Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. O tripé da Universidade e a Extensão; 3. Extensão e Pesquisa em Direito; 4. Extensão e Democracia na Universidade; 5. Método tradicional de extensão: Assistência jurídica; 6. Método inovador de extensão: Assessoria jurídica; 7. Considerações finais; 8. Notas; 9. Referências Bibliográficas.
Resumo: A extensão universitária no campo do Direito sempre se pautou em idéias assistencialistas nas quais os estudantes apenas forneciam serviços técnicos a populações carentes. Todavia a partir de teorias críticas em Direito e Educação a extensão ganha um novo significado podendo atingir um papel mais importante, a educação para a cidadania. Assim, o Direito deixa de ser um tema para os letrados tornando-se um instrumento de conscientização política.
Abstract: The academical extension in the field of the Law was always ruled in assistancely ideas in which the students just supplied technical services to lacking populations. Though starting from critical theories in Law and Education the extension wins a new meaning could reach a more important paper, the education for the citizenship. Like this, the Law stops being a theme for the scholars becoming an instrument of political understanding.
Palavras-chave: Extensão – Cidadania – Direito Crítico – Educação – Assessoria Jurídica – SAJU.
Escrever sobre o Direito e, em especial, sobre alternativas inovadoras ao uso do Direito mostra-se como tarefa de múltiplas implicações. Primeiramente, reconhecer que se lida com um saber-poder (1), com a especial função de dominação e controle, desenvolvido na racionalidade moderna. Por mais que se pretenda utilizar o Direito de maneira inovadora e crítica deve-se atentar que: o Direito é um instrumento de dominação social, o principal instrumento de expressão do status quo. Obviamente, refere-se aqui ao Direito numa perspectiva histórica. Trata-se do Direito Europeu Ocidental moderno do qual o Brasil é eminente herdeiro. Não se pretende traçar considerações pormenorizadas sobre a referida afirmação nesse artigo mas apenas se ressalta que o Direito no Brasil é, salvo exceções, instrumento de dominação. (2)
Em segundo lugar o Direito é um espaço de luta política. Assumir essa perspectiva revoluciona o cenário jurídico. O Direito não é absoluto. Os direitos são pautados em escolhas políticas. As escolhas políticas podem mudar. Todavia, a mudança das escolhas políticas está necessariamente vinculada a regras para sua mudança, ou seja, em regras de poder. Numa sociedade democrática como a brasileira as regras de poder são pautadas pela razões democráticas. E a própria Democracia, por excelência, só é Democracia quando está aberta a críticas, inovações e aperfeiçoamento.
Por fim, o Direito é um espaço de luta hegemônica. O Direito apesar de ser utilizado, via de regra, como instrumento de dominação social pode desenvolver um importante papel na luta contra-hegemônica. O Direito pode ser usado para auferir conquistas políticas importantes para populações oprimidas, através do chamado uso crítico do Direito por operadores jurídicos conscientes do ideário político por detrás das regras aparentemente neutras. Mas o Direito também pode servir para uma outra função importante, quiçá mais importante, ele pode servir para desvelar o mundo. O Direito pode servir como meio para retirar o véu da dominação social, desmascarar a sociedade e auxiliar a conscientização da população oprimida, isso ocorre quando expostas suas contradições e revelada sua realidade política. Assim, é possível desenvolver no povo brasileiro algo que lhe é estranho, a experiência democrática através do diálogo político. É sobre esse espaço de luta contra-hegemônico que se pretende dissertar brevemente.
Portanto, o Direito, quando devidamente problematizado, pode torna-se substrato para consciência política e democrática. E como Paulo Freire já dizia: "O problema para nós prossegue, transcende a erradicação do analfabetismo e se situa na necessidade de erradicarmos também a nossa ‘inexperiência democrática’, através de uma educação para a democracia, numa sociedade que se democratiza" (FREIRE, 2001, p. 87).
2. O Tripé da Universidade e a Extensão
A expressão ‘extensão’ é utilizada pela Constituição da República para nomear um dos "tripés" fundamentais da Universidade brasileira. (3) Conforme o conceito delineado pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão de Universidades Públicas Brasileiras: "A extensão universitária é o processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a universidade e a sociedade" (NOGUEIRA, p. 11). Perceba-se que a extensão foi conceituada, via de regra, pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores como processo educativo que articula ensino e pesquisa. Extensão não é um elemento novo dentro da Universidade mas uma maneira de articular ensino e pesquisa. Nesse sentido Paulo Freire já sugeria não apenas a substituição da expressão "extensão" por outra expressão "comunicação" (FREIRE, 1975, passim), mas tentava demonstrar que a extensão é o ato dialogal da Universidade com a sociedade. É o momento em que a universidade conversa com a sociedade.
Nesse sentido, não se estranha que a extensão universitária tenha emergido da perspectiva de responsabilidade social da Universidade. A proposta que estimulou a extensão "(...) se traduziu na crítica do isolamento da universidade, na torre de marfim insensível aos problemas do mundo contemporâneo, apesar de sobre eles ter acumulado conhecimentos sofisticados e certamente utilizáveis na sua resolução" (SANTOS, 2002, p. 100-1).
Contra o objetivo genuíno da responsabilidade social da universidade contrapuseram-se interesses diversos, especialmente os relacionados à formação de uma massa de técnicos especializados para a manutenção da burocracia estatal-social. Esse papel foi assumido de maneira singular pelas Faculdades de Direito no Brasil, desde de suas origens até os dias atuais. (4) Não é difícil observar a falta de comunicação das Faculdades de Direito com a sociedade, em especial, com as classes oprimidas. Sem dúvida, um dos grandes equívocos das Faculdades de Direito é a manutenção de sua postura tecnicista. (5) Assim, "As universidades parecem transformar-se cada vez mais em escolas de profissionais destinadas a produzir funcionários, técnicos em todos os níveis, esquecendo-se de sua missão de formar a inteligência, de promover, inventar e reinventar, a cultura no seio de um mundo que se desfaz e refaz" (JAPIASSU, p. 181).
Parte-se, portanto, da necessidade de renovação das perspectivas sobre a função da universidade. Essa mudança se conjuga com a idéia de extensão enquanto processo educativo e, principalmente, comunicativo. O que se pretende com a extensão não é simplesmente o aperfeiçoamento técnico mas sobretudo a educação para o pleno desenvolvimento da cidadania a partir do diálogo.
3. Extensão e Pesquisa em Direito
A pesquisa e a extensão são duas atividades que contribuem incisivamente para a superação do paradigma tradicional. "Pesquisa e extensão são ausências injustificáveis no processo do ensinar, ausências que fecham portas à realidade. A volta da escola à rua – a consolidação da união entre ensino, pesquisa e extensão – permite o confronto entre as teorias e o mundo, e permite arejar o discurso do ensino" (CORTIANO JR., p. 237-8). Enfim, na Universidade é possível a elaboração de novos saberes. Uma nova visão de extensão somente é viável a partir do desenvolvimento de novas teorias sobre o Direito, ultrapassando os limites da dogmática tradicional, ou seja, conciliando a pesquisa e a extensão. Fazendo o saber acadêmico dialogar com a sociedade.
O envolvimento da Universidade no mundo é essencial na construção de um novo paradigma universitário. As Universidades Públicas, em especial, detém o potencial desvelador da mentalidade pública entre os estudantes, (6) qualidade essa que somente o desenvolvimento cultural e cidadão pode proporcionar. Assim, o desenvolvimento cultural e cidadão deve ser uma das prioridades das Universidades, que não podem assumir um papel de centros técnicos superiores. "É necessário imiscuir-se tanto em questões internas vividas pela faculdade, como em questões externas, principalmente aquelas ligadas ao acesso à justiça. Aproxima-se, por um lado, da atividade desempenhada pelos movimentos sociais. Em poucas palavras, politizam-se a entidade e os estudantes. Insere-os na realidade, não como mero espectador, mas como sujeito atuante" (CARVALHO, Lucas, p. 232), vislumbrando aos estudantes novas visões sobre a realidade social. "A ‘abertura ao outro’ é o sentido profundo da democratização da universidade, uma democratização que vai muito além da democratização do acesso à universidade e da permanência nesta. Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino" (SANTOS, 1997 (2), p. 225). A extensão é uma oportunidade única de pensar o ensino de forma indissociada da pesquisa.
Pensar o ensino indissociado da pesquisa é pensar o ensino com base na lógica da pesquisa, isto é, como ela se constitui. Percebe-se então, que é possível tomar diferentes caminhos para a realização de uma investigação, mas é forçoso admitir que não há pesquisa sem dúvida, sem questionamento. Isso significa reconhecer que a pesquisa tem a dúvida como princípio fundamental. É ela que nos impulsiona a refletir, a levantar questões, a procurar respostas, a imaginar possibilidades, enfim, a estudar e a construir o conhecimento. Foi assim que, historicamente, a humanidade se comportou ao trilhar a trajetória do conhecimento, O novo sempre foi fruto da necessidade, da perplexidade e da insegurança, originárias do raciocínio e da observação (CUNHA, p. 27-38).
4. Extensão e a democracia na Universidade
A inovação do paradigma universitário, logo, precede da democratização do espaço universitário. A democratização do espaço universitário começa com a rearticulação das relações alunos-professores. Gramsci já denunciava o modelo asséptico que as Universidades de seu tempo adotavam e que não é muito diferente do atual:
(...) nas universidades, o contato entre professores e estudantes não é organizado. O professor ensina, de sua cátedra, à massa dos ouvintes, isto é, dá a sua lição e vai embora. (...) Para a massa dos estudantes, os cursos não são mais do que uma série de conferências, ouvidas com maior ou menor atenção, todas ou apenas uma parte: o estudante confia nas apostilas, na obra que o próprio professor escreveu sobre a matéria ou na bibliografia que indicou (GRAMSCI, p. 146).
A inovação não pode ser feita sem se levar em consideração o estudante. O método de ensino e de gestão universitária tradicional imobiliza o estudante e o condiciona como um consumidor ou cliente de um serviço. A educação não deve se constituir num serviço mercantilizável. A Universidade, para que não se torne mera mercadoria, precisa urgentemente de uma transformação gestionária superando posturas unilaterais e coisificantes. É preciso, pois, sopros de democracia nos ares viciados das Universidades. "A Universidade é o lugar da prática democrática, pois nela é que os princípios, a sociedade e o futuro são pensados. Espera-se que a Universidade esteja sempre além de seu tempo pois, em um ambiente em que o nível intelectual é bem superior à média da comunidade, o razoável é ter sempre a Universidade como um modelo a ser seguido. Neste sentido, é relevante a responsabilidade da Universidade para com a democracia e o Estado de Direito" (MALISKA, p. 218). O papel dos estudantes é fundamental nessa transformação. (7) "De fato, ‘sem a ação dos estudantes não haverá muitos avanços significativos na instituição de ensino à qual se vinculam. Mesmo sob a iniciativa de professores progressistas, qualquer avanço estará condicionado à politização do estudante do conteúdo das mudanças pretendidas’. Fundamental assim é o papel do estudante" (CARVALHO, Lucas, p. 233).
A universidade não poderá promover a criação de comunidades interpretativas na sociedade se não as souber criar no seu interior, entre docentes, estudantes e funcionários. Para isso é necessário submeter as barreiras disciplinares e organizativas a uma pressão constante. A universidade só resolverá a sua crise institucional na medida que for uma anarquia organizada, feita de hierarquias suaves e nunca sobrepostas. Por exemplo, se os mais jovens, por falta de experiência, não podem dominar as hierarquias científicas, devem poder, pelo seu dinamismo, dominar as hierarquias administrativas. (SANTOS, 1997 (2), p. 225).
Democratizar, inclusive, a universidade, para a co-gestão de professores, estudantes e funcionários, desmascarando o sofisma da reação, que recusa o chamado ‘assembleísmo’, a fim de manter a ditadura dos autoproclamados ‘competentes’: é claro que não se pode resolver um problema científico pelo voto, mas pode-se determinar pelo voto paritário a direção de programas, a distribuição das verbas, a administração e, em geral, o destino da instituição (LYRA FILHO, 1986, p. 314).
Os projetos de extensão constituem-se como espaço ideal para o início desse novo paradigma democrático. Por isso, o ideal é que não existam hierarquias internas nas atividades de extensão, rompendo a tradição burocrático-hierarquizada da estrutura universitária. Assim, o conhecimento produzido e sua gestão se tornam coletivos; a tarefa do professor deixa de ser a de ‘coordenar’ para se tornar a de ‘orientar’ – seu conhecimento orienta as atividades mas não prescreve as ações dos alunos; o coletivo não se submete à ordem ou às idéias de uma pessoa pela simples condição hierárquica; a integração é solidária e não existindo hierarquias verticais entre os estudantes; cargos e funções são apenas distribuições de atividades e não posições hierárquicas; a participação de funcionários também não os coloca como empregados mas como participantes em paridade de condições com os estudantes e professores; um espaço interno democrático e sem hierarquias se refletirá na atividade de extensão, na atividade com a comunidade, possibilitando a participação da própria comunidade na organização do projeto de extensão; a quebra da hierarquia serve de exemplo para a comunidade e educa para a participação.
Atente-se, enfim, que um novo modelo de Universidade não teme enfrentar a questão política. A Universidade, por estar inserida dentro da sociedade e estar ligada a todas as forças políticas resultantes desta. "Num notável texto de reflexão escrito no meio da turbulência estudantil, Wallerstein afirmava que ‘a questão não está em decidir se a universidade deve ou não deve ser politizada, mas sim em decidir sobre a política preferida. E as preferências variam’ " (SANTOS, 1997 (2), p. 207). (8) A Universidade, em sentido amplo, e as atividades de extensão, em um sentido estrito, estão de alguma forma ligadas a uma atuação política.
A extensão universitária pode se constituir em um elemento daquilo que Gramsci denomina ação orgânica ou, ainda, ação pedagógico-política. Quanto mais ela for acompanhada de pesquisa, mais força ou caráter orgânico ela poderá ter. A ação orgânica, a nosso ver, necessariamente tem de elevar as pessoas da camada popular e/ou a camada popular como um todo (quando se trata de políticas/iniciativas em nível de Estado ou em nível de sociedade global). Em outros termos queremos dizer que a extensão, caracterizada como orgânica, deve ser emancipadora, libertadora, possibilitar a autonomia e elevar o pensamento para além do senso comum (JANTSCH e SCHAEFER, p. 150).
Por isso é essencial ter-se em mente a pergunta: O que se pretende estender? Ou melhor, o que se pretende dialogar? (9) Será que o conhecimento que se pretende disponibilizar para a comunidade está impregnado com alguma ideologia? Qual?
Atentar-se às referidas perguntas é essencial pois a atividade de extensão pode (se feita sem reflexão) servir apenas para solver problemas superficiais, sem atingir as causas efetivas. Estender o Direito pode servir, portanto, para estender a ideologia dominante. Por isso, o conteúdo e a forma não se resumem a uma ‘forma de atuação’ mas se figuram como postura política da atividade de extensão. O conteúdo e o método irão determinar que se estenda o Direito como um espaço a ser conquistado – dialogando através dos direitos uma postura de participação democrática e popular.
5. Método Tradicional de Extensão: Assistência
O discurso jurídico tradicional utiliza-se das expressões ‘Assistência’ e ‘Assessoria’ indistintamente e como sinônimas. A distinção ocorreu apenas dentro dos movimentos sociais, sob a influência do discurso pedagógico de Paulo Freire, ao repudiar a idéia de assistencialismo. O movimento estudantil (em especial as denominadas AJUs – Assessorias Jurídicas Universitárias) assumiu essa distinção, mas por contradizer o conhecimento douto estabelecido acabou por conviver com uma intrigante contradição. Mesmo sabendo na prática as diferenças entre uma Assessoria e uma Assistência não há substrato teórico estabelecido sobre o tema. Por isso, essa discussão ganha relevância teórica e política.
O conhecimento "científico" do Direito conhece duas acepções de Assistência, usualmente referida nos livros sobre acesso à justiça e nos manuais de direito processual. A distinção ocorre entre assistência jurídica e judiciária. Assistência judiciária seria a elaboração de trabalhos processuais para defesa dos direitos dos hipossuficientes pela via do Poder Judiciário e de forma gratuita. Os exemplos de instituições que prestam assistência judiciária mais citados são os escritórios-modelo, a defensoria pública e os escritórios de advocacia popular. (10) O conceito de assistência jurídica pode ser retirado da Constituição Federal da República do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, inciso LXXIV; " – O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos" (11). Pode-se observar que a expressão utilizada na Constituição da República é: ‘assistência jurídica integral’. Por isso a doutrina tem considerado que a Constituição pretendeu ampliar a idéia de Assistência, incluindo, além da assistência judiciária, o que se entende por assistência jurídica. Logo, a assistência jurídica não está mais limitada à utilização do Poder Judiciário, mas também inclui meios extrajudiciais de conciliação, prestação de informações jurídicas por meio de consultorias, representação junto à administração pública, atividades de mediação de conflitos e atividades com o objetivo da educação (como a criação de cartilhas sobre direitos, palestras, etc.), entre outros.
É possível observar que essa distinção está calcada no uso (ou não) do Poder Judiciário. Enquanto a Assistência judiciária mantém-se ligada ao uso do Poder Judiciário a Assistência jurídica aceita novas possibilidades de resolução de conflitos. A primeira está ligada a uma concepção monista de Direito (o Direito é tudo que provém do Estado), já a segunda a uma concepção utilitarista do Direito (o Direito é tudo que resolve conflito). Além disso, ao se adotar essa terminologia proposta nos manuais, adota-se a idéia de que interessa apenas distinguir o que ‘é’ ou ‘não é’ assistência processual oficial, colocando-se todas as demais atividades de resolução de conflitos dentro do mesmo balaio de gato.
Não seria demasiada ousadia afirmar que a influência do positivismo jurídico está arraigada na base dessa concepção, adotando um viés monista e formalista do Direito. O que, obviamente, não se presta a atividades inovadoras de extensão jurídica universitária. Além do que, separa o Direito das demais áreas do conhecimento, ignorando a interdisciplinariedade.
Através das idéias de Paulo Freire, foi possível observar que as atividades de extensão universitárias (nesse caso as relativas ao Direito) se revelam, via de regra, como Assistência. Esse autor distingue duas possibilidades de Assistência: a intelectual e a material. Na primeira o sujeito recebe informações que são depositadas em sua mente, geralmente por meio de palestras (pelo que Freire chama de método bancário de ensino), ignorando-se a cultura popular e a experiência do sujeito, não transformando nem o "atendido" em sujeito do conhecimento (12) e muito menos a universidade. A segunda possibilidade é mais autoritária ainda, apenas se fornecendo algum produto pronto, como no caso de elaboração de petições sem a menor disposição ao diálogo. Esses duas possibilidades de assistência pautam-se na centralidade do solvimento do litígio pelo sujeito da universidade. O objetivo de ambas é a diminuição da litigiosidade. Mesmo quando a ‘assistência intelectual’, pretensamente, quer estimular a educação para autonomia e cidadania não o faz efetivamente porque atua como se o ‘atendido’ fosse apenas um ‘objeto’, um depósito a ser preenchido. Além disso, tanto a assistência intelectual quanto a material se limitam ao legal instituído. Portanto não superam a concepção monista de Direito, ignorando o pluralismo jurídico.
Ao primeiro contato com o tema, não raro, confunde-se ‘Assistência intelectual’ com a ‘Assessoria Jurídica’ pois a primeira objetiva a educação para os direitos assim como a segunda. Todavia, algumas características da primeira fulminam tal compreensão. Assistência intelectual objetiva a educação para a solução de litígios. A cidadania se resume a entender os direitos conferidos e exercê-los através do ordenamento jurídico já instituído. A assistência intelectual serve apenas para informar o cidadão de sua cidadania. A cidadania existe pronta em alguma legislação. O vazio da proposta de ‘assistência intelectual’ se encontra no conceito de cidadania, o qual se resume a um amontoado de direitos. Se assim se considerar, educar não conferirá cidadania a ninguém, mas somente a aperfeiçoará e torná-la-á consciente. A cidadania não seria uma conduta desejável (ética cidadã), porém apenas um conjunto de direitos concedidos pelos Getúlios desse berço esplêndido. (13)
A Assistência jurídica é predominante no meio acadêmico de Direito porque se utiliza de preconceitos para se naturalizar. Acredita-se na superioridade do conhecimento universitário, o que, consequentemente, leva à invasão cultural e à supressão do diálogo. "O diálogo verdadeiro só é possível entre iguais ou entre pessoas que desejam igualar-se" (BORDENAVE, p. 51). Para a Assistência o conhecimento universitário é dádiva que solverá todos os problemas da sociedade e a experiência histórica do sujeito comunitário de nada vale. De outro lado, acredita-se na vanguarda da universidade, a qual intitula-se centro da crítica na sociedade, pretendendo conferir a todos um conhecimento superior e puro (14). Por fim, com especial relevância nas universidades públicas, acredita-se retribuir (e até pagar) a gratuidade do ensino oferecendo um ‘serviço’ a sociedade. Na perspectiva de ‘serviço’ se oferece o conhecimento universitário na forma de ‘mercadoria’, mesmo que gratuita. (15)
Essa perspectiva, pautada em preconceitos, é chamada por Paulo Freire de ‘assistencialismo’ e, em resumo, é criticada pelo mesmo pois:
Opúnhamo-nos a estas soluções assistencialistas, (...) Em primeiro lugar, contradiziam a vocação natural da pessoa – a de ser sujeito e não objeto, e o assistencialismo faz de quem recebe a assistência um objeto passivo, sem possibilidade de participar do processo de sua própria recuperação. Em segundo lugar, contradiziam o processo de ‘democratização fundamental’ em que estávamos situados. (...) O grande perigo do assistencialismo está na violência do seu antidiálogo que, impondo ao homem o mutismo e passividade, não lhe oferece condições especiais para desenvolvimento ou a ‘abertura’ de sua consciência que, nas democracias autênticas, há de ser cada vez mais crítica. (...) O assistencialismo (...) é uma forma de ação que rouba ao homem as condições à consecução de uma das necessidades fundamentais de sua alma – a responsabilidade. (...) É exatamente por isso que a responsabilidade é um dado existencial. Daí não pode ser ela incorporada ao homem intelectualmente, mas vivencialmente. No assistencialismo não há responsabilidade. Não há decisão. Só há gestos que revelam passividade e ‘domesticação’ do homem (FREIRE, 1969, p. 57-8).
Observe-se que, quando a Assistência Jurídica ganha traços de ‘assistencialismo’, sua proposta perde todo o significado político e social radicais que a extensão universitária inovadora pretende. Um Estado democrático deve oferecer ‘Assistência jurídica’ como direito fundamental ao hipossuficiente e a Universidade Pública pode ser um caminho para possibilitar tal direito. Todavia, duas características são estreitas a essa questão: a necessidade e a excepcionalidade da Assistência. (16) Quando a Assistência não é necessária ou se normaliza recai-se no paternalismo e no assistencialismo. A ‘Assistência jurídica’ se justifica pelos obstáculos econômicos ao acesso à justiça. Todavia, a moderna doutrina sobre o Acesso à Justiça identifica, além dos obstáculos econômicos, obstáculos socioculturais (17). Ao se falar em obstáculos ao Acesso à Justiça não se trata só da pobreza econômica, mas também de seus efeitos culturais, sociais e políticos que levam ao desconhecimento e à descrença nos direitos. A Assessoria jurídica desenvolveu-se, precisamente, sobre a crítica do ‘assistencialismo’ e não sobre a crítica da ‘Assistência’ jurídica como direito fundamental.
Na exemplificação das atividades assistencialistas interessa referir-se ao chamado escritório-modelo. Sua influência está presente em todas as demais atividades de ‘extensão’ em Direito, as quais, em geral, buscam levar o escritório-modelo para comunidades marginalizadas. Esse talvez seja o grande problema da extensão em Direito: reproduz-se um método sem reflexão. Daí a importância de desconstruir a concepção metodológica do escritório-modelo para se visualizar a ideologia que o permeia. Obrigatório para a formação do aluno, o escritório-modelo parte, tanto na teoria como na prática, de uma concepção assistencialista. O grande problema metodológico da concepção do escritório-modelo é a tentativa de conciliação da prática assistencialista com o ensino da prática judiciária (18) para o acadêmico de Direito. Entretanto, geralmente, não se pratica "Assistência" jurídica livre do assistencialismo, assim como o ensino de prática é muito limitado e improvisado.
Outras propostas de extensão em Direito se limitam a "Assistência" intelectual, como na formulação de cartilhas, panfletos, folders e todo o tipo de material informativo sobre o Direito, ou na realização de palestras, conferências e cursos. Todavia, não há diálogo com a comunidade e a efetividade destas atividades de pretensa educação é questionável. Falta atenção a metodologia de ensino. As atividades de mediação e conciliação, geralmente, são feitas com o intuito de solver problemas específicos como separações, divórcios, pequenos danos, acidentes de trânsito, brigas de vizinhos, entre outros. Objetivam evitar o trâmite no Poder Judiciário, o que demonstra falta de sincronia desse com os problemas e a realidade social atual. Muitas vezes se oferecem acordos (su)geridos por um ‘conciliador’ que irá avaliar a situação jurídica, prever as conseqüências e propor a solução. As partes figuram como espectadores. Sua participação se resume a concordar ou discordar do acordo, sob a coação de enfrentamento do moroso e custoso Poder Judiciário.
Comparando os serviços legais tradicionais e os inovadores Campilongo desenvolveu no início da década de 80 uma tipologia dos serviços legais no Brasil, sendo a primeira reflexão sobre a questão dos serviços legais e o surgimento de novas realidades sociais. Sua tipologia divide os serviços legais tradicionais e inovadores:
Características dos Serviços Jurídicos na Tipologia de Celso Fernandes Campilongo
Serviços Legais Tradicionais: individual; paternalismo; apatia; mistério; legal; controle de litigiosidade; técnico jurídico; demandas clássicas; ética utilitária; certeza jurídica.
Serviços Legais Inovadores: coletivo; organização; participação; desencantamento; extralegal; explosão de litígios; multiprofissionalismo; demandas de impacto social; ética comunitária; justiça. (19)
A partir da crítica aos modelos de tradicionais de serviços legais começaram a surgir novas experiências de extensão universitária em Direito. A conciliação dessa nova perspectiva de serviços legais desenvolvida no período de redemocratização brasileira com as críticas pedagógicas freirianas formularam a nova perspectiva de extensão que os estudantes, apropriando-se do nome criado nos movimento sociais, denominaram Assessoria.