjunção carnal, a redefinição do valor e dos efeitos que a vontade deve ter, mantido, de qualquer sorte, o critério da responsabilidade, no sentido de que a paternidade e a maternidade devem ser exercidas com o cumprimento dos direitos e deveres a ela inerentes, e com vistas à proteção dos interesses da criança, seja qual for a forma de procriação. [17]

Diante disso, cumpre analisar a forma por meio da qual essa vontade é exteriorizada, tornando-se idônea a produzir efeitos na ordem jurídica, ou seja, o chamado consentimento informado.

Insta salientar que a única norma que se refere ao consentimento é a Resolução do CFM nº 1358/92, uma vez que o Código Civil (art. 1.597, V) estabelece a necessidade de prévia autorização apenas nos casos de inseminação artificial heteróloga, sendo, portanto, omisso no tocante à ectogênese heteróloga. A referida resolução disciplina esta matéria nos seguintes termos:

O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores. Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os resultados já obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será em formulário especial, e estará completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil.(grifos nossos)

Dada a obrigatoriedade do consentimento, é imperioso questionar qual a extensão do seu âmbito de vigência temporal frente à dissolução da sociedade conjugal. Seria este consentimento irretratável, mesmo após a morte, separação judicial ou de fato, ou divórcio?

Diante da lacuna existente no ordenamento jurídico brasileiro, e em respeito ao princípio constitucionalmente consagrado do livre planejamento familiar, os efeitos do consentimento prestado voluntariamente por ambos os cônjuges devem ser permanentes, é dizer, o consentimento é irretratável. Senão vejamos.

O Art. 1.597, IV, do Código Civil dispõe:

Art. 1.597 – Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; (grifo nosso)

Da leitura do inciso transcrito, pode-se inferir que o legislador disciplinou tão-somente os casos de fertilização in vitro homóloga, estabelecendo, ao utilizar a expressão a qualquer tempo, que, independentemente do momento da transferência (na constância do casamento ou da união estável, ou após a dissolução destes), a criança gerada em decorrência do procedimento procriacional será presumidamente filha do casal.

Ocorre, porém, que o fundamento do vínculo paterno-filial oriundo da ectogênese homóloga é o mesmo que o da heteróloga, a saber: a vontade procriacional inequívoca. A única diferença existente ente as duas técnicas citadas é, simplesmente, a origem dos gametas. Ora, estabelecer um tratamento distinto entre ambas ao prever a presunção em apreço exclusivamente para a fertilização in vitro homóloga, excluindo da previsão legal a técnica heteróloga, implica na adoção do critério biológico, notadamente insuficiente para nortear as relações advindas das modernas técnicas de reprodução assistida. Como já exposto anteriormente, é o critério sócioafetivo o único idôneo a enfrentar a mudança de paradigma trazida para o Direito de Família com os hodiernos métodos procriacionais artificiais.

Neste diapasão, a solução para a problemática em análise encontra guarida na Lei de Introdução ao Código Civil em seu art. 4º: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. (grifo nosso)

Desta forma, a disposição contida no inciso IV do art. 1.597 do Código Civil deverá ser aplicada analogamente aos casos de ectogênese heteróloga. O consentimento torna-se, por conseguinte, irretratável, visto que a criança gerada, a qualquer tempo, gozará da presunção prevista no diploma legal.

No entanto, de lege ferenda, esta situação deve ser devidamente revista pelo legislador, de modo que haja a exigência do consentimento informado expresso em relação ao emprego de ambas as técnicas, tanto no momento do início do procedimento, quanto à época da realização efetiva de cada transferência.

Tal regramento possibilita uma solução mais satisfatória para os casos de dissolução da sociedade conjugal, visto que será permitido a um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros revogar seu consentimento anterior. Este entendimento encontra-se em consonância com o magistério de Fernando Abellán:

En los casos, como el aquí analisado, en los que la realización de la técnica de reproducción asistida se lleva a cabo a lo largo de momentos muy diferentes de la relación personal existente entre los miembros de la pareja, parece conveniente, después de la separación una revalidación por parte de ambos del consentimiento prestado inicialmente, mediante la que los progenitores ratifiquen su deseo de procreación.

Y ello porque es presumible que lá situación afectiva de la pareja y sus deseos comunes de procreación no sean los mismos al tiempo de la obtención de los ovocitos de la esposa y de su fecundación, momento en el que decidieron la criopreservación de los embriones sobrantes, que tras la separación conyugal, instante éste en que los caminos se bifurcan y los proyectos comunes decaen. [18]

Entretanto, em caso de dissolução da sociedade conjugal, bem como dissolução da união estável, se, sem embargo disso, ambos os ex-cônjuges ou ex-conviventes concordam com o emprego da técnica de reprodução assistida, não há motivos para negar-lhes a possibilidade de transferência dos embriões. Tal afirmação pode ser justificada com base no art. 1.622, parágrafo único, do Código Civil de 2002 e no art. 42, §4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os quais possuem redação idêntica:

Art. 1.622.

(...)

Parágrafo único- os divorciados e os judicialmente separados poderão adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas, e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância da sociedade conjugal.

Destarte, infere-se que as disposições mencionadas acabam por autorizar, analogamente, a possibilidade de casais que se encontrem nas condições descritas se valerem do mesmo direito, transferindo os embriões oriundos da constância do casamento e realizando, assim, seu desejo de conceber uma prole comum.

Assim, resulta evidente que a mudança da affectio maritalis conduz à necessidade da ratificação do desejo de procriar para que haja a formação do vínculo paterno-filial, sob pena da caracterização de uma família monoparental.

Imaginemos o seguinte exemplo: homem e mulher, casados, ambos inférteis, decidem empregar a técnica da reprodução assistida para procriar. Depois de algumas tentativas sem sucesso, decidiram pela criopreservação dos embriões excedentários heterólogos. Dois anos após esta decisão, ocorre a dissolução do vínculo matrimonial. Passados cinco anos do desenlace, a mulher resolve utilizar o embrião criopreservado para ter um filho. O homem, por já estar envolvido em outro relacionamento, não anui com o intento da ex-esposa, deixando de ratificar o seu consentimento anteriormente oferecido. Assim, se a mulher levar a cabo a transferência do embrião e der a luz à uma criança, somente a maternidade estará definida, havendo a configuração de família monoparental.

Mas, como tornar tal procedimento exigível? Cumpre analisar como ocorre, atualmente, o processo para utilização da transferência dos embriões excedentários nas clínicas que trabalham com RA.

De acordo com entrevista realizada pelo grupo na clínica de reprodução humana assistida CENAFERT, com a Dr. Maria Cecília, constatou-se que se costuma empregar o consentimento informado, no qual o casal deve conceder sua assinatura demonstrando conhecimento de todas as nuanças do processo. Não se trata, pois, de um contrato no sentido clássico do termo, embora, ainda segundo a médica, existam certas clínicas que empreguem tal acordo.

Atualmente, tal consentimento informado exige autorização para o procedimento da fertilização apenas uma vez. Contudo, de acordo com explicações já salientadas neste trabalho, vislumbra-se a importância de ser(em) exigida outra(as) autorização(ões), tantas quantas necessárias, no momento mesmo da transferência dos embriões. Respeita-se, assim, a chamada vontade complexa, isto é, a vontade do casal considerada como ente único, no qual cada manifestação funciona como parte indispensável para formação do todo. Logo, a vontade solitária de cada consorte não tem valor neste sentido.

Ademais, recomenda-se, de lege ferenda, que seja elaborado um formulário padrão a ser adotado pelas clínicas no desenvolvimento deste procedimento. A fiscalização deve ser feita pelo Ministério da Saúde, o qual será responsável por zelar pela idoneidade do processo. As clínicas ficam, portanto, obrigadas a consultar a vontade dos sujeitos, ressaltando-se que se, por acaso, desrespeitem tal comando, estão sujeitas às multas abstratamente cominadas pela lei. Estas atitudes fariam com que, certamente, houvesse uma maior proteção à vontade dos casais, visto que esta é o fundamento do vínculo a ser formado.

Outra conseqüência da adoção do critério sócioafetivo de filiação é a inadequação da ação negatória de paternidade no tocante ao questionamento da existência do vínculo jurídico da filiação oriunda das técnicas de RA.

De fato, a ação referida seria uma contradição à anuência anterior expressa constante do documento de consentimento informado. Além disso, a impugnação da paternidade iria de encontro à Teoria do Ato Próprio – venire contra factum proprium –, segundo a qual é inadmissível que alguém exercite uma faculdade em sentido contrário a um comportamento anteriormente adotado. Nesta linha:

Ao prestar consentimento necessário à realização de ato médico destinado à procriação assistida, a pessoa exerce um direito potestativo apto ao estabelecimento de uma situação jurídica de filiação, que não pode mais, por sua vontade em sentido oposto, desconstituir. [19]

O art. 1.601 do Código Civil prevê a ação negatória de paternidade, declarando, ainda, sua imprescritibilidade. Contudo, o legislador ordinário não fez referência à impropriedade de tal ação para os casos decorrentes das técnicas de reprodução assistida. A omissão constatada, de lege ferenda, deve ser suprida por meio da introdução de um novo parágrafo ao art.1.601, que passará, portanto, a ter a seguinte redação:

Art. 1.601- Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível.

§1º- Contestada a filiação, os herdeiros do impugnante têm direito de prosseguir na ação.

§2º- É proibida essa impugnação, em relação ao nascido em decorrência de técnica de reprodução assistida [20], quando haja o cônjuge livremente consentido no emprego desta técnica médica.

Em face disso, é necessário que o legislador atente para as deficiências constantes do texto do código civil vigente, com o fito de adaptá-lo às novas necessidades sociais.

4.4.Maternidade e Paternidade Post Mortem

Uma vez exarada a vontade de realizar o procedimento de fertilização heteróloga, é necessário que se recorra a um segundo consentimento, quando da efetiva transferência dos embriões excedentários. Justifica-se tal assertiva por força da já citada vontade complexa.

Destarte, se um dos cônjuges ou conviventes vier a falecer depois de concedida a autorização para se iniciar o procedimento de fertilização in vitro, sem que, no entanto, tenha havido a transferência de embriões excedentários oriundos na constância do casamento, não haverá presunção de paternidade ou de maternidade. Isto porque seria necessária a ratificação do consentimento anterior para a formação do vínculo paterno-filial, o que, no caso em apreço, é impossível dado o falecimento de um dos cônjuges ou companheiros, que, obviamente, não poderá manifestar sua vontade.

Sobre os autores
Gabriel Dias Marques da Cruz

Bacharelando em Direito pela Universidade Federal da Bahia

Bianca Bárbara Malandra Carneiro

bacharelanda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Caroline Marinho Boaventura Santos

bacharelanda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Eduardo Antonio Costa Parada

bacharelando em Direito pela Universidade Federal da Bahia

Iuri Falcão Xavier Mota

bacharelando em Direito pela Universidade Federal da Bahia

Juliana Sousa Feitoza

bacharelanda em Direito pela Universidade Federal da Bahia

Manuelita Hermes Rosa Oliveira Filha

bacharelanda em Direito pela Universidade Federal da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Gabriel Dias Marques; CARNEIRO, Bianca Bárbara Malandra et al. A transferência de embriões excedentários heterólogos após a dissolução da sociedade conjugal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 619, 19 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6464. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Trabalho apresentado na disciplina Direito de Família, ministrada pela Prof. Nilza Reis, na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

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