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Educação panacéia e crítica foucaultiana:

tocando o intocável

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Agenda 27/03/2005 às 00:00

7. O Poder e as resistências

            Para Foucault o poder não pode ser combatido ou desmascarado senão por outras relações de poder. "Como o poder se exerce em mecanismos múltiplos e até mesmo como vontade de verdade, não pode ser elidido, apenas desmascarado em seus efeitos, denunciado, talvez transformado por novos regimes de verdade". (85) O poder somente existe nas relações de poder. Por isso, para que exista, é necessário um ponto de preensão. "Eles não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de poder, o papel de adversário, de algo, de apoio, de saliência que permite a preensão". (86) Nesse sentido "(...) onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder". (87) As resistências estão presentes na trama social.

            Se as resistências têm de se dar dentro da própria trama social, e não a partir de algum lugar externo, é simplesmente porque não há exterioridades. A trama basta-se a si mesma e nada mais há fora dela. Dito de outra maneira, a resistência ao poder não é a antítese do poder, não é o outro do poder, mas é o outro numa relação de poder – e não de uma relação de poder... –, uma vez que ‘o antagonismo das lutas não passa por uma lógica dos contrários, da contradição e da exclusão de dois termos separados e opostos’. Assim, se Foucault, ao se despedir da dialética, ainda fala em resistência, é porque o faz num sentido bastante diferente daquele da Teoria Crítica. (88)

            As lutas de resistência acontecem dentro das próprias relações de poder, não é preciso fugir do poder (o que aliás seria impossível) pois "(...) as próprias lutas contra seu exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar: ele está sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relações de forças. E como onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social". (89) Não existe, portanto, local ideal para a resistência.

            Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande Recusa – alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. (90)

            Isso não significa que as resistências não possam ser efetuadas através de grandes movimentos sociais, todavia, geralmente se manifestam no micro, assim como o poder. "Grandes rupturas radicais, divisões binárias e maciças? Às vezes. É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis". (91) Assim, a resistência é uma forma de poder e o poder não pode ser visto com valor axiológico imanente.

            Trata-se precisamente de não ver que as relações de poder não são alguma coisa má em si mesmas, das quais seria necessário se libertar; acredito que não pode haver sociedade sem relações de poder, se elas foram entendidas como estratégias através das quais os indivíduos tentam conduzir, determinar a conduta dos outros. O problema não é, portanto, tentar dissolvê-las na utopia da comunicação perfeitamente transparente, mas se imporem regras de direito, técnicas de gestão e também a moral, o êthos, a prática de si, que permitirão, nesses jogos de poder, jogar com o mínimo possível de dominação. (92)

            A resistência em Foucault, portanto, não está fora das relações de poder. Ela se constitui como uma estratégia de poder a fim de conseguir um novo meio de expressão de si mesmo com o mínimo de dominação possível. Em seus últimos trabalhos a idéia de ética ganhará relevo, o que se verá adiante.

            Da mesma forma, a resistência ‘não confronta o inimigo para impor a derrota’. Se a resistência é um combate, então, ela ‘é um combate particular’. Por isso, ela ‘luta com a adversidade, da qual o adversário é somente um substituto para enfraquecê-la e tornar fraco seu suporte’. A resistência ‘não busca a vitória, não se empenha em batalhas, ainda menos na guerra’. Mas, ‘através de uma dupla e lateral estratégia, desarma o inimigo com as próprias armas do inimigo’. Desregulando ‘as regras da guerra que ela impôs’, a resistência a restringe, limita seus alvos, ‘para deslocar seus domínio e método de se desempenhar’. (93)

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            Nos últimos trabalhos de Foucault, a idéia de resistência está conectada ao ‘ideal nietzschiano da auto-criação estética’. A prática de uma estética do eu não é nada mais nada menos que as formas pelas quais os indivíduos são produzidos e se produzem enquanto sujeitos. A localização dos pontos de resistência na não aceitação dos modos de subjetividade impostos nos oferece a possibilidade de mudar as práticas tidas como ‘intoleráveis’. A idéia de que a vida de alguém pode ser criada como uma ‘obra de arte’ abre a possibilidades de escolha de novas formas de experenciar-se a si mesmo. Então, a posição de Foucault de que ‘tudo é perigoso’ não remete ao pessimismo ou ao desespero, e sim às múltiplas formas de resistir, pois existe uma escolha ‘ético-política’ a ser feita. (94)


8. Um novo Direito? A função da crítica

            Pensar o Direito como resistência é deixar de concebê-lo como estrutura universal. Estudos antropológicos já apontam que "(...) dedicar-se a construir uma teoria geral do direito é uma aventura tão inverossímil como a de dedicar-se à construção de uma máquina de movimento perpétuo". (95) Para se encontrar novas perspectivas de Direito deve-se superar o paradoxo, alertado por Foucault, no qual se tem constantemente recaído. "Pois este é o paradoxo da sociedade que, desde o século XVIII, inventou tantas tecnologias de poder estranhas ao direito: ela teme seus efeitos e proliferações e tenta recodificá-los nas formas do direito". (96)

            Até mesmo porque, seria ingênuo creditar ao direito à síntese da ética e da razão humana. "A lei não nasce da natureza, junto das fontes freqüentadas pelos primeiros pastores; a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror; a lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo". (97) Sendo fruto das guerras e das disputas da sociedade pensar criticamente o Direito é pensar nos sistemas de sujeição presentes em si. "O sistema do direito e o campo judiciário são o veículo permanente das relações de dominação, de técnicas de sujeição polimorfas. O direito, é preciso examiná-lo, creio eu, não sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática". (98)

            Foucault retratou em sua militância uma perspectiva diferente de Direito. Sua luta junto a movimentos homossexuais denotava um novo direito relacional. "Portanto, o objetivo das lutas homossexuais, feministas e anti-raciais não deve constituir na exigência de igualdade de direitos, mas na criação de um novo direito relacional". (99) Nesse sentido, pretende-se formular um novo discurso sobre o Direito.

            Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. (...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (100)

            O Direito novo, a nova discursividade sobre o direito, pretende renovar sua função crítica. "A expressão ‘direito novo’ remete aqui a uma imagem em que o direito aparece como liberado dos mecanismos da normalização e, desse modo, como um direito que se constitui numa forma de resistência às disciplinas e aos dispositivos de seguranças". (101) Retornando ao clássico texto de Foucault, ‘Iluminismo e Crítica’, mediante a crítica "interroga-se a verdade em seus efeitos de poder e o poder em seus discursos de verdade" (102).

            Assim, buscando sintetizar essas idéias com o fim de precisar o sentido que atribui à noção de atitude crítica, o autor dirá que se a govermentalização é o movimento pelo qual se trata de assujeitar os indivíduos por meio de mecanismos de poder que reclamam para si uma verdade no interior da realidade de uma prática social, a crítica será o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e [interrogar] o poder sobre seus discursos de verdade’. A atitude crítica seria, assim, a ‘arte da não-servidão voluntária’, ou ainda, a ‘arte da indocilidade refletida’. (103)

            A importância de uma atitude crítica reflete a idéia central de resistência em Foucault. "Desse modo, parece-nos que a noção de ‘atitude crítica’ como uma atitude de ‘recusa de ser governado’ é a noção que melhor expressa a forma que pode vir a ter a resistência ao poder normalizador para Foucault. Daí falarmos em uma ‘positividade da atitude crítica’ ao nos referirmos à pesquisa sobre a imagem de um ‘direito novo’ que estaria presente em seu pensamento, uma vez que o que está em jogo em tal imagem é precisamente a possibilidade de existirem práticas do direito que sejam práticas de resistência aos mecanismos de normalização". (104) Observe-se que não haveria sentido em adentrar-se novamente a idéia de direito soberano. O novo direito precisa superar pela crítica a normalização e a universalidade.

            De fato, soberania e disciplina, legislação, direito da soberania e mecânicas disciplinares são duas peças absolutamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder em nossa sociedade. Para dizer à verdade, para lutar contra as disciplinas, ou melhor, contra o poder disciplinar, na busca de um poder não disciplinar, não é na direção do antigo direito da soberania que se deveria ir; seria antes na direção de um direito novo, que seria antidisciplinar, mas que estaria ao mesmo tempo liberto do princípio da soberania. (105)


9. Uma nova Educação? Moral, Ética e Estética.

            Em Foucault, novas formas de Educação não estão ligadas a novas metodologias de ensino mas uma nova ética. "Nada prova, por exemplo, que na relação pedagógica – quero dizer, na relação de ensino, essa passagem que vai daquele que sabe mais àquele que sabe menos – a autogestão produza os melhores resultados; nada prova, pelo contrário, que isso não paralise as coisas. Eu responderia de modo geral que sim, com a condição de que é preciso observar todos os detalhes". (106)

            A idéia de remodelação da ética cabe a partir de uma remodelação do sujeito. Para Foucault, moral pode ter dois sentidos. O primeiro ligado a idéia de "código moral" - "Por ‘moral’ entende-se um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas, etc.". (107) Já no seu segundo sentido, "(...) por ‘moral’ entende-se igualmente o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição; pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores; o estudo desse aspecto da moral deve determinar de que maneira, e com que margens de variação ou de transgressão, os indivíduos ou os grupos se conduzem em referência a um sistema prescritivo que é explicita ou implicitamente dado em sua cultura, e do qual eles têm uma consciência mais ou menos clara". (108)

            Araújo esclarece que as análises foucaultianas presentes no livro A vontade de Saber: "Os códigos morais são pobres e repetitivos, as interdições todas se assemelham, mas a experiência moral se transforma. Daí Foucault ver na ética a ‘elaboração de uma forma de relação consigo que permite ao indivíduo constituir-se como sujeito de uma conduta moral’. Não se é sujeito de seus atos apenas reagindo a regras universais". (109) A ética está ligada a segunda perspectiva de moral em Foucault. A conduta moral consigo mesmo será a imagem de uma ética renovada.

            Durante muito tempo alguns imaginaram que o rigor dos códigos sexuais, na forma como os conhecemos, era indispensável às sociedades ditas ‘capitalistas’. Entretanto, a suspensão dos códigos e o deslocamento das proibições se fizeram sem dúvida mais facilmente que se havia acredita (o que parece indicar que sua razão de ser não era a que se acreditava); e o problema de uma ética como forma a dar a seu comportamento e à sua vida se colocou novamente. Em resumo, se enganava quando se acreditava que toda moral estava nas interdições e que a retirada destas trazia a ela apenas a questão da ética. (110)

            Por isso, ao observar o que Foucault analisa sobre a questão da ética, Márcio Fonseca expõe que: "Bem se vê que quando o autor fala em ‘ética’ não se refere aos sistemas de regras e aos códigos de conduta, tampouco se refere aos comportamentos dos indivíduos diante dos códigos, mas pensa no conjunto das práticas que o indivíduo estabelece consigo mesmo, a partir das quais se dá sua subjetivação, ou seja, a partir das quais o indivíduo se constitui como sujeito moral, em função de uma adesão livre a um estilo que quer dar à sua própria existência". (111)

            A partir da liberdade na ética que se pode estatuir uma nova visão sobre si mesmo, livrando-se das sujeições que os aparelhos do Estado impõem. "A liberdade é a condição ontológica da ética. Mas a ética é a forma refletida assumida pela liberdade". (112) "O indivíduo alcança autonomia mediante as práticas de si e mediante a união da própria transformação com as mudança sociais e políticas. Não se deve entender essa relação consigo autônoma e não normalizada num sentido liberal; ela constitui antes uma subjetividade anárquica, pois se trata, em última análise, de se libertar do Estado e das formas de subjetivação ligadas ao Estado". (113) Essa nova forma ética para Foucault se denomina ‘artes da existência, e propõe a noção de estética na base de uma nova ética.

            Larrosa estabelece três características das artes de existência, a primeira é que elas não são obrigatórias:

            As ‘artes da existência’, em primeiro lugar, não estão ligados ao obrigatório. São ‘práticas do eu’ que não foram capturadas, nem por um código explícito de leis sobre o permitido e o proibido, nem por um conjunto de normas sociais. Não pertencem nem a um dispositivo jurídico, nem a um dispositivo de normalização. É por isso não incluem uma determinação nem do que é transgressão, nem do que é perversão. Integram, portanto, uma ética positiva, isto é, uma ética referida, não ao dever, mas à elaboração da conduta. (114)

            A segunda seria a não possibilidade de universalização:

            Em segundo lugar, as ‘artes da existência’ não pretendem universalização. Nem se fundam em uma teoria universal da natureza humana, nem estão dirigidas a regular a conduta de todos os indivíduos. Nesse sentido, embora possam implicar formas muito intensas de problematização e formas muito rigorosas de ascese e do trabalho sobre si próprio, não constituem uma obrigação geral. Constituem, portanto, uma ética pessoal. (115)

            A terceira está ligada a impossibilidade de concepção normativa do homem:

            Em terceiro lugar, as ‘artes da existência’ não estão ligadas à identidade do sujeito, a qualquer concepção normativa do que é natureza do homem. A formação do sujeito não está dirigida a interrogar, assumir, liberar ou reconhecer o que os indivíduos ‘realmente’ são, mas à livre elaboração de si mesmo com critérios de estilo à estilização pessoal e social de si mesmo. Trata-se, pois, de uma ética configurada esteticamente. (116)

            Foucault ressalta que é na ética que o homem " (...) exerce seu controle sobre si próprio e da maneira pela qual se pode estabelecer a plena soberania sobre si". (117) Interessa notar que na Educação não se deve pensar em formas ou métodos de ensino em si. "Não estou tentando argumentar em favor de um retorno às fileiras de carteiras – eu continuo a usar o arranjo em círculo em minha própria prática. Estou argumentando que práticas educacionais supostamente libertadoras não tem nenhum efeito garantido". (118) Somente quando o homem tem sua ética no cuidado de si mesmo, em sua própria produção de subjetividade, ele pode desenvolver uma educação livres de instrumentos universalizantes de normalização.

Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. Educação panacéia e crítica foucaultiana:: tocando o intocável. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 627, 27 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6480. Acesso em: 26 dez. 2024.

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