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Educação panacéia e crítica foucaultiana:

tocando o intocável

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Agenda 27/03/2005 às 00:00

3. O Direito à Educação: avanço civilizatório ou normalizador?

            O homem civilizado foi, por assim dizer, o produto almejado pela Educação. E ao questionar o conceito de Educação "(...) partimos de uma descoberta muito simples: esse conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo". (22) O processo civilizador descrito por Norbert Elias não tem uma origem ou um ponto. Não foram vontades particulares que o tornaram possível. Todavia algumas práticas reforçaram sua eficácia. Em especial as escolas ainda quando eram regidas, via de regra, pela Igreja:

            A civilidade ganha um novo alicerce religioso e cristão. A igreja revela-se como tantas vezes ocorreu, um dos mais importantes órgãos da difusão de estilos de comportamento pelos estratos mais baixos. (...) E como boa parte da educação na França se encontrava nas mãos dos organismos eclesiásticos, foi acima de tudo, ainda que não exclusivamente, através da mediação da Igreja que uma maré montante de civilidade inundou o país. Usados como manuais na educação elementar de crianças, esses livretos eram impressos e distribuídos juntamente com as primeiras lições de leitura e escrita". (23)

            Nesse sentido começaram a se desenvolver nos países ocidentais, em especial na Europa, durante o final século XIX a proposta de educação obrigatória universalizada como meio de recuperação moral da população. Assim poderiam ser superados os problemas da pobreza, do pauperismo e da criminalidade.

            A escolarização obrigatória estabeleceu-se na Inglaterra em torno de 1880. A fim de compreender como a escolarização obrigatória tornou-se um local de luta política é importante compreender a forma dos argumentos utilizados em seu favor. Jones e Williamson (1979) argumentam que todos os textos populares daquela época observam dois problemas em particular para os quais a escola (no ínicio, popular e, mais tarde, compulsória) era apresentada como solução. Esses problemas eram o crime e o pauperismo, compreendidos em termos de princípios e hábitos da população. Foi essa compreensão dos maus hábitos como a causa do crime e do pauperismo que levou à possibilidade de ver a educação popular como a resposta para os males da nação, isto é, pela inculcação dos bons hábitos, especialmente da leitura, a fim de, especialmente, poder ler a Bíblia. Dessa forma, os problemas da pobreza, do pauperismo e da ajuda aos pobres eram apresentados como questões morais que diziam respeito aos hábitos e à vida dos pobres. O argumento era o de que se os pobres fossem dependentes da ajuda à pobreza, então eles não seriam independentes do espírito (boa fibra moral, etc.). Jones e Williamson sugerem que ‘a deterioração do caráter moral era relacionada a uma deterioração do caráter religioso da população e à ameaça política que isso representava’." (24)

            A pobreza e a criminalidade poderiam ser evitadas educando-se os pobres. (25) Essa utopia pedagógica fundamentou diversos movimentos posteriores, que apesar de boa intenção, apenas realizavam a normalização dos alunos para uma democracia de deveres. "O sonho da pedagogia que colocará as crianças em liberdade, que servirá como o motor da libertação não é um sonho novo: está presente no movimento progressivo dos anos 20 e 30 e é uma característica familiar do progressivismo que foi central às abordagens radicais de educação dos anos 70". (26) Com esse análise pretende se destacar a observação de Walkerdine:

            O importante aqui é compreender como veio a ocorrer que certas tendências freqüentemente inauguradas por indivíduos e grupos fora da educação pública e da administração introduziram idéias e práticas que vieram a dominar a educação pública. Os momentos particulares de luta na adoção pública de formas de educação são muito importantes porque eles revelam a forma pela qual a ciência, imaginada como um instrumento de libertação, tornou-se, por sua naturalização, a base mesma da produção de normalização. (27)

            Arendt, sintonizada com esse aspecto da Educação, denota que "Por esse motivo na Europa, a crença de que se deve começar das crianças se se quer produzir novas condições permaneceu sendo principalmente o monopólio dos movimentos revolucionários de feitio tirânico que, ao chegarem ao poder, subtraem as crianças a seus pais e simplesmente as doutrinam". (28)

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            Por isso, o referencial foucaultiano interessa para desconstruir a perspectiva de otimismo ingênuo em relação à educação. "A teoria educacional, em geral, baseia-se na noção de que o conhecimento e o saber constituem fonte de libertação, esclarecimento e autonomia. A teoria educacional crítica, em particular, acredita que os presentes arranjos educacionais, afetados por objetivos de interesse e poder, transmitem saberes e conhecimentos contaminados de ideologia, mas que é possível, através de uma crítica ideológica, penetrá-los e chegar a um conhecimento não-mistificado do mundo social. A posição pós-estruturalista vai contestar essas visões". (29)

            Vários estudos foucaultianos têm demonstrado "(...) a íntima relação entre o saberes pedagógicos, o estatuto da infância, a emergência de um espaço fechado destinado à educação, o surgimento dos especialistas desse campo de saberes, a destruição de outras formas de educação e, por fim a disseminação e obrigatoriedade da educação escolar na Modernidade. Além disso, os autores descrevem e problematizam todo um conjunto de verdades sobre a educação escolar, mostrando seu caráter construído e arbitrário – e, portanto, não natural. entre tais verdades, destacam-se o caráter humanitário das escolas profissionalizantes populares, a criança como bom selvagem, a escola como caminho para a maioridade humana, a necessidade de a escola exercer a tutela moral sobre as futuras gerações etc.". (30) A normalização dentro da escola, portanto, advém de diversos fatores:

            Disciplinas particulares, regimes de verdade, corpos de conhecimento, tornam possível tanto aquilo que pode ser dito quanto aquilo que pode ser feito, tanto o objeto da ciência quanto o objeto das práticas pedagógicas. As práticas pedagógicas, pois, estão totalmente saturadas com a noção de uma seqüência normalizada de desenvolvimento da criança, de forma que aquelas práticas ajudam a produzir a criança como o objeto de seu olhar. Os aparatos e mecanismos da escolarização envolvidos nessa produção vão desde a arquitetura da escola e o arranjo das carteiras da sala de aula até os materiais curriculares e as técnicas de avaliação. É claro que as asserções de verdade sobre o desenvolvimento da criança são muitas e variadas, de forma que não devemos esperar que os aparatos sejam todos homogêneos e sem contradições. Entretanto, quando examinamos aparatos particulares, é possível demonstrar a íntima conexão entre as práticas e o conjunto de pressupostos sobre a aprendizagem e ensino que têm como sua base o desenvolvimento da criança. (31)

            Entre os dispositivos pedagógicos para a normalização destaca-se o currículo. "O currículo imprimiu uma ordem geométrica, reticular e disciplinar, tanto aos saberes quanto à distribuição desses saberes ao longo de um tempo". (32) Além do que, "O currículo é freqüentemente empregado para afastar a interação de sala de aula do controle direto da professora. O currículo contrapõe-se à sala de aula tradicional na qual ‘a posição fixa é o resultado da ciência da super-visão, um arranjo de pessoas em unidades coletivas acessíveis à vigilância constante". (33) O currículo foi o motor escolar da normalização:

            O currículo funcionou como a máquina principal dessa grande maquinaria que foi a escola na fabricação da Modernidade. Foi por intermédio dessa invenção dos quinhentos que a escola se organizou e atuou, inventando novas formas de vida que romperam com os sentidos e usos medievais do espaço e do tempo. Foi com o currículo que ela assumiu uma posição ímpar na instauração de novas práticas cotidianas, de novas distribuições e novos significados espaciais e temporais. E, talvez o mais importante: foi pelo currículo que a escola contribuiu decisivamente para a crescente abstração do tempo e do espaço e para o estabelecimento de novas articulações entre ambos. Isso foi tão mais decisivo na medida em que tanto a escola fez do currículo o seu eixo central quanto ela própria tomou a si a tarefa de educar setores cada vez mais amplos e numerosos da sociedade. (34)

            Além disso, cabe ainda referir que o discurso pedagógico ganha no século XX um novo viés, principalmente em razão do surgimento e generalização das psico-pedagogias, o caráter terapêutico. A Educação irá curar o doente, assim como a psicanálise:

            O discurso pedagógico e o discurso terapêutico esta hoje intimamente relacionados. As práticas pedagógicas, sobretudo quando não são estritamente de ensino, isto é, de transmissão de conhecimentos ou de ‘conteúdos’ em sentido restrito, mostram importantes similitudes estruturais com as práticas terapêuticas. A educação se entende e se pratica cada vez mais como terapia, e a terapia se entende e se pratica cada vez mais como educação ou re-educação. E a antropologia contemporânea, ou melhor, o que hoje conta como antropologia, para além dos discursos sábios que se abrigam sob esse rótulo, na medida em que estabelece o que significa ser humano, não pode separar-se do modo como o dispositivo pedagógico/terapêutico define e constrói o que é ser uma pessoa formada e sã (e, no mesmo movimento, define e constrói também o que é uma pessoa ainda não formada ou insana). (35)

            Bourdieu relata seu pessimismo em relação à potencialidade de uma educação que servisse para a transformação: "Seria, pois, ingênuo esperar que, do funcionamento de um sistema que define ele próprio seu recrutamento (impondo exigências tanto mais eficazes talvez, quanto mais implícitas), surgissem as contradições capazes de determinar uma transformação profunda na lógica segundo a qual funciona esse sistema, e de impedir a instituição encarregada da conservação e da transmissão da cultura legítima de exercer suas funções de conservação social". (36) Portanto, a educação escolar não pode ser pensada ingenuamente. Enfim, Foucault afirma que "(...) Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo". (37) Assim, cabe, antes de propor uma nova visão da educação a análise das relações entre poder e saber.


4. Poder e Saber

            Não existe saber sem poder e poder sem saber. O que, entretanto não quer dizer que se confundam. Foucault considera que o poder se exerce por meio de discursos de verdade pautados em saberes. "O fundamental da análise é que saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber". (38) Portanto o campo de guerra e disputa de poder se altera, assim como Foucault afirma: "Pois, de fato, sempre havíeis combatido sem vos dar conta de que a partir de certo momento a verdadeira batalha, pelo menos no interior da sociedade, já não passava pelas armas e sim pelo saber". (39)

            O saber/poder se constitui e não pode ser desvelado, a não ser localmente. Sua força é micro e se exerce em toda a sociedade. "Não se pode ir contra o saber/poder, porque não se trata de algo visível, acima de todos, sufocante, repressor. Pode-se denunciá-lo localmente sempre que seus meios resultem em constrangimento, a entrar no jogo com o qual médicos, assistentes sociais, sociólogos, sexólogos, psiquiatras, pedagogos, pretendem dizer qual é, finalmente, a verdade do sujeito". (40) Interessa notar que em Foucault o poder não detém um conceito geral, ele estaria circulando entre as relações das pessoas.

            (...) não existe em Foucault uma teoria geral do poder. O que significa dizer que suas análises não consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza, uma essência que ele procuraria definir por suas características universais. Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social, e, como tal, constituída historicamente. (41)

            O poder em Foucault pode ser considerado um artifício, uma categoria teórica explicativa para análises sociais em movimento. Sua análise da sociedade é dinâmica e não mais estática como as análises funcionalistas e estruturalistas clássicas. Poder, portanto, não é pensado por Foucault como um ente ou algo que se manifesta, mas como a idéia física de força. Nesse sentido o próprio Foucault se manifesta em entrevista: "O poder não existe. Quero dizer o seguinte: a idéia de que existe, em um determinado lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um poder, me parece baseada em uma análise enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um número considerável de fenômenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado ". (42) Esse feixe de relações detém algumas características que podem ser elencadas e interessam para a análise crítica do Direito a Educação: "1º) o poder se exerce; 2º) as relações de poder são imanentes; 3º) o poder também vem de baixo; 4º) as relações de poder são intencionais;". (43)

            O interessante da análise é justamente que os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras. Daí a importante e polêmica idéia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram alijados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. (44)

            O poder está em todo o lugar. "Onipresença do poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo sob sua invencível unidade, mas porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro. O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares". (45)

            O poder se encontra nas relações sociais, lhe são imanentes, enfim, "(...) que as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimentos relações sexuais), mas lhe são imanentes". (46)

            O poder não pode ser valorado. "O poder não é o mal. O poder são jogos estratégicos. Sabe-se muito bem que o poder não é o mal". (47)

            O poder não tem um titular absoluto. "Em toda parte em que há poder, o poder se exerce. Ninguém é propriamente seu titular; e no entanto ele se exerce sempre numa certa direção, com uns de um lado e os outros de outro; não se sabe ao certo quem o tem: sabe-se quem não o tem". (48)

            As relações de poder fabricam o sujeito. Desse fato irá surgir o tema do direito e da disciplina como meios de exercer o poder. Pois, "Como se pode notar, as práticas disciplinares (veiculadas por certo discurso) ao mesmo tempo em que constituem o sujeito também o sujeitam; o sujeito é sujeitado ao mesmo tempo em que é ‘fabricado’ pelos processos de individuação. Esta é a marca da ‘sociedade disciplinar’ em que se transformou nossa sociedade". (49) "A idéia básica de Foucault é de mostrar que as relações de poder não se passam fundamentalmente nem ao nível do direito, nem da violência: nem são basicamente contratuais nem unicamente repressivas". (50)

Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. Educação panacéia e crítica foucaultiana:: tocando o intocável. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 627, 27 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6480. Acesso em: 25 dez. 2024.

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