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Estado do Direito no Brasil:

o Direito que interessa ao Brasil hoje

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Agenda 24/04/2005 às 00:00

ESTADO DE JUSTIÇA

Se nossa República nunca foi para valer, menos ainda tem-se mostrado ativo e vivente o chamado Estado Democrático de Direito Social, pois que a estrutura das duas instituições político-jurídicas não pode conviver só com as promessas de realização futura. República e Democracia devem ser para valer, devem fazer parte do dia-a-dia das pessoas, como eleitores, políticos, juristas, professores, magistrados, trabalhadores, servidores públicos, camponeses, profissionais liberais ou alunos. Só desse modo podemos entender como é que o Estado Democrático de Direito Social poderia ser um caminho célere e honesto, em busca da tal justiça social.

Desde os primórdios da formulação do conceito, com Elías Díaz (nos anos sessenta, na Espanha), o Estado Democrático de Direito foi afixado ao socialismo e à justiça social. Trata-se de uma ligação tão forte que o Estado Democrático de Direito também será chamado de Estado de Justiça. Vemos esta relação com o próprio Elías Díaz [12]:

Socialismo e democracia coincidem em nosso tempo e institucionalizam-se conjuntamente com a proposta do chamado Estado democrático de Direito: o socialismo como resultado da superação do neocapitalismo próprio do Estado social de Direito [13] (...) Isto significa que o velho Estado de Direito, sem deixar de seguir sendo-o, terá que se constituir em Estado de justiça (Díaz, 1998, p. 133).

Mas, o que será Estado de Justiça?

Estado de Justiça tem, sem dúvida, um sentido muito mais abstrato. Ambos os termos só podem considerar-se intercambiáveis se os entendemos no sentido de que o Estado democrático de Direito é hoje o Estado de Justiça, quer dizer, o Estado que aparece atualmente como legítimo, como justo, em função precisamente de alguns determinados valores históricos que são a democracia, o socialismo, a liberdade e a paz (Díaz, 1998, p. 134).

E qual Estado de Direito seria razoável para realizarmos a Justiça no Brasil?

Falta-nos valorizar o Direito produzido nas ruas, nas casas, nos espaços públicos, comuns e populares, nas associações de bairro, nas escolas, nos locais de trabalho, nas comunidades, nas fábricas e empresas, no campo. Um Direito produzido nas ruas para substituir aquele que diziam, fora um Direito achado na rua [14]: o problema é que, para ser achado, o Direito deve ter sido jogado ou foi perdido por alguém.

Também seria uma forma de compreender o Direito que fosse justa aos idosos e deficientes, aos negros e mulheres, aos pobres e sem-direitos, uma maneira de agir em que o Direito trouxesse esperança aos mais jovens – esse é o Direito como Utopia [15]. Um modelo de Estado e de República em que houvesse maior comunicação, interação entre os mecanismos concretos de ação pública, entre o Direito e as necessidades sociais. Trata-se de um Direito que não sirva apenas aos ricos.

Nossa história, se observada pelo olhar dos de baixo, é marcada pela luta do protocidadão (aquele que não é, mas que quer ser cidadão) com ou contra o pseudocidadão (aquele que não é, mas que se considera como tal). Para o pseudocidadão a prática do Direito, normalmente mesclada com chicanas de todo tipo, acaba por negar a teoria social, e ainda que nos lembremos de que essa teoria está longe do que ocorre na vida concreta dessas pessoas (das nossas vidas).

Como resultado, não conseguimos alterar a prática histórica do favoritismo e nem somos capazes de produzir um discurso jurídico crítico e transformador. Então, da prática à teoria ou da teoria à prática, por duas razões de motivos, o Direito continua distante da realidade. Não é à toa que se diz solenemente no botequim e na academia: "aos amigos tudo, aos inimigos a lei". De qualquer modo, pode-se provar que o Direito faça bem ou faça mal às pessoas, à sociedade, aos mais pobres e sem-poder?

Todos os indícios históricos de nossa formação indicam que o Estado e o Direito servem aos que controlam os próprios meios jurídicos e políticos. Talvez em função de haver essa clareza quanto ao processo de dominação histórica baseada nos instrumentos e nos recursos políticos, alguns juristas acabem mostrando-se mais sensíveis e realistas – pois ajudam a retirar o véu que confunde nossa consciência. Esse parece ser o caso do Desembargador Amilton Bueno de Carvalho, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

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Em palestra proferida em Marília, interior do Estado de São Paulo, o desembargador disse que: "...a justiça ainda é muito branda com os ricos do país e o maior problema do Poder Judiciário hoje é trabalhar sob a lógica do Estado e não sob a lógica da sociedade". De certa forma, essa colocação do Desembargador redireciona o tema do próprio artigo, como se fosse mais sensato indagar: "a quem serve o Direito no Brasil, hoje?". Certamente, uma pergunta mais difícil de argumentar, demonstrar.

Diante de tudo isso, no entanto, temos hoje maior consciência das diferenças entre Direito e Ideologia? Temos hoje maior clareza e consciência do que são preconceitos, privilégios ou direitos? Na verdade, nossa história nasceu marcada por preconceitos de todo tipo e não se conhecia o Direito até pouco tempo atrás.

A ocorrência do pré-conceito [16] lembra o julgamento que se deu antes da verificação ou checagem real, antes da formulação do conceito como dado objetivo do real. Também nos induz a pensar que, no lugar do Direito, a história política brasileira e a cultura popular indicam que vivemos sob a troca de favores, a indulgência do compadrio e a defesa dos privilégios (o que deriva da Lei Privada = privi legem). Por isso, a crítica social também fala em direitos injustos.

Faz tempo que brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres são iguais perante a lei, formalmente, tendo-os a própria lei declarado assim. Agora, desde quando brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres são iguais perante a lei, mas no real cumprimento dessa lei? Ou será tudo mentira e já não vivemos mais num Estado autoritário, populista e cheio de apaniguados [17]?

Por fim, desde quando esses sujeitos de não-direito, ou simplesmente pobres e miseráveis, são sujeitos econômicos, sociais e políticos livres, conscientes, autônomos e capazes de expressar seus pontos de vista tal qual os mais fortes e poderosos? Essa pergunta sim é real (não apenas retórica, dogmática, instrumental aos cursos de Direito), pois é capaz de suscitar e remexer a história política e a vida cotidiana dos que sempre estiveram distantes de tudo, dos sem-nenhum-direito, dos sem-força, dos sem-nada.

No próximo item, no entanto, veremos que esse Estado de não-Direito (Filho, 2002) no Brasil não tem nada de novo. Veremos ainda que os principais pré-conceitos têm profundas raízes históricas.


O PRECONCEITO ESTÁ NA GÊNESE

Ainda no século XIX, o visitante que aportava no Brasil vinha carregado de preconceitos e juízos morais que mal imitavam ou escondiam as lições bacharelescas recebidas nas faculdades européias. Um desses intérpretes do Brasil é Carl. F. P. Von Martius, um naturalista que, em 1817, veio para cá contratado pela família real. Nesse afã de pesquisador, dizia-nos o jovem botânico sobre sua intenção: "Antes, porém, de entrar no assunto especial desta investigação, devemos lançar um golpe de vista sobre o estado social dos selvagens que habitam o Brasil, porque, um direito e condições jurídicas, pressupõem uma história e um estado especial que dela deriva" (1982, p. 12).

O título do livro de Von Martius é O Estado do Direito entre os autóctones do Brasil, pois sua intenção era traçar as linhas gerais do Estado de Direito Indígena. Agora, vejamos como Von Martius se referia à estrutura de poder e de representação jurídica, entre os índios no século XIX e como se fosse plausível, possível um Estado de Direito nos velhos moldes burgueses/ocidentais:

O pajé (...) Onde ele funciona em qualidade de juiz, interdiz certos objetos com exorcismos diversos, de modo que o ex-proprietário se convence mais do seu direito sobre eles, ou perde-o, geralmente a favor do pajé ou de um seu protetor. Incutindo a crença de feitiçaria, limita, amplia, assegura ele, muitas vezes a uma comunidade inteira a posse de propriedades, direitos ou faculdades (...) Assim atua ele como embusteiro enganando, diretamente por si ou em conivência com o chefe, alegando o mandado de um mundo de espíritos superiores, incompreensíveis, constituindo-se legislador, juiz e executor (1982, p. 34).

Nosso intérprete, em sua redoma de ignorância, esperava encontrar entre os índios a mesma disposição jurídica e política européia, baseando-se no Estado de Direito Formal e na divisão dos poderes como queria Montesquieu. Não percebera que a cultura indígena é uma, integrada e que não há a mesma figura de líder ou formato de poder que se encontra no Estado Moderno Ocidental. Sabemos que, nas chamadas culturas primitivas ou "primeiras", não há subsunção, formalizando a ação de uma norma abstrata, em direção ao mundo real e nem há separação de poderes em uma trinca de instituições. Para analisar pela Antropologia, realmente, temos de tomar Clastres:

O que se deve imaginar é um chefe sem poder, uma instituição, a chefia, estranha à sua essência, a autoridade (...) Essencialmente encarregado de resolver os conflitos que podem surgir entre indivíduos, famílias, linhagens etc., ele só dispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, do prestígio que lhe reconhece a sociedade. Mas evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra (...) Empreendimento cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta, pois a palavra do chefe não tem força de lei (1990, 144) [18].

Como vimos, este sim é um Estado de Direito Legítimo, baseado no convívio, na harmonia do grupo, na legitimidade expressa e reiterada a todo instante – algo bem distinto da formalidade que recobre a tri-partição dos poderes. Uma relação de legitimidade muito estranha, portanto, àquela interposta pelo Estado Moderno Ocidental.

Agora, guardadas as diferenças, não é o mesmo tipo de preconceito que ainda hoje mantemos em relação aos mais pobres, aos negros e aos marginalizados?

Não estaremos cometendo o mesmo equívoco de Von Martius ao assegurarmos que não existe Estado e nem Direito nas favelas do Rio de Janeiro?

Não será apenas demonstração de nossa ignorância de que nessas regiões desenvolve-se uma outra noção do que é Direito e Justiça?

Por exemplo, o que é o direito de lage, cultivado no interior da cultura popular das comunidades faveladas, e revelado pela prática do Balcão de Direitos?

O direito de lage, no Rio de Janeiro, é um bom exemplo de que a teoria na prática é outra, porque a teoria jurídica está muito distante das práticas sociais desses agrupamentos humanos. Assim, há dois problemas a resolver: ajustar a teoria jurídica ao real e interromper drasticamente a prática das chicanas. Por isso, também é preciso ir da lei ao social


2ª PARTE

DA LEI À PRÁTICA SOCIAL

Pelo menos desde 1988 temos status de cidadania democrática, mas ainda nos faltam as conseqüências, as derivações práticas das ações políticas populares que lhes seriam logicamente decorrentes. Como se diz, o Direito não se basta em boas intenções, é necessário que o mundo concreto seja transformado pela práxis política e jurídica. Desse status jurídico ainda não decorreu um papel ou função social condizente.

Nossa intensa personalidade jurídica tem revelado direitos de todo gênero, grau, espécie: somos conhecidos como alguns dos melhores produtores de direitos. Porém, há uma tensão crescente com a não-personalização política desses direitos (não se transformam em políticas públicas existentes), pois o povo continua sendo representado (na melhor das hipóteses) ou, simplesmente, é tutelado e assistido pelo Estado, dominado pelo poder econômico. Em razão de todos os veículos, meios ou canais de difusão de seu sentimento de inferioridade e sujeição, o povo não ousa requerer o Direito.

É fácil perceber como o povo raramente possui alguma capacidade jurídica, como liberdade positiva ou autônoma, para guiar-se por si mesmo, para adquirir para si mesmo, para consumir, para dispor como bem entender, sem que seja interpelado ou molestado.

Ao povo sempre coube o ônus da alienação do trabalho (a exemplo de todas as formas de escravidão), porque nunca foi realmente inserido. Ao escravo, por exemplo, nunca foi permitida a altivez e a atuação necessária e decorrente do trabalho como mola propulsora do processo evolutivo da espécie humana – o trabalho como base da remodelação/transformação do sujeito e da sociedade. Ao escravo sempre coube o trabalho degradante e desumano. Hoje, porém, nem bem alienamos nossa força de trabalho – afinal, quantos milhões não têm emprego decente, não sabem o que é vender força de trabalho? Mais ou menos um 1/3 da população brasileira está excluída da economia, da política, da escola, distante do alcance do Direito e esquecida pelo Estado.

Mas, quem é o povo tratado aqui? Muito além do conjunto dos eleitores, povo insere tanto quem lê, quanto quem escreve esse texto. E, é óbvio, também diz respeito àqueles que não sabem ler. Entender essa lógica que se espera para a cidadania não exigirá grandes teorias.

Nosso problema, enfim, não é teórico, porque temos uma definição das mais belas de Estado, Democracia, Cidadania e do próprio Direito. Nossa aposta no Estado Democrático de Direito é fantástica, na acepção de que estamos sempre esperando por um milagre: Deus é brasileiro e não poderia ter-nos dado uma Constituição ruim. Vejamos um caso exemplar: como utopia necessária, o preâmbulo da Constituição indica um caminho do bem, e o artigo 1º não é de menor beleza.

No artigo 3º, então, o sonho é tornado lei (é preciso lembrar que a Constituição também é lei). Por fim, todo o artigo 5º será uma das mais belas sínteses jurídicas humanitárias elaboradas após a 2ª Guerra Mundial. Em poucos textos de lei (e mesmo em poucos manifestos de justiça) se verá tamanha profundidade, clareza e utopia do que o reunido nos 77 incisos do artigo 5º da CF/88.

Para os juristas de visão social ampla, o Estado Democrático de Direito sinaliza uma somatória orgânica entre Estado de Direito (com os direitos e as garantias individuais), democracia [19], República e Federação [20], além da conquista e defesa dos direitos sociais: herdeiros que somos do Estado Social, de acordo com os artigos 6º e 7º da CF/88. Por fim, nesse modelo de Estado, a somatória dos elementos políticos e jurídicos traria como legado o caminho ou o curso do socialismo (Díaz, 1998, pp. 133-134).

Nesse caso em busca de um Estado Democrático de Direito real, concreto, é que Dalmo Dallari (1999) propôs uma série de elaborações teóricas e de instrumentos práticos, denominando sua construção de Decálogo para o Estado Democrático de Direito.

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado do Direito no Brasil:: o Direito que interessa ao Brasil hoje. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 656, 24 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6619. Acesso em: 19 nov. 2024.

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