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Projeto de Lei n. 3734/2012 e Súmula 605 do STJ: o Direito da Criança e do Adolescente esquecido

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Agenda 20/04/2018 às 20:37

Embora a doutrina da Proteção Integral e Estatuto da Criança e do Adolescente tenham como principal finalidade proteger pessoas em pleno desenvolvimento, observa-se o Legislativo e Judiciário em sentido contrário: penalizar adolescentes e não educá-los.

Sumário: 1. Introdução; 2. Doutrina da Proteção Integral e Estatuto da Criança e do Adolescente; 3. Medida socioeducativa e Pena; 4. Projeto de Lei n. 3734/2012 e Sistema Único de Segurança Pública - SUSP; 5. Súmula 605 do STJ e Apuração de Ato Infracional; 6. O Direito da Criança e do Adolescente esquecido; 7. Conclusão; 8. Referência.


1. Introdução

Quando o assunto é criança e adolescente, a Doutrina da Proteção Integral e Estatuto da Criança e do Adolescente despontam e balizam toda e qualquer defesa em favor dessas pessoas especiais pela sua própria condição de vida, em pleno desenvolvimento.

Decorre da almejada proteção integral, dentre tantas ações positivas, a aplicação de medidas socioeducativas, de caráter pedagógico e com a finalidade de reinserir o adolescente praticante do suposto ato infracional em seu ambiente familiar e social.

O que se observa, no entanto, é que os Poderes Legislativo e Judiciário brasileiros parecem caminhar, recentemente, na contramão da história, solicitando urgência no trâmite do Projeto de Lei 3734/2012, contrário à Doutrina da Proteção Integral, tão especialmente conquistada ao logo de décadas e consolidada por nosso ordenamento jurídico; bem como a Súmula 605, criada pelo Superior Tribunal de Justiça, deixando evidente que a necessidade da sua aprovação pela Corte Superior em 19/03/2018 denota desrespeito pelas instâncias inferiores à referida doutrina, pois precisou elucidar dúvida ou divergência sobre a aplicabilidade de medida socioeducativa após a maioridade penal.

Pretende-se, pois, verificar até que ponto referidas medidas são prejudiciais ao desenvolvimento de adolescentes submetidos ao regime prisional, bem como o efetivo respeito ao Direito da Criança e do Adolescente, que diante da necessidade de criação de súmulas e projetos de lei parece ter-se tornado um direito esquecido.


2. Doutrina da Proteção Integral e Estatuto da Criança e do Adolescente

A Doutrina da Proteção Integral, consagrada no artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/1990), firmou-se no Brasil enquanto fruto da Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, criada pela ONU, em substituição à Doutrina da Situação Irregular, consolidada no país por meio do Código de Menores (Lei n. 6697/1979).

A Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, aprovada de forma unânime pela Assembleia das Nações Unidas em 1989 - portanto entre a Constituição e o Estatuto -, no mesmo sentido, foi fundamental para a consagração da Doutrina da Proteção Integral, pois segundo Veronese, “tem natureza coercitiva e exige de cada Estado-Parte que a subscreve e ratifica um determinado posicionamento. Como conjunto de deveres e obrigações aos que a ela formalmente aderiram, a Convenção tem força de lei internacional, e assim, cada Estado não poderá violar seus preceitos, como também deverá tomar medidas positivas para promovê-los.[2]”

Como resultado, portanto, dessas importantes alterações em nosso ordenamento jurídico, consolidou-se a Doutrina da Proteção Integral, constituindo um verdadeiro divisor de águas, pois as crianças e adolescentes deixaram de ser analisados como uma “patologia social” – sistema menorista – para serem observados na condição de “sujeitos de direitos”, conforme pensamento de Sanches e Veronese: “a nova postura exigida pela Doutrina da Proteção Integral atribui a todas as crianças e adolescentes indistintamente e em qualquer situação jurídica, a condição de sujeitos de direitos, sendo-lhes garantidos todos aqueles necessários ao seu pleno desenvolvimento, ainda que cometa um ato infracional.[3]”

Nesse sentido, com a finalidade de criar “um novo modelo social, que priorize o desenvolvimento sadio de nossas crianças e adolescentes”, a Doutrina da Proteção Integral enseja “novas práticas, ações concretas que incidam nas questões do cotidiano, com a promoção de uma cidadania para as nossas crianças e adolescentes de forma responsável e, sobretudo, respeitosa com sua condição de pessoas em processo de desenvolvimento”[4].


3. Medida socioeducativa e Pena

Ressalta-se, inicialmente, que imputar significa atribuir a alguém a responsabilidade por um ato, sujeitando a pessoa suscetível à aplicabilidade das normas e sanções previstas no Código Penal.

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Nas palavras de Delmanto, ”A imputabilidade é a capacidade de a pessoa entender que o fato é ilícito e de agir de acordo com esse entendimento.[5]"

Nos termos do artigo 27 do Código Penal, “os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial[6]”.

A Constituição Federal de 1988, no mesmo sentido, confirmou a maioridade penal aos 18 anos ao estabelecer que: “Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.[7]” Destaque-se que por se tratar de cláusula pétrea, tal dispositivo somente poderia ser alterado por uma nova Assembleia Nacional Constituinte.

Desse modo, desde 1990, a legislação especial que responsabiliza os adolescentes – pessoas de 12 a 18 anos de idade – por seus atos é o Estatuto da Criança e do Adolescente.

No lugar de penas, o Estatuto “prevê medidas socioeducativas que são dispostas em grau de severidade, no seu art. 112, dependendo, para a aplicação de cada medida, de algumas questões fundamentais que são: a capacidade do adolescente em cumprir determinada medida, as circunstâncias que sucedeu o suposto ato infracional e a gravidade deste último[8]”, segundo Veronese.

Dentre as medidas socioeducativas previstas no art. 112 do Estatuto, tem-se: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional, além daquelas previstas no art. 101, I a IV do mesmo diploma legal.

O que se observa, portanto, é que a legislação especial a que fazem alusão a Constituição Federal e o Código Penal, não tem a pretensão de penalizar o adolescente, até porque a sua inimputabilidade não lhe permite entender de forma completa a suposta ilicitude de sua conduta, mas antes fortalecer os seus vínculos familiares e comunitários por meio do caráter pedagógico das medidas socioeducativas, pois certamente foi a fragilidade ou deterioração dessas relações que o levou a descumprir preceito legal.


4. Projeto de Lei n. 3734/2012 e Sistema Único de Segurança Pública – SUSP

Embora a Doutrina da Proteção Integral e o Estatuto da Criança e do Adolescente deixem evidente que é diferenciado o tratamento destinado aos adolescentes caso cometam ato infracional, segundo seus objetivos e finalidade, em 23/04/2012 o Poder Executivo apresentou o Projeto de Lei n. 3734, que disciplina, em especial, a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, nos termos do § 7° do art. 144 da Constituição Federal; cria a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS); e, institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp).

Referido projeto de lei, pautado com urgência para votação na Câmara dos Deputados no último dia 11/04/2018, teve sua redação final aprovada no mesmo dia e encaminhada ao Senado Federal no dia 12/04/2018[9].

Tal redação prevê a inclusão dos agentes e órgãos do sistema socioeducativo no Sistema Único de Segurança Pública (Susp), quando estabelece, em seu art. 9º, § 2º, IX, que: “são integrantes operacionais do Susp: I – polícia federal; II o polícia rodoviária federal; III – polícias civis; V polícias militares; VI – corpos de bombeiros militares; VII – guardas municipais; VIII – órgãos do sistema penitenciário; IX – órgãos do sistema socioeducativo (...)[10]” (grifo nosso)

A aprovação da redação do Projeto de Lei n. 3734/2012, que possivelmente será aprovado também no Senado Federal, importa em verdadeiro retrocesso do ponto de vista do Direito da Criança e do Adolescente, pois contraria não apenas a Doutrina da Proteção Integral, mas os princípios e regras gerais sobre a política de atendimento socioeducativo, que se destinam a adolescentes autores de atos contrários à lei penal e encontram-se previstos no Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8.069/90) e Lei do SINASE (Lei 12.594/2012).

Tal projeto, caso se torne lei, vinculará o sistema de atendimento socioeducativo ao sistema prisional, ficando ambos submetidos aos mesmos princípios, diretrizes e objetivos da PNDPDS (Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social), e dessa forma, contaminando o sistema socioeducativo com a cultura prisional e policial, bem como desvirtuando-o dos princípios que devem reger a ação socioeducativa destinada aos adolescentes: fortalecer os seus vínculos familiares e comunitários por meio do caráter pedagógico.

O que parece, na realidade, é que busca o Poder Legislativo criar norma que iguale ou aproxime o tratamento que é dado no sistema prisional aos adolescentes, ou seja, pretende diminuir a maioridade penal por via transversa, já que até o momento não obteve êxito na aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 33/2012[11], dentre tantas outras em trâmite (PECs nºs 74, de 2011; 33, de 2012; 21, de 2013 e 115, de 2015), que estabelece a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos.

Caso o Projeto de Lei n. 3734/2012 seja aprovado e torne-se lei, o prejuízo social, psicológico e para a vida adulta dos adolescentes que serão submetidos aos mesmos princípios, diretrizese objetivos da PNDPDS, que muito se aproximará do sistema prisional, será imensurável. A probabilidade de no futuro cometerem novo ilícito será muito significativa.

A expectativa, nesse sentido, é que referido projeto de lei não seja aprovado pelo Senado Federal, ao menos no ponto em que iguala órgãos do sistema socioeducativo às polícias federal, rodoviária federal, civis, militares, guardas municipais e órgãos do sistema penitenciário.[12]


5. Súmula 605 do STJ e Apuração de Ato Infracional

Paralela à tramitação do Projeto de Lei n. 3734/2012, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou, no dia 14/03/2018, a Súmula n. 605, segundo a qual: “A superveniência da maioridade penal não interfere na apuração de ato infracional nem na aplicabilidade de medida socioeducativa em curso, inclusive na liberdade assistida, enquanto não atingida a idade de 21 anos.”

Embora pareça positivo que o Superior Tribunal de Justiça tenha sumulado a questão relativa à possibilidade de o adolescente continuar a submeter-se à medida socioeducativa mesmo após atingir a maioridade penal, salta aos olhos a necessidade de a Corte Superior necessitar colocar uma pá de cal sobre assunto, pois demonstra que efetivamente, dos mais longínquos municípios às grandes metrópoles, há divergência e até mesmo desprezo quanto à aplicabilidade dos princípios basilares da proteção integral e melhor interesse do Direito da Criança e do Adolescente.

Não bastasse a forte presença da Doutrina da Proteção Integral, fundamentada na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, o próprio Estatuto admite, em seu artigo 121, § 5º, a possibilidade de extensão da medida socioeducativa até os 21 anos de idade. Não haveria, portanto, que suscitar qualquer dúvida a respeito do assunto, sendo inclusive desnecessária a criação da Súmula 605.

Mais uma vez, portanto, o que se observa é a tentativa de órgãos públicos, como o Ministério Público e Poder Judiciário, exigirem e permitirem que o adolescente passe a cumprir pena no sistema prisional tão logo atinja a maioridade penal, sem levar “em consideração a continuidade da medida socioeducativa, que tem o fim de educar e ressocializar o menor[13]”, segundo a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Do contrário, ter-se-ia uma verdadeira tragédia, pois aquele adolescente, já submetido à medida socioeducativa, seria deslocado para um estabelecimento penitenciário, onde teria contato com adultos que cumprem as mais variadas penas, dificultando sobremaneira a sua ressocialização. Formar-se-ia, sem sombra de dúvida, um criminoso para retornar à sociedade.

Nesse sentido, se “o Estatuto compreende que a melhor forma de intervir nesse adolescente em conflito com a lei, ao desaprovar a conduta infracional (v. Art. 1º, III da Lei do Sinase) é incidir positivamente na sua formação, servindo-se, para tanto, do processo pedagógico, como um mecanismo efetivo, que possibilite o convívio cidadão desse adolescente autor de ato infracional em sua comunidade (...)[14]”, educando-o para a vida social, seria totalmente descabido e prejudicial retirá-lo desse sistema porque completou 18 anos e introduzi-lo no sistema penal.


6  O Direito da Criança e do Adolescente esquecido

A partir da reflexão acima, constata-se que em variadas situações, o Direito da Criança e do Adolescente é simplesmente esquecido ou até mesmo ignorado. Legisladores criam leis, juízes decidem e promotores de justiça requerem a sujeição de adolescentes ao cumprimento de penas após completarem 18 anos, em total desacordo com os preceitos e princípios presentes na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

A supremacia do Direito Penal e do Sistema de Segurança Pública é flagrante, pois utilizados forçadamente contra pessoas ainda em fase de desenvolvimento, que sequer atingiram a maioridade penal, mas que por sua condição especial, de criança e adolescente abandonado ou violentado, deve ser penalizado duas vezes: pela violência que já sofreu em casa – se tiver moradia – e que o levou a cometer o ato infracional; e a possível penalização que sofrerá no sistema prisional, seja pela política de segurança “geral” que se pretende criar por meio do PL 3734/2012, seja pela divergência que antecedeu a Súmula 605 do STJ.

Sendo assim, é evidente que o Direito da Criança e do Adolescente pode ser considerado um direito esquecido, pois em situações que envolvem atos infracionais, a proteção integral, melhor interesse e todo o arcabouço de proteção a essas pessoas hipervulneráveis são completamente abandonados.


7  Conclusão

As finalidades da medida socioeducativa e da pena são completamente distintas. Enquanto a primeira procura recolocar o adolescente em seu ambiente social e tem caráter eminentemente pedagógico; a segunda tem o sentido de prevenção contra ocorrência de crimes e de retribuição caso eles efetivamente ocorram, praticada contra maiores de 18 anos.

No último mês, contudo, o que se observa no país, por nosso Legislativo e Judiciário, são condutas que igualam estas duas formas tão diversas de resposta do Estado pela prática de ato ilícito, a partir da urgência no trâmite do Projeto de Lei 3437/2012 e da criação da Súmula 605 no STJ.

Ambos intentam forçar adolescentes, portanto menores de 18 anos, a submeterem-se ao regime prisional, o qual, é sabido, se trata de uma “fábrica do crime”.

O que se observa, pois, é que a Doutrina da Proteção Integral e Estatuto da Criança e do Adolescente fazem parte de um direito que na maior parte das vezes é esquecido, especialmente quando o legislador, membro do Ministério Público e magistrado deparam-se com o ato infracional praticado por adolescente. Um venda em seus olhos parece turvar a realidade de que existe um regime jurídico próprio a que estas pessoas, ainda em desenvolvimento, estão submetidas.

A expectativa, portanto, é que os agentes públicos operem numa perspectiva social e humanitária, direcionada a esses adolescentes praticantes de ato infracional; que seja foco de suas preocupações o ambiente de pobreza e violência em que vivem essas pessoas, e que por meio de medidas socioeducativas – e não penas – possam transformar a realidade de cada um, tornando-se seres humanos capazes de viver uma vida digna e responsável, algo que lhes foi negado no âmbito familiar.

Sobre a autora
Patricia Rodrigues de Menezes Castagna

Especialista em Direito Tributário e Graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera (UNIDERP/LFG). Advogada inscrita na OAB/SC n. 14.752 e professora da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), atuante nas áreas de Teoria do Direito, Direito do Consumidor e Direito Processual Civil. Orientadora do Núcleo de Prática Jurídica na mesma instituição.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

A elaboração do Projeto de Lei 3437/2012 e criação da Súmula 605 no STJ contrariam a Doutrina da Proteção Integral e o Estatuto da Criança e do Adolescente ao buscarem forçar adolescentes, menores de 18 anos, a submeterem-se ao regime prisional.

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