5. A QUESTÃO DOS PACIENTES MENORES
Outra questão bastante conflitiva é a relativa ao direito dos pais se recusarem à realização de transfusão sanguínea em seus filhos menores.
É cediço que aos pais, detentores do poder familiar, incumbe o dever de realizar todo o possível para manter a saúde e a vida de seus filhos. Pertence a eles também, indubitavelmente, a iniciativa de formação religiosa até que seus filhos, chegados à idade adulta, possam decidir pela religião a ser por eles seguida e assumir pessoalmente as conseqüências desta opção.
Todavia, o poder familiar não é absoluto, uma recusa ao tratamento do filho menor por razões de crença religiosa constituir-se-ia em "exercício abusivo do pátrio poder" [25], uma vez que o Estado transporta para os pais o dever de garantir a vida de seus filhos, porém, se atuarem em sentido diverso, não se pode permitir que a vontade dos pais se sobreponha ao direito de viver de seus filhos, impondo-se, portanto, a intervenção estatal.
Vislumbrada esta hipótese, cumpre ao médico proceder à transfusão, defendendo a vida de seu paciente e, caso venha o hospital a pedir autorização judicial, é dever do magistrado a concessão da tutela em nome da vida deste menor, fundamentada na premissa que o direito à vida pertence ao ser humano, ao indivíduo, e não aos seus pais.
Registra-se opinião em sentido oposto de Celso Ribeiro Bastos que, utilizando-se da tese de que o pátrio poder é absoluto [26], entende que a decisão de não submeter o menor de idade a determinado tratamento médico pertence ao parente responsável por ele.
Frisa-se, data maxima venia, nossa discordância acerca desse posicionamento, por acreditar que, após um juízo de ponderação, no caso da transfusão se mostrar imprescindível à manutenção da vida do menor, não seria razoável deixar de realizá-la e, com base em crença religiosa dos pais, dispor justamente daquela vida que precisa de maior proteção pelo ordenamento jurídico: o menor, criança ou adolescente. Não se vislumbra proporcionalidade alguma em afastar a vida de quem sequer possui maturidade para escolher determinada religião.
6. A RESPONSABILIDADE DO MÉDICO
Diante da recusa por convicções religiosas, o médico enfrenta dramática situação: sua formação direciona-o para salvar vidas, porém, se realiza a transfusão contra a vontade do paciente, sujeitar-se-ia às conseqüências de natureza civil e penal, pela intervenção não consentida no corpo do paciente.
Dessa forma, frente à situação clínica que demande a realização de transfusão sanguínea em paciente que recuse a se submeter a tal procedimento, a responsabilidade do médico requer análise cuidadosa por envolver, além de matéria constitucional, aspectos da esfera penal com grande possibilidade de reflexos na seara da reparação civil.
Analisa-se, de início, no capítulo dos direitos da personalidade, o conteúdo do art.15 do Código Civil. Este determina que "ninguém será constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica".
Ao determinar a ilicitude de qualquer intervenção, com risco de vida, sem o consentimento prévio do paciente, este artigo objetiva reforçar o direito fundamental à liberdade de escolha: privilegia a autonomia individual do paciente.
O comando legal visa coibir a intervenção médica que ponha em risco a integridade física e, no caso das Testemunhas de Jeová, a integridade moral de pacientes, sem que haja o prévio consentimento. Dessa forma, entende-se que está incluída naquele dispositivo a hipótese de transfusão sanguínea, quando esta importe em risco de vida.
Entretanto, outro é o entendimento tratando-se de situação de urgência. Ao definir o crime de constrangimento ilegal, o Código Penal considera como fato atípico o ato do médico que, sem o prévio consentimento, realiza a transfusão sanguínea, presente a circunstância do perigo iminente ou para impedir o suicídio.
Transportando-se a permissão legal para o caso em tela, entende-se que, se o paciente Testemunha de Jeová encontra-se em estado de hemorragia grave, devido a um acidente, por exemplo, ou presente o perigo imediato, como na hipótese de imprescindibilidade da transfusão sanguínea no meio de uma cirurgia, incumbe ao médico proceder à transfusão, mesmo que os responsáveis por aquele paciente manifestem-se de forma contrária.
Dessa forma, perante o efetivo risco de vida, o médico deve proceder à transfusão, sem que esta atitude configure crime algum, uma vez que o art.146, §3º, I, do Código Penal, permite o tratamento forçado, se o paciente estiver exposto a iminente perigo de vida.
Salienta-se que se tratando de paciente capaz e totalmente consciente, ou seja, no gozo pleno de suas faculdades mentais e apto a manifestar seu consentimento, a liberdade de consciência, neste caso, urge por ser respeitada: seu direito de escolha deve prevalecer, ressalvando-se a hipótese anteriormente analisada de perigo imediato.
Com relação ao consentimento, insta discorrer, ainda que brevemente, a respeito da validade da vontade antecipada do paciente, por escrito, recusando-se a determinado tratamento médico, para a hipótese de estado de inconsciência.
Ora, em primeiro, reforça-se nosso entendimento que a recusa somente é aceita na hipótese do paciente estar em pleno estado de consciência, pois deve ser real e pessoal, espontânea e consciente [27], uma vez que essa oposição à transfusão, provavelmente, acarretará graves conseqüências à sua integridade física.
Em segundo, há a questão da suspeita de espontaneidade no momento que a pessoa firmou aquele documento. Sobre esta, faço como minhas as palavras de Miguel Ángel Núnez Paz, o qual levanta dúvidas, das mais intensas, acerca da validade daquele documento, pois "correspondendo aos motivos religiosos de grupos muito fechados, é mais fácil suspeitar, com fundamento, que muitas vezes a assinatura daquele não terá sido espontânea e livre de pressões externas". [28]
Sendo assim, presente o perigo iminente, a urgência, o estado de inconsciência, o valor vida prevalece, e surge para o médico o dever de agir, sem que por isto venha a ser responsabilizado.
Para finalizar, corresponde ao nosso o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual trazemos à colação:
Importante salientar que, de resto, não há porque médicos e hospitais temerem, desde que atuem dentro de normas técnicas tidas como amparadas em conhecimentos científicos sólidos e sérios, fundamentados em boa literatura médica. Não há como evitar divergências técnicas e científicas na Medicina e não pode o médico deixar de agir em nome daquelas divergências, desde que siga corrente técnico-científica reconhecida e acatada nos meios médicos e hospitalares. Basta ao médico e ao hospital demonstrarem ter atuado dentro da Medicina. Aliás, por isto se diz que a obrigação do médico é obrigação de meios e não de resultado [...]. Se o médico, dentro daquelas regras técnicas e científicas, fizer a transfusão de sangue, porque havia perigo iminente de vida para o paciente (novamente o art.146 do CP, em seu §3°, I), não poderá sofrer conseqüências negativas, mesmo que o paciente, seus familiares e todas as Testemunhas de Jeová do mundo não quisessem a transfusão! A liberdade de religião não pode sobrepor à vida e nem a vida é direito disponível. Se o médico não fizesse a transfusão e como decorrência morresse o paciente, seria ele responsabilizado até por crime de homicídio culposo (imperícia) e seria responsabilizado civilmente! Só este aspecto contundente e inatacável mostra como há casos em que o médico deve fazer o que entende correto para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade dele e de seus familiares, amigos, conhecidos, companheiros de religião, etc. [29]
7. O FUNDAMENTO RELIGIOSO
Mas, afinal, quais são os motivos que levam uma pessoa praticante desta religião a recusar a transfusão de sangue?
Afirma-se que determinados textos do Antigo Testamento proíbem o povo de Deus de alimentar-se com sangue e os adeptos dessa crença estenderam esta proibição à administração de sangue por qualquer via, alegando-se os riscos advindos das transfusões.
Carlos Ernani Constantino, Promotor de Justiça no Estado de São Paulo, em réplica às críticas tecidas ao seu artigo "Transfusão de Sangue e Omissão de Socorro" [30], explica que:
As denominadas Testemunhas de Jeová interpretam erroneamente a passagem bíblica de Atos, cap. 15, vers. 20, em que os Apóstolos, trazendo algumas regras do Antigo para o Novo Testamento, recomendaram aos novéis cristãos (isto é, aos recém-convertidos do Paganismo ao Cristianismo), que se abstivessem do sangue; a sobredita seita vê, aqui, uma proibição implícita da realização de transfusões sanguíneas. Entretanto, o leitor atento, lendo todo o capítulo 15 de Atos, entende que a questão posta em debate era se algumas normas do Judaísmo (Antigo Testamento) deveriam ou não prevalecer no Cristianismo (Novo Testamento); a conclusão foi a de se conservarem as regras contidas no versículo 20, entre elas, a abstenção do sangue; porém, tal proibição, oriunda do Antigo Concerto, era a de se comer o sangue dos animais. (Gênesis, 9:4; Levítico, 3:17). Só dos animais, pois, naquela época, nem se sonhava com transfusões sangüíneas, entre seres humanos... As Testemunhas retrucam que o sangue humano equipara-se ao sangue dos animais, o que é uma falácia, pois a própria Bíblia diz que "a carne (natureza física) dos homens é uma e a carne dos animais é outra" (I Coríntios, 15:39). Por fim, argumentam as Testemunhas que, se não se pode comer, pela boca, o sangue, não se pode, também, ingeri-lo pela veia, em uma transfusão. Contudo, o médico acima mencionado, Dr. Sinésio, esclarece o seguinte: "A reação metabólica é completamente diferente, ao se comer o sangue (de animais) e ao se tomar uma transfusão de sangue (humano) pela veia: quando se come o sangue (animal) - pela boca, é óbvio -, o organismo absorve as gorduras e proteínas, mas a massa sangüínea é posta fora, após a digestão, pelas fezes; quando se toma uma transfusão de sangue (humano), pela veia, a massa sangüínea aplicada não é eliminada pela digestão, mas incorpora-se no sangue do paciente. [31]
Os fiéis desta religião, os intitulados Testemunhas de Jeová, não aceitam a transfusão de sangue por entender que "o sangue de outrem é impuro, moralmente contaminado" [32].
Entretanto, não cabe aqui analisar as justificativas bíblicas para esta recusa, objetiva-se apenas informar o possível fundamento religioso que leva os seguidores desta religião a preferirem a morte à uma transfusão sanguínea.
8. A VISÃO DOS TRIBUNAIS
Neste ponto, para finalizar, objetiva-se expor a visão de alguns Tribunais acerca da matéria. Desde logo, informa-se que não há muitas decisões jurisprudenciais que abordam especificamente a questão e, então, trazemos à baila apenas duas visões mas que melhor representam o entendimento global da questão.
Miguel Kfouri Neto [33] informa que a jurisprudência por ele consultada não registra sequer uma demanda indenizatória que condenasse o médico à reparação civil por ter procedido à transfusão de sangue contra a vontade do paciente ou de seu responsável.
Na seara penal, o TACrimSP manifestou-se sobre a matéria e, nas palavras do autor supracitado, o acórdão "contém preciosas lições- e serve de paradigma", as quais entendemos pertinente colacionar:
A vida humana é um bem coletivo, que interessa mais à sociedade que ao indivíduo, egoisticamente, e a lei vigente exerce opção axiológica pela vida e pela saúde
Em precioso acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o Des. Sérgio Gischkow Pereira aborda a matéria de forma a resumir seus pontos de maior relevância e profere, com propriedade, o seu posicionamento acerca do tema. Cumpre trazermos à colação parte do seu voto, pois, além de corresponder à nossa posição, demonstra o que consideramos por uma decisão justa:
CAUTELAR. TRANSFUSAO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVA. Não cabe ao poder judiciário, no sistema jurídico brasileiro, autorizar ou ordenar tratamento médico-cirúrgicos e/ou hospitalares, salvo casos excepcionalíssimos e salvo quando envolvidos os interesses de menores. Se iminente o perigo de vida, é direito e dever do medico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao medico e ao hospital demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica apoiadas em séria literatura médica, mesmo que haja divergências quanto ao melhor tratamento. O judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da atividade hospitalar. Se transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura médico-cientifica (não importando naturais divergências), deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida (art-146, §3°, I, do Código Penal). [...] O direito à vida antecede o direito à liberdade, aqui incluída a liberdade de religião; é falácia argumentar com os que morrem pela liberdade, pois aí se trata de contexto fático totalmente diverso. Não consta que morto possa ser livre ou lutar por sua liberdade. Há princípios gerais de ética e de direito, que aliás norteiam a Carta das Nações Unidas, que precisam se sobrepor às especificidades culturais e religiosas; sob pena de se homologarem as maiores brutalidades; entre eles estão os princípios que resguardam os direitos fundamentais relacionados com a vida e a dignidade humanas. Religiões devem preservar a vida e não exterminá-la. [...] Abrir mão de direitos fundamentais, em nome de tradições, culturas, religiões, costumes, é, queiram ou não, preparar caminho para a relativização daqueles direitos e para que venham a ser desrespeitados por outras fundamentações, inclusive políticas. [...] É o voto. [35]