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A plenitude defensória perante o tribunal do povo

Agenda 22/03/2005 às 00:00

O que tinham em comum Napoleão e Shakespeare?

            Resposta: o desprezo pelos advogados e pela defesa jurídica. Shakespeare foi quem escreveu a peça Henrique IV, cujo protagonista ponderava: "A primeira coisa que devemos fazer é matar todos os advogados". Assim, percebe-se que há muito tempo a atuação do advogado não é bem compreendida no tocante à amplitude defensória. Muitos entendem que seria melhor que não existissem advogados; há os que pensam que a informática poderia englobar até as atividades advocatícias e judiciárias, como vem ocorrendo nos Estados Unidos. Para combater essas afirmações, mostraremos que a presença do advogado é indispensável em qualquer setor jurídico.

            No Tribunal do Júri, especialmente, nada é mais equivocado do que o entendimento segundo o qual o advogado é dispensável. O dia do julgamento, perante os senhores jurados, é o momento em que o causídico exerce o seu mister com grande talento e responsabilidade, é como se fosse uma microcirurgia de cérebro. Uma falha, um erro, um esquecimento, uma falta de suscitação de um quesito ou de uma nulidade no momento certo, e tudo redundará num resultado negativo.

            A Constituição anterior falava em ampla defesa. A atual também trata do assunto, mas atribui, de forma extraordinária, exclusivamente para o Júri, a figura da "plenitude de defesa" (art. 5.º, XXXVIII, "a"), e este é o ponto nodal a frisar neste artigo: há uma diferença enorme entre "ampla defesa" e "plenitude de defesa", sendo a última muito mais ampla e complexa.

            A explicação é simples: a plenitude de defesa é admitida somente no Tribunal do Júri, pois é usada para conscientizar os jurados. Os juízes de fato não decidem por livre convicção, e, sim, por íntima convicção, sem fundamentar de forma secreta e respondendo somente perante a consciência de cada um.

            É por causa disso que existe, só no Júri, plenitude de defesa, pois o defensor poderá usar de todos os argumentos lícitos para convencer os jurados.

            No Tribunal do Povo, todas as ponderações, indagações e atitudes do advogado estão ligadas umbilicalmente à plenitude defensória exercida no Júri. Esse princípio constitucional se materializa no momento em que o advogado adentra o tribunal, antes mesmo do sorteio dos jurados. Pelo princípio da plenitude defensória, o advogado pode, com todo o respeito, saber mais sobre os senhores jurados – e não apenas o que consta da lista dada às partes –, indagando maiores detalhes da profissão deles, grau de instrução etc., detalhes esses que muitas vezes são preciosos para a escolha do jurado.

            O jurado é a peça principal desse complicado jogo de xadrez que é o Júri, por isso, deve ser tratado sempre com o maior respeito e com muita humildade por parte do advogado; saber mais sobre o senhor jurado é imprescindível, pois este é o representante do povo na Justiça – e, afinal, é ele quem decide a causa.

            A plenitude defensória continua fluindo no decorrer do julgamento, no qual o advogado poderá formular reperguntas ao réu no interrogatório.

            Outro momento importante em que o advogado faz uso da plenitude defensória é o da inquirição das testemunhas em plenário, postulando que elas respondam às reperguntas voltadas para os juízes de fato, que são os jurados. Assim, eles poderão visualizar expressões das testemunhas e sentir a veracidade de cada depoimento.

            De fundamental importância para esse tema, é a questão da inquirição direta da testemunha e não pelo sistema presidencial (também chamado de presidencialista). São estremes dúvidas que é defeso ao magistrado impedir a inquirição direta, existindo até um importante aresto do Tribunal de Justiça carioca que entende como nulo o julgamento por ter o magistrado feito a inquirição no caminho presidencial, apesar da impugnação da parte.

            Importante destacar a demonstração também na fase de inquirição das testemunhas, podendo tanto o advogado demonstrar determinada situação no momento de repergunta, quanto a testemunha, ao responder, fazer uso da demonstração para que os jurados se transportem para a época dos fatos, a fim de tomar a melhor decisão.

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            Isso é plenitude defensória!!!

            Na ampla defesa, em seus limites, ao juiz singular não há possibilidade de demonstrações, como as acima mencionadas, pois exorbitam a amplitude defensória.

            Voltando ao Júri, na leitura de peças, tema polêmico, o objetivo não é de forma alguma cansar os jurados, e, sim, dar-lhes subsídios para fazer reperguntas às testemunhas. E aqui vale destacar a importância de não se inverter a ordem processual: ouvindo primeiro as testemunhas, depois, efetuando a leitura de peças, pois um dos objetivos maiores é dar ao jurado conhecimento total da causa para fazer reperguntas; com a inversão, a leitura de peças extensa perde um de seus grandes objetivos.

            A leitura de peças, sem dúvida, é favorável à pesquisa da verdade real, mesmo porque, durante a leitura, o advogado poderá orientar o escrivão do Júri a ler ou não certos trechos de reportagens, depoimentos ou documentos, suprimindo na hora algo excessivo, sem lesar a parte contrária; mostrar aos jurados fotografias; enfim, demonstrar aos juízes interesse e responsabilidade com tudo isso, fazendo uso da plenitude defensória.

            Há quem diga que com uma defesa tão complexa o advogado corre o risco de perder a causa. E entendo ser melhor, entretanto, correr risco por excesso do que por falta.

            Certa vez, num Júri, um juiz-presidente formulou um quesito sobre uma tese, com base na plenitude defensória, por conta e risco da defesa. Sua Excelência entendia que era uma causa supralegal e que a defensoria até se arriscaria naquela argüição.

            Muito bem, não só a defesa ganhou o julgamento, mas também o Promotor de Justiça apelou. Na sustentação oral, a defesa ganhou, por unanimidade, com a tese suscitada no Júri.

            Muitas vezes, para uma defesa plena, o advogado acaba tendo de correr riscos, porém sempre de uma forma lícita e ponderada.

            O princípio da plenitude defensória faz com que o causídico assuma uma certa margem de risco, mas, no final, independentemente do resultado, o advogado sempre terá garantido um trabalho em que todas as possibilidades lícitas de defesa tenham sido esgotadas; certamente, com um bom trabalho executado, o resultado será o mais positivo para o constituinte.

            De todos os livros que li sobre o Júri, o que mais me impressionou foi a obra A Defesa Tem a Palavra, do grande e saudoso advogado de Júri, Evandro Lins e Silva, nascido em 1912 e, hoje, considerado o "advogado do Brasil". Esse epíteto deve-se ao fato de que o Dr. Evandro, em 1992, foi contratado para fazer a acusação do ex-Presidente Collor, em Brasília; entrevistado, o nobre advogado disse que já tinha tido causas muito importantes, mas agora estava defendendo o seu cliente mais querido: o Brasil.

            Na obra referida, na página 18, encontro uma ponderação do jurista que tem elo com o assunto aqui tratado. Diz ele: "Para o advogado que adquiriu certa notoriedade, não há pequenas causas, breves audiências, rápidos debates no Tribunal popular. É a discussão que se alonga, cada um esgota o seu tempo. A sina do advogado de algum destaque é falar pela madrugada".

            Para falar durante a madrugada, logicamente, a defesa se alongou, com alguns dos detalhes aqui levantados. Quando o Dr. Evandro escreveu o referido livro, em 1984, ainda não estava em vigor o novel dogma da plenitude de defesa, estabelecido somente quatro anos depois. Se naquela época a defesa era assim feita, com maior amplitude deve ser vista nos dias atuais. O Dr. Evandro tinha autoridade para falar de uma defesa longa e eficiente. Se ele, que era mestre, insistia nessa grande plenitude, quem poderia contradizê-lo? Na verdade, mesmo antes da Constituição atual, o mestre já aplicava a plenitude, tendo sido pioneiro numa medida advocatícia que, até hoje, causa polêmica: a entrega de memoriais aos 21 jurados, dias antes do julgamento.

            Como já foi dito, perante o juízo singular, a amplitude de defesa tem limites, pois o magistrado é o presidente do processo, devendo empenhar-se em escoimar as provas impertinentes para a Justiça togada.

            Ao contrário, na plenitude de defesa, o magistrado não deve retirar e desentranhar dos autos documentos juntados para os jurados, pois o que parece impertinente ao juiz, pode ter grande relevância aos jurados, uma vez que estes decidem por íntima convicção e darão aos documentos o valor necessário. No final das contas, tudo poderá prejudicar ou beneficiar o réu, sempre por conta e risco da defesa.

            O Tribunal de Justiça paulista num julgamento de mandado de segurança criminal, no qual se pesquisava essa matéria, decidiu e entendeu que, para os jurados, salvo provas ilícitas, nada pode ser sonegado, mesmo que o magistrado imagine certo documento não ter ligação umbilical com a causa. Aliás, quero consignar o caminho dos repositórios jurisprudenciais para essa hipótese: cabe mandado de segurança criminal quando o juiz determina o desentranhamento de algo de interesse à parte.

            Ao encerrar, volto a falar de Napoleão e de Shakespeare. Eles achavam que o advogado atrapalhava a distribuição da Justiça. Não tiveram, porém, pessoa querida processada perante a Justiça criminal. Se esse fato tivesse ocorrido, sem dúvida, as figuras históricas referidas teriam procurado, humildemente, um advogado especializado, dizendo: "Doutor, por favor, faça tudo por ela!".

            E, finalizando, quero aditar o seguinte: aqueles que entendem que o computador e a informatização podem fazer tudo o que aqui foi brevemente suscitado, devem, de fato, dispensar o advogado dos pretórios, porém, por conta e risco total do interessado.

Sobre a autora
Elaine Borges Ribeiro dos Santos

advogada criminalista, professora do Complexo Jurídico Damásio de Jesus, professora titular na Escola Superior de Advocacia (ESA) da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB/SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Elaine Borges Ribeiro. A plenitude defensória perante o tribunal do povo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 622, 22 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6485. Acesso em: 24 nov. 2024.

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