INTRODUÇÃO
Em todos os lugares, muito tem se questionado sobre a eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais. Influenciados por esta preocupação e somada à crise constitucional vivida pelo Brasil anteriormente à promulgação da vigente Carta Magna, os membros da Assembleia Nacional Constituinte apresentaram propostas a fim de que os direitos e garantias constitucionais não passassem de mero aconselhamento aos governantes, sem apresentar qualquer tipo de sanção para aqueles que descumprissem os seus preceitos.
Essas propostas tinham em mente a resolução de um diagnóstico que, levando-se em consideração as Constituições anteriores, revelavam o descrédito da Constituição em efetivar as conquistas empreendidas pelo texto legal, cujos programas já se encontravam direcionados no texto de suas normas. Afinal de contas, as conquistas, numa ordem constitucional democrática, não se medem pelo volume ou abrangência delas, mas pela maior efetividade que faça alcançar as suas normas.
Tendo em vista essa necessidade e em simetria com o sistema de controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos, foi inserida no texto da Constituição de 1988 uma forma de controle das omissões inconstitucionais: o mandado de injunção.
Contudo, a aplicação do mandado de injunção foi durante muito tempo hostilizada sob o argumento básico de que, dando-se ao Judiciário a prerrogativa de poder aplicar o direito previsto constitucionalmente quando verificada a sua não regulamentação pelas vias executivas ou administrativas, estaria ocorrendo a interferência de um Poder sobre o outro, não desejada pela Constituição, o que afetaria a harmonia dos Poderes prevista no artigo 2º da Carta Magna.
Tais implicações serão feitas no primeiro capítulo deste trabalho, de forma sucinta e sem quaisquer pretensões de esgotar o assunto acerca do mandado de injunção
O próximo passo a ser dado será, no capítulo seguinte, a identificação dos posicionamentos doutrinários existentes acerca do mandado de injunção, especificando os seus principais elementos e limitações.
No terceiro capítulo, apresentar-se-á um resumo dos principais julgados em sede de mandado de injunção realizados perante o Supremo Tribunal Federal, apresentando os entendimentos jurisprudenciais defendidos por aquele tribunal.
Por ora, o que pode ser colocado, e como uma das razões para feitura de um capítulo exclusivo para a análise destes julgados, é que, por muito tempo, o STF emprestou ao mandado de injunção os mesmos efeitos perseguidos pela inconstitucionalidade por omissão. Precedente aberto com o julgamento de questão de ordem suscitada no Mandado de Injunção 107, o que demonstra a apatia inicial do Supremo para com a nova garantia.
Diante de toda essa problemática, enfrentar-se-á essas questões, definindo a natureza jurídica da decisão proferida em sede de mandado de injunção e o problema das normas programáticas, especialmente quanto à possibilidade de sua efetivação ao caso concreto mediante mandado de injunção.
Além disso, será feita uma analisa na postura atual do Supremo Tribunal Federal – ativismo judicial - e a garantia do princípio da Separação de Poderes, dentro da perspectiva do Estado Democrático de Direito.
Portanto, serão essas as discussões travadas em torno do tema, ou seja, é a justificativa encontrada para a defesa incondicional do mandado de injunção de forma a abarcar todas as normas previstas na Constituição, por entendermos ser essa garantia um dos instrumentos que asseguram o efetivo exercício da cidadania, entendida aqui como pressuposto da democracia participativa.
No presente trabalho fora realizada uma ampla consulta às diversas doutrinas, sítios, artigos e periódicos no que tange ao tema Mandado de Injunção, além da consulta dos julgados mais polêmicos na Suprema Corte, procurando obter um posicionamento crítico a fim de atingir o pretendido no presente trabalho.
1. GARANTIA CONTRA A OMISSÃO INCONSTITUCIONAL: MANDADO DE INJUNÇÃO
Com o objetivo de atender ao reclamo geral que objetivava a busca por maior efetividade da Constituição, pois, em regimes passados, as normas constitucionais pereciam por inércia do legislador em regulamentar os direitos delas decorrentes, foi criado pela Constituição de 1988 o mandado de injunção.
Diante disso, pode-se perceber que o mandado de injunção foi concebido como um remédio para tentar resolver uma dramática patologia nacional: o descrédito da Constituição causado pela inércia do legislador em regulamentar direito nela previsto, como forma de garantir a realização concreta do referido direito.
A Constituição de 1988 prevê o mandado de injunção no inciso LXXI do artigo 5º, in verbis:
conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;
O Poder Judiciário, por força do remédio constitucional representado pelo mandado de injunção, irá fazer a integração do direito previsto constitucionalmente, inviabilizado que está por falta de norma infraconstitucional que o regulamente.
Aqui reside justamente a grande celeuma que envolve a garantia: a possibilidade prática de concretização imediata do pedido efetuado por intermédio do mandado de injunção.
A título de exemplo, entendem alguns[1] que poderá o órgão incumbido de regulamentar a diretriz, requerer ao Poder Judiciário um prazo mínimo para regular a norma, caso em que poderia haver tempo suficiente para adequar a norma constitucional aos aspectos fáticos que se apresentarem.
No entanto, pode-se afirmar que a vontade do legislador constituinte foi no sentido de fazer com que as decisões emanadas do Judiciário operassem efeitos apenas inter partes, constituindo o direito daquele que vai a juízo em busca de garantir uma pretensão que ele tenha como certa.
Enfim, mesmo que haja alegações sobre a possibilidade de ingerência do Poder Judiciário em atribuições tidas como legislativas, é certo que nada está disposto na Constituição quanto aos limites de ingerência entre os Três Poderes.
Mais certo ainda, como medida de freios e contra-pesos existentes entre os Poderes da República, a Constituição prevê o mandado de injunção, cabendo ao Judiciário providenciar meios adequados para que o problema seja sanado, não havendo, com isso, ingerência arbitrária de um Poder sobre outro.
Portanto, a inclinação até aqui feita é no sentido de demonstrar o caráter constitutivo da decisão proferida em matéria de mandado de injunção. Não merecendo aplausos o entendimento daqueles que defendem a tese da subsidiariedade do mandado de injunção aos efeitos da inconstitucionalidade por omissão por se mostrar completamente inócua e destituída de sentido lógico, pois, ninguém melhor do que o órgão omisso sabe que vem se omitindo, e a simples ciência da omissão não configuraria obrigatoriedade.
2. POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS ACERCA DO MANDADO DE INJUNÇÃO
Quando do surgimento do mandado de injunção no constitucionalismo brasileiro, logo apareceram diversas opiniões divergentes acerca dessa inovação, podendo ser identificados, segundo Francisco Antônio de Oliveira, levando-se em conta as peculiaridades individuais de cada doutrinador, três posicionamentos doutrinários:
a) a que vê como seu objeto o de atribuir, para o caso específico do impetrante, o direito cujo exercício esteja obstado em virtude de falta de regulamentação; b) a que entende que o mandado tem por finalidade provocar a edição de norma geral para o seu exercício, pelo próprio Tribunal, para todos os casos na situação do impetrante; e c) a que entende que ele encerra pela declaração da mora constitucional a determinação para que o Poder Legislativo a faça, sem efeito executivo. (OLIVEIRA, Francisco Antônio de. 1993).
Tal celeuma doutrinária, que dividiu o mandado de injunção em três posicionamentos, conforme visto acima, se prendeu primeiramente ao fato de que o inciso LXXI do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/88 é impreciso e, por último, porque não há lei especifica sobre a matéria.
Isso fez com que a doutrina e a jurisprudência ficassem vacilantes ao edificarem os princípios norteadores para a sua compreensão, não conseguindo encontrar solução pertinente com a vontade legislativa em virtude da novidade que o mandado de injunção representou, naquele momento, na ordem jurídica brasileira.
Quanto à necessidade de lei específica sobre a matéria, com o objetivo de tornar o mandado de injunção norma autoaplicável e de eficácia plena, está assente na doutrina a sua desnecessidade, como pode ser percebido na opinião de Sérgio Reginaldo Bacha, transcrita abaixo:
(...) não é de todo absurdo afirmar que seria retrocesso sujeitar-se no instituto do mandado de injunção à condição de norma de eficácia contida e aplicabilidade imediata, na classificação fornecida por José Afonso da Silva, ou na cita de Bastos e Ayres Brito como norma regulamentável.
Se assim fosse, estar-se-ia condenando a uma situação de procrastinação algo que veio justamente para espancar do ordenamento jurídico as incontáveis normas que, na realidade, se constituem em verdadeiros nati morto, pois nunca galgaram patamar algum, pelo contrário, ficaram no papel, foram letras mortas, não passaram do status de normas eternamente programáticas, maculando a Constituição como carta de faz de conta. Então, de forma prudente, poder-se-ia afirmar que o não reconhecimento do instituto em pauta, como sendo de eficácia plena e aplicabilidade imediata, ou da classe das normas irregulamentáveis, seria o mesmo que tachá-lo de ‘promessas de promessas’. (BACHA, Sergio Reginaldo. 1998)
Dessa forma, pode-se perceber que a ausência de norma específica regulamentadora não deve obstaculizar a sua imediata aplicabilidade, haja vista a peremptória disposição do § 1º do artigo 5º, dispondo que as “normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata”.
Ademais, como que uma pá de cal sobre aqueles que assim não entendem, Carlos Mário da Silva Veloso nos apresenta um argumento que, de longe, abate todo e qualquer posicionamento contrário, afirmando que, in verbis:
(...) não há duvida de que a norma instituidora do mandado de injunção é de eficácia plena, assim de aplicabilidade imediata, porque não depende de legislação posterior para a sua operatividade. O procedimento a ser adotado é o do Código de Processo Civil, vale dizer, o ordinário, possibilitando-se ao interessado a produção de prova. Mas, se os fatos puderem ser comprovados de plano, nada impede a adoção do rito do mandado de segurança. (VELOSO, Carlos Mário da Silva)
Superada a questão da aplicabilidade imediata da norma constitucional do mandado de injunção, e voltando aos posicionamentos doutrinários inicialmente identificados, subvertendo a ordem apresentada, far-se-á a análise dessas três posições doutrinárias, no intuito de apresentar o panorama dos diversos posicionamentos acerca do provimento que se deve perseguir em sede de mandado de injunção.
2.1 – Mandado de injunção como subsidiário aos efeitos da Inconstitucionalidade por omissão
O primeiro entendimento considera o mandado de injunção subsidiário da inconstitucionalidade por omissão, ou seja, o Judiciário declararia a mora regulamentar do Poder omisso, ordenando-o, mas não obrigando a legislar quando se tratar do Poder Legislativo.
Alguns autores afirmam que as sanções pelo descumprimento da ordem seriam várias a depender do órgão emissor da norma, conforme o entendimento abaixo:
Se se tratar de autoridade administrativa, é perfeitamente lícita a comunicação de prazo para que haja, sob pena de ver-se incursa na figura delituosa do descumprimento de ordem judicial. Se a omissão for legislativa, a procedência do Mandado de Injunção formalizará claramente a possibilidade daquele poder que, se não desonerar-se do dever que lhe incumbe, sujeitar-se-á a sanções que pode ser desde uma ação de indenização contra o Estado com vistas à reparação dos danos sofridos pelo impetrante, com possível ação de regresso contra os agentes causadores do dano, até sanções de cunho extra-jurídico, mas para as quais a decisão judicial muito embora, consiste na não-recondução daqueles legisladores faltosos. (Oliveira, Francisco Antônio de. Ob. Cit.)
Pelas sanções possíveis em sede da tese da subsidiariedade, a procedência do mandado de injunção impetrado restaria inócua, pois, seria necessária, depois de muitos atos processuais, inclusive tendo que se valer da esfera penal, a busca por via judicial outra que não a do referido remédio, não atingindo o objetivo precípuo de tornar eficazes direitos constitucionais obstados pela omissão de Poder em mora regulamentar.
2.2 – Mandado de injunção como meio para provocar a edição de norma geral e abstrata
A segunda tese alicerça-se no entendimento de que o mandado de injunção tem por finalidade provocar a edição de norma geral para o seu exercício, pelo próprio Tribunal, para todos os casos na situação do impetrante.
Nessa situação, o Poder Judiciário, substituindo o legislador ou administrador remisso, se comportaria como legislador editando normas de eficácia erga omnes, cujo fundamento seria a barreira que impede o exercício do direito. Abaixo segue opinião de Francisco Antônio de Oliveira que corrobora o dito acima, in verbis:
De fato, se é este o óbice fundamental ao exercício do direito, na ausência de uma norma, que o órgão competente para baixá-la se omite em fazê-lo, não é destituído de sentido, à primeira vista ao menos, o pretender-se deslocar essa tarefa para o Poder Judiciário, que de forma substitutiva, de forma vicária, se comportaria como um legislador editando uma norma que a principio deveria ser baixada pelo próprio legislador ou administrador remisso. O efeito dessa decisão seria obviamente erga omnes. (OLIVEIRA, Francisco Antônio. Ob. cit.)
Passando agora a análise desse segundo posicionamento, pode-se afirmar que se afigura errônea a tese defendida pelos seus seguidores, diante da seguinte assertiva: uma vez dando a sentença do mandado de injunção eficácia geral, contra todos, restaria exorbitada as atribuições de outro Poder.
Isso fica mais evidente quanto às atribuições do Poder Legislativo, cuja principal função, a de legislar, seria usurpada em face do provimento erga omnes em sede de mandado de injunção.
O processo injuncional não visa diretamente à obtenção da regulamentação geral de norma que preencheu os requisitos do processo legislativo definido pela Constituição, e sim, objetiva apenas tornar viável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais ou das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania[2].
2.3 – Mandado de injunção como constitutivo do direito do impetrante
A terceira posição, majoritária na doutrina, sustenta que cabe ao magistrado resolver o caso concreto entre as partes e concretizar o direito dos impetrantes, satisfazendo-o plenamente, independentemente de regulamentação.
Dessa forma, caberia ao órgão judicial competente expedir os comandos e diretrizes necessárias para conferirem a satisfação do direito, liberdade ou prerrogativa ao requerente do mandado, sem qualquer possibilidade de que o decidido no litígio beneficie terceiros não integrantes do feito[3].
Nota-se que, pelo entendimento esposado pela tese constitutiva, o órgão judicante teria que exercer função legislativa, posto que constituiria o direito obstado através de provimento judicial suficiente para regulamentar, tendo como parâmetro o caso em concreto, com eficácia inter partes.
A virtude desse posicionamento está em que, como bem fundamentou Sergio Reginaldo Bacha, o mandado de injunção seria destinado a viabilizar o exercício de direitos ou liberdades ou prerrogativas, emperrados que estão pela falta de norma regulamentadora, pois,
faltando a referida norma, os direitos ficaram postergados à solução de continuidade. E não podem. O pleno exercício deles exige atividade, e nela consiste o indivíduo pedir e ser atendido em algo. Significa, pois, o movimento dentro da extensão que o Direito faculta ao indivíduo, investindo-o na garantia destinada a proscrever as omissões do Estado, que, como ações ilegais ou abusivas, produzem lesões. (BACHA, Sergio Reginaldo. Ob. cit.)
Segundo esse entendimento, os impetrantes agem na busca de realização concreta e direta da prerrogativa de seu direito, independentemente de regulamentação. A causa de pedir é a lesão pela lacuna legislativa, pela impossibilidade efetiva do exercício de um direito supralegal. A sentença há de ser, pois, satisfativa do pedido. Compete ao Juiz determinar as condições para essa satisfação e determiná-la imperativamente, no caso concreto, sem extensão alguma.
Sendo assim, o objeto da decisão
não é uma ordem ou uma recomendação para a edição de uma norma. Ao contrário, o órgão jurisdicional substitui o órgão legislativo ou administrativo competentes para criar a regra, criando ele próprio, para os fins estreitos e específicos do litígio que lhe cabe julgar, a norma necessária. A função do mandado de injunção é fazer com que a disposição constitucional seja aplicada em favor do impetrante, ‘independentemente de regulamentação, e exatamente porque não foi regulamentação’. (BARROSO, Luis Roberto. Ob. cit.)
Assim delineado o objeto da decisão, não será cabível a injunção quando a norma constitucional for autoaplicável, ou seja, bastante em si mesma. Também, não deve ser admitida a injunção antes de decorrido o prazo previsto na Constituição para a elaboração da norma regulamentadora. Do mesmo modo para os casos de inconformidade ou insatisfação de norma regulamentadora plenamente válida no ordenamento jurídico, não ensejando o ajuizamento do pedido de injunção.
E nem se pode cogitar do argumento de que o Poder Judiciário substitui o Poder Legislativo, haja vista que, entre as funções secundárias dos Três poderes, há os chamados “desvios” de competência[4].
Assim, há situações em que o Legislativo julga e executa (art. 49, IX e XII); o Executivo legisla e julga (art. 84, IV e XXVI); e o Judiciário legisla e executa (art. 93, caput e art. 96, I, b), sempre observando os freios e contrapesos da tripartição dos Poderes.
De toda essa argumentação, chega-se a conclusão de que, longe de usurpar funções primárias atribuídas a outros Poderes, caberá ao Judiciário integrar a ordem jurídica, quando isto seja indispensável ao exercício do direito. A semelhança do que ocorre, quando se aplica o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que assim dispõe: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
Destaca-se que o Judiciário atuará nos estritos termos de sua função tradicional, consubstanciada na solução da lide levada a sua apreciação, proferindo sentença subsidiada nos princípios e garantias constitucionais e atendendo ao disposto no artigo 5º da referida lei, que assim dispõe: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.