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Ensino (de(o)) Direito!?

A busca por novos referenciais para a pesquisa

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Agenda 27/03/2005 às 00:00

4. Críticas e críticas

Observando essa realidade, em meados da década de 80, o professor FARIA descreveu de forma contundente a crise do ensino jurídico: "A educação a nível universitário converteu-se, então, numa banal e descompromissada atividade de informações genéricas e/ou profissionalizantes – como os alunos sem saber ao certo o que fazer diante de um conhecimento muitas vezes transmitido de maneira desarticulada e pouco sistemática, sem rigor metodológico, sem reflexão crítica e sem estímulo às investigações originais" (FARIA, p. 18). Essa crítica foi formulada em um primeiro momento, observando-se a questão do ensino num país que democratizava suas instituições.

Mesmo atualmente, essa proposta de crítica encontra motivação ao expor que "(...) o sentido comum teórico (habitus dogmaticus, que cerca e encobre o Direito) somente pode ser tornado visível a partir de um discurso que o des-oculte, que o des-cubra e que o denuncie!" (STRECK, p. 278-9). Todavia, é preciso superar essa concepção de crítica com objetivo de desconstruir o ensino jurídico tradicional. O momento histórico necessita de novas idéias para construção de um novo ensino jurídico. Isso porque o jurista cada vez mais se afasta da sociedade:

Há um grande descompasso entre o ensino do direito, o direito existente e a própria sociedade onde se produz este direito ensinado, ou não ensinado. Esse descompasso põe em dúvida os vários métodos de ensino, os conteúdos programáticos dos cursos de direito, as grades curriculares, a função das faculdades de direito e dos bacharéis que delas sairão. Põe em dúvida, enfim, todo o ensino jurídico no Brasil. Por isso as críticas à formação dos juristas que, baseada na valha aula-douta coimbrã, na pregação catedrática e no caráter livresco do ensino, acabou por revelar uma personalidade especial do bacharel, que foi comparado aos mandarins, pelo poder e pelos rituais que os cercavam (CORTIANO JR., p. 207-8).

Dois aspectos podem ser destacados nessa nova perspectiva de crítica. As reformas do ensino jurídico quase sempre se pautam na reforma curricular. É certo que "O currículo imprimiu uma ordem geométrica, reticular e disciplinar, tanto aos saberes quanto à distribuição desses saberes ao longo de um tempo" (VEIGA-NETO, p. 164). Mediante o currículo é possível observar a influência social sobre o curso de Direito, todavia existe outro currículo, o oculto, que ensina a disciplina, que cobra o legalismo, que rejeita a atitude crítica do aluno. "Vemos as escolas como um espelho da sociedade, especialmente o currículo oculto das escolas. A ‘sociedade’ precisa de trabalhadores dóceis; as escolas através de suas relações sociais e de seu currículo oculto, garantem de alguma forma a produção dessa docilidade" (APPLE, p. 83). Formando assim, um burocrata, um técnico jurídico com tons de Eichmann.

As reformas curriculares dos cursos jurídicos aumentam a carga horária das disciplinas propedêuticas e aumentam o instrumental de reflexão teórica do estudante. No entanto, não raro, mesmo nas disciplinas propedêuticas o método de ensino dogmático permanece. Nesse caso, ensina-se sociologia como dogma, história como dogma, filosofia como dogma. Por outro lado, "A riqueza do trabalho realizável através de uma reflexão interdisciplinar leva a concluir que a segregação dos conteúdos disciplinares, ainda vigente, é arbitrária e arcaica. Muitas vezes responde tão-somente aos recursos humanos disponíveis em cada Faculdade, isto é, a seleção das matérias e currículos é forjada em função dos temas que os professores existentes sabem ensinar" (CUNHA e WARAT, p.63-4). Por isso, "Não será com simples reformas curriculares, mas com a definição de um novo tipo de ensino em consonância com um novo tipo de ciência jurídica dialeticamente integrada à realidade social, que se poderão propor objetivos para um ensino do Direito engajado na construção de uma sociedade melhor e mais justa" (MARQUES NETO, p. 168).

Outra questão importante é a transposição didática:

A educação escolar não se limita a fazer uma seleção entre os saberes e os materiais culturais disponíveis num momento dado da sociedade. Ela deve também, a fim de os tornar efetivamente transmissíveis, efetivamente assimiláveis para as jovens gerações, se entregar a um imenso trabalho de reorganização, reestruturação, de ‘transposição didática’. É que a ciência do erudito não é diretamente comunicável ao aluno, tanto quanto a obra do escritor ou o pensamento do teórico. É preciso a intercessão de dispositivos mediadores, a paciência de aprendizagens metódicas e que não deixam nunca de dispensar as muletas do didatismo. ‘Toda prática de ensino de um objeto pressupõe a transformação prévia deste objeto em objeto de ensino’, observa Michel Verret. (FORQUIN, p. 32-3.)

Pela transposição didática pode-se vislumbrar a forma com que o conteúdo perpassa os níveis abstratos até chegar a compreensão do aluno. Os saberes acadêmicos precisam ser assimilados pelo professor, reinterpretados pelo professor para uma leitura que possibilite sua transmissão, precisam ser transmitidos pelo professor e por fim adquiridos pelos alunos. O caminho segue: saber acadêmico; saber reinterpretado pelo professor; comunicação do professor; e, por fim, captação do aluno. Saber como programar essa atividade em lições, matérias, etc. é uma tarefa árdua. Muitas vezes os saberes acadêmicos encontram-se imbricados uns nos outros, o que torna difícil sua separação. Na construção de situações didáticas pretende-se uma tradução pragmática dos saberes para atividades didáticas. Esse planejamento de atividades pressupõe o interesse dos alunos que em diversos casos precisam ser estimulados de diferentes formas. Os limites para o contato dos alunos com os saberes mostram-se como tarefa que não depende apenas do professor, mas de diversos outros elementos presentes no ato educativo como a disposição do aluno, os materiais disponíveis, as atividades que estão sendo organizadas na faculdade, entre outras. (Cf. PERRENOUD, p. 24 e Ss.) O que se ensina nem sempre é o que se apre(e)nde. Para tentar simplificar a questão, o professor de Direito agarra-se ao texto legal e sua memorização. Enfim, a transposição didática necessita de conhecimento pedagógico, estratégias de ensino e a consciência da impossibilidade de total efetividade da transmissão do conhecimento. Todavia, o professor de Direito, geralmente apenas um técnico especializado, ainda acredita ser possível uma transposição automática. Basta saber, transmitir o conhecimento é algo que se faz de qualquer forma. O professor sol irradia e resplandece conhecimento, essa é a maior ingenuidade do professor técnico de Direito.

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Essas críticas podem ser balizadoras de uma nova proposta de ensino, entretanto não se bastam enquanto críticas. "Uma instituição consciente, contudo, não é aquela que se limita a elaborar críticas brilhantes, na pura reflexão, no discurso progressista. Criticar muito não é suficiente; tem que se fazer presente no mundo, transformando-o a partir da dialética prática/teórica. É pela transformação do mundo que se toma consciência dele" (RIBEIRO, p. 354). É preciso agir.

E a ação não se resume a métodos e técnicas. "O educador libertador tem que estar atento para o fato de que a transformação não é só uma questão de métodos e técnicas. Se a educação libertadora fosse somente uma questão de métodos, então o problema seria mudar algumas metodologias tradicionais por outras mais modernas. Mas não é esse o problema. A questão é o estabelecimento de uma relação diferente com o conhecimento e com a sociedade" (FREIRE e SHOR, p. 48).

Ora, sabe-se que existem alguns métodos e técnicas mais adequados do que outros. E esses, muitas vezes, não se iniciam com treinamentos ou especializações, mas com simples posturas de humildade. Freire já lembrava que o melhor método de ensino é o diálogo, diálogo que só acontece entre pessoas, seres humanos, seres incompletos, as quais precisam de humildade para ouvir o outro.


5. Novos caminhos?

A busca de novos caminhos para o ensino jurídico deve priorizar novas estratégias para superação do ensino dogmático. A primeira etapa, a análise e a crítica de seus problemas, já foi efetivada, se não sistematizada, pelo menos já denunciada. O problema atual, todavia, encontra-se na falta de alternativas práticas ao ensino dogmático. Isso ocorre devido à falta de objetivos concretos de mudança e pela falta de diálogo com o conhecimento pedagógico. Por isso, releva-se a discussão do objetivo do ensino jurídico. Esse objetivo pode, por exemplo, estar ligado a formação de uma ética pública cidadã, em que o profissional jurídico entenda-se responsável pela reconstrução de um país submerso de regimes autoritários e crises econômicas. O importante é que esses objetivos não sejam definidos de forma unilateral, antes em diálogo e provocação criativa.

Deve-se, então, privilegiar a indagação do porquê e para que se ensina o Direito, em detrimento das discussões técnicas relativas à excelência ou eficiência, maior ou menor, da aula expositiva comparada à aplicação, por exemplo, da dinâmica de grupos. É preciso perguntar, previamente, em que consiste saber Direito, para logo decidir como ensiná-lo (CUNHA e WARAT, p. 59). Professores e alunos precisam juntos discutir as razões que motivaram, na área jurídica, a produção de discursos substancialmente dogmáticos, ou de discursos metafísicos, como passo indispensável ao reencontro de um caminho que conduza os estudantes a uma formação e aprendizagem efetiva. As Faculdade de Direito devem deixar de ser centros de transmissão de informação para dedicarem-se, prioritariamente, à formação da personalidade do aluno, do advogado, do jurista, de sujeitos que saibam reagir frente aos estímulos do meio socioeconômico (CUNHA e WARAT, p. 60-1).

A reforma educacional proposta pela OAB, por exemplo, visa a restrição da abertura de cursos jurídicos, justificando-se na falta de qualidade desses. A restrição da abertura de cursos jurídicos não é uma solução coerente, apenas acarreta na reserva de mercado profissional. Não há efetiva melhoria do ensino, apenas restrição a ele. Uma reforma educacional em sentido radical visa a mudança cultural nas instituições de ensino (Cf. BENJAMIN, p. 47 e Ss.). As instituições privadas de ensino, criadas para suprir uma demanda de mercado, não pretendem formar um cidadão ou um profissional ciente de suas responsabilidades sociais. Essas pretendem apenas formar um técnico jurídico, todavia sem condições de assimilar a responsabilidade social de uma formação jurídica. Entretanto, extinguindo-se as instituições privadas criar-se-á outro problema: a restrição do acesso ao conhecimento jurídico. Antes, portanto, deve-se ponderar pela mudança cultural nos cursos jurídicos privados do que simplesmente fechá-los e, cinicamente, jogar a sujeira para debaixo do tapete.

Quando se afirma que a mudança é cultural, alude-se a idéia de que novos valores democráticos devem ser preferidos na construção e planejamento do ensino. Atividades de cunho investigativo devem ser priorizadas as atividades meramente expositivas. Aulas em que o professor apenas lê códigos e leis ou comenta doutrinas não desenvolvem no aluno o espírito participativo necessário numa sociedade a democratizar-se. Além disso, estratégias que busquem questionar problemas morais e éticos dos estudantes servem para problematizar situações pelas quais os alunos, quando profissionais, enfrentarão. Por fim, atividades de extensão universitária inovadora, que prestem assessoria jurídica a movimentos sociais e organizações da sociedade civil organizada, podem incentivar a atitude cidadã do aluno.

A ‘abertura ao outro’ é o sentido profundo da democratização da universidade, uma democratização que vai muito além da democratização do acesso à universidade e da permanência nesta. Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino (SANTOS, p. 225).


6. Não chegue perto, senão te processo! (...) ou dizendo: oi...

A questão da interdisciplinaridade no ensino jurídico aparece como um dos pontos mais urgentes na reforma cultural. O professor de Direito, antes de buscar o diálogo com professores de outras áreas do conhecimento, preferem ser interdisciplinares lendo, sozinhos, obras de outras áreas do conhecimento. Essa atitude retira da interdisciplinaridade todo o seu sentido. O jurista lendo um livro de antropologia, antes de ponderar pela sua metodologia de pesquisa e conhecimento, cita frases como se o antropólogo fosse um jurisconsulto romano. Essa atitude revela uma certa ‘arrogância’ acadêmica, na qual o jurista concebe-se como intelectual superior. A origem dessa ‘arrogância’ talvez tenha suas raízes históricas, todavia não existe justificativa para mantê-la. Interdisciplinaridade exige diálogo entre pessoas que pensam de forma diferente, porém nunca de forma inferior. "Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais" (FREIRE, 1987, p. 81).

Nesse sentido, "(...) não mais se deve confiar o ensino jurídico aos limites estreitos e formalistas de uma estrutura curricular excessivamente dogmática, na qual a autoridade do professor representa a autoridade da lei e o tom da aula magistral permite ao aluno adaptar-se à linguagem da autoridade. Não se trata de desprezar o conhecimento jurídico especializado. Trata-se, isto sim, de conciliá-lo com um saber genético sobre a produção, a função e as condições de aplicação do direito positivo" (FARIA, p. 38). Pensar nas condições de formação do direito positivo significa pensar o direito a partir de outros olhares: histórico, sociológico, antropológico, filosófico, etc. "O ensino jurídico tem que buscar uma concepção totalizadora do direito, em que se encontrem suas diversas dimensões – dogmáticas, filosóficas, sociológicas e históricas. Não é possível reduzir o direito à técnica jurídica, apesar da necessidade do conhecimento minudente desta" (AZEVEDO, p. 64).

Para o ensino jurídico se desenvolver, talvez o primeiro passo seja o diálogo com os profissionais que estudam especificamente o ensino, os pedagogos. "O trabalho conjunto, integrado e interdisciplinar entre pedagogos e profissionais de Direito traria benefícios significativos para ambos e, com certeza uma qualidade maior para o Curso de Direito e também para o de Pedagogia considerando que seus profissionais e alunos teriam oportunidade ímpar para colocar em prática os ensinamentos trabalhados em salas de aula e outros ambientes especiais". (VIANNA, p. 115.). Enfim, para renovar o ensino jurídico é necessário diálogo com outras áreas do conhecimento.

Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. Ensino (de(o)) Direito!?: A busca por novos referenciais para a pesquisa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 627, 27 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6475. Acesso em: 27 nov. 2024.

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