DECÁLOGO PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A seguir, a expressão textual de Dallari, no afã de não se perder nas promessas não-cumpridas ou na metafísica do Estado Democrático de Direito que teima em não acontecer. Por isso, o decálogo será uma receita do que deve ser feito, um aprofundamento da Teoria da Autolimitação do poder político, a partir da própria estrutura do Estado brasileiro:
1º - os agentes dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário pautarão seus atos pela estreita observância dos princípios e das normas da Constituição da República (...) Nenhum Tribunal Brasileiro aceitará a alegação maliciosa de que há inconstitucionalidades convenientes.
2º - nenhuma emenda constitucional será posta em prática, antes de receber aprovação do povo, por meio de referendum popular [21].
3 º - o Presidente da República não editará novas medidas provisórias, a menos que ocorra situação de calamidade pública ou de grave e evidente risco para a normalidade constitucional e, ainda assim, somente se o Congresso Nacional não estiver reunido.
4º - o Congresso Nacional (...) decidirá dentro de 30 dias, a contar da publicação sobre a validade de Medida Provisória, considerando fraudulenta a reedição de Medida Provisória sobre o mesmo assunto...
5º - o Presidente da República não fará indicação de qualquer nome para o Supremo Tribunal Federal ou para o Tribunal Superior sem consulta prévia ao Tribunal diretamente interessado, à Ordem dos Advogados do Brasil e ao Colégio de Procuradores da República.
6º - a Reforma do Poder Judiciário será reiniciada, designando-se comissão especial, integrada particularmente por representantes do Ministério da Justiça, da Magistratura, da Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público, que deverão elaborar um projeto incluindo o controle democrático dos atos administrativos do Judiciário (...) excluídas a adoção de súmula vinculante e de avocatória.
7º - o Procurador-Geral da Fazenda Nacional e o advogado Geral da União cumprirão os seus deveres legais de publicar súmulas vinculantes para os seus respectivos subordinados, com a determinação de que não recorram aos Tribunais Superiores e ao Supremo Tribunal Federal, quando se tratar de matéria pacífica na jurisprudência.
8º - o Procurador-Geral da República cumprirá seu dever constitucional de promover a responsabilidade de qualquer membro do Executivo, Legislativo ou Judiciário que, por ação ou omissão, ofenda a ordem jurídica ou o regime democrático [22]...
9º - o Poder Executivo Federal adotará de modo expresso, claro e objetivo, uma política social protegendo e promovendo os direitos humanos, prevendo os recursos financeiros necessários...
10º - a política econômica do governo brasileiro, que tem sido a causa da eliminação de direitos, será estabelecida através de discussão pública e ampla, com a participação do Executivo e do Congresso Nacional, devendo prevalecer, sempre de modo inequívoco, o interesse presente e concreto de todo o povo brasileiro (Dallari, 1999).
O que nos estimula a pensar, novamente, no Estado de Justiça – até mesmo como utopia possível.
ALGUMAS UTOPIAS POSSÍVEIS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Tendo-se em conta a necessidade da profunda transformação do Estado e do Direito brasileiro, é que se propõe a retomada da teoria proposta pelo Estado Democrático de Direito, em consonância com a prática requerida pelo Estado de Justiça, pela democracia e pelo socialismo das oportunidades.
Assim, vale resgatar alguns itens apontados ou destacados pelos juristas ou doutrinadores, quando tratam do Estado Democrático de Direito. Alguns costumam ser bastante técnicos, ao passo que outros parecem invocar um sentido de unidade, como a vontade real de unificar, pacificando, os objetivos ou os Princípios Gerais do Direito com os ideais da justiça formal e real.
Por isso, Dallari ainda falará das utopias que sempre impulsionaram os advogados no Brasil, a exemplo da sua tão destacada atuação na Abolição e na Proclamação da República. Também por isso pode-se dizer que o próprio Estado Democrático de Direito será a utopia perseguida no Brasil, ao longo do século XXI.
Num breve resumo pessoal, mas agora abstraindo toda a dogmática jurídica e subtraindo a técnica do domínio do poder, teríamos uma outra maneira para demonstrar essa mesma linha utópica que já apontamos. Uma utopia que se realizasse nas consciências pessoais, nas mudanças sociais e nas intenções públicas [23] revelaria que:
1.A Justiça Social é a utopia que o povo sonha acordado. Portanto, quando o Estado atua e ainda que isso seja cada vez mais raro.
2.A Justiça Comum é uma utopia que se realiza com bons e honestos advogados – zelando e fazendo cumprir o princípio do contraditório.
3.O Direito [24] é uma utopia que se constrói quando se tem clara a "intenção da justiça".
4.A Cidadania Radical é uma utopia que se constrói quando não se percebe nenhuma diferença significativa entre Direito e Justiça, e quando o povo é seu juiz ativo.
5.A Democracia Real, profunda e radical, popular e participativa, é a capacidade de pôr em prática e realizar a utopia sonhada por todo o povo.
6.A Consciência Popular é a utopia que se criou em conjunto, após desmistificarem-se as ideologias do governo de então.
7.A Liberdade é uma utopia que se percebe pronta quando não mais se tem de lutar pelo próprio direito à liberdade.
8.A Igualdade é a utopia que se realiza com a máxima liberdade, quando se reúne a consciência de que não há igualdade suficiente se alguns são mais iguais do que outros.
9.O Estado Democrático de Direito é a nossa maior utopia jurídica, não para ser usado como ópio e estupidez, mas sim para acreditarmos que o Direito e o espaço público podem servir à liberdade, à justiça social, à cidadania popular, à utopia igualitária.
10.A Utopia é tudo o que ainda não há, mas que nós desejamos muito que seja.
Falta-nos efetividade para tudo isso e enquanto não houver uma mudança radical da teoria e da prática, das declarações de direitos e de uma prática social e política transformadora, não haverá expectativa real para milhões de pessoas. No Brasil, temos a teoria e os instrumentos do Estado Democrático de Direito, mas não temos a prática e a experiência do Estado de Justiça. Portanto, mais uma vez, parece-nos que o nosso maior problema é de ordem prática e não teórica.
Enquanto não operarmos essas alterações, não haverá Direito e sim propaganda enganosa de direitos. Enquanto não mudarmos o Direito, da dogmática à função social transformadora do próprio Poder Judiciário, o Direito continuará servindo aos de sempre, aos que sempre foram beneficiários e beneficiados pelo Estado.
Agora, como retirar essa alcunha de que o Direito serve aos mais fortes, aos ricos, conservadores e abastados? Só mudando sua prática, seu ensino, sua visão acrítica, abandonando esse tal distanciamento social que é muito maléfico à sociedade como um todo. Portanto, também precisamos mexer no ensino jurídico.
Trata-se de pensar um ensino jurídico que nos leve à passagem do operador do direito - o sujeito que vê no Direito apenas um instrumento para suas causas - em um agente de transformação do Direito e da sociedade. Esta que seria uma visão capaz de articular os instrumentos do Direito em prol da transformação social, também equivaleria a tomar o Direito como objetivo de Justiça e não só como meio de realização pessoal e profissional. Isto é, uma concepção mais ética e menos pragmática, utilitária do Direito e da Política que o recobre.
Portanto, um ensino jurídico lastreado em ver, discutir e reformular a teoria e a prática do Direito, pois não nos interessam mais códigos, guias de direitos ou declarações repletas de simbolismos. Mais do nunca precisamos pôr em prática o que viemos elaborando, pelo menos, durante os últimos 20 anos (das Diretas Já! para cá).
Agora, para tanto, é preciso reconhecer que antes do Direito há a história e a vida social. E para que o Direito se relacione de modo dinâmico com a vida real é preciso pensar alguns mecanismos também dinâmicos do próprio Direito. Esse será o esforço dessa pequena 3ª parte restante: pensar um direito público e coletivo.
3ª PARTE
ALGUNS MEIOS PARA O CAMINHO PÚBLICO
Alguns meios ou caminhos que nos levam a pensar formas de efetivar o interesse público passam pelo conjunto dos direitos público-subjetivos, pelos chamados direitos metaindividuais e até mesmo pelo direito de petição (art. 5º, XXXIV, a). Isso também indica o longo processo de humanização do direito, advindo desde o fim da Segunda Guerra Mundial e o fortalecimento dos direitos humanos e do direito humanitário.
No curso da história dos direitos público-subjetivos, por sua vez, teríamos de retomar a contribuição de Rousseau e a Revolução Francesa, quando se instituiu a educação pública obrigatória – como forma de melhor divulgar os ideais revolucionários republicanos. Desse período também decorre a perspectiva de que o Estado deveria conhecer alguns limites quanto à projeção do poder político – o que se convencionou chamar de Teoria da Autolimitação do Estado, com destaque para a abordagem de Georg Jellinek (2000).
Séculos depois, como parte desse desenvolvimento do Estado de Direito, o Ocidente conheceria o Estado Social e a democracia de massas. O aumento da produção e do consumo (desenfreados) traria novas necessidades, novos problemas e novos direitos: da degradação do meio ambiente à defesa do consumidor na sociedade altamente complexa [25] e massificada. A esse conjunto se chamou de interesses e direitos metaindividuais. Esse conjunto de fatores, somados aos que já destacamos, forma o núcleo do que chamamos de Estado Democrático de Direito Social.
OS INTERESSES METAINDIVIDUAIS [26]
Os interesses ou direitos metaindividuais são aqueles que ultrapassam a esfera jurídica do indivíduo e passam a ser tutelados de forma coletiva, embora, em certos casos, a tutela também possa ser feita individualmente – como se vê com os interesses individuais homogêneos. Assim, vejamos, em síntese, o que são interesses ou direitos metaindividuais:
- DIREITOS DIFUSOS – art. 81, parágrafo único, I, do Código de Defesa do Consumidor. São os direitos ‘’[...] transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato’’. Exemplo: direito ao meio ambiente saudável.
Características:
- Indeterminação dos sujeitos – consiste na impossibilidade da delimitação do número exato de pessoas afetadas, potencial ou concretamente, por certo fato.
- Indivisibilidade do objeto – as pessoas indetermináveis possuem certo direito que lhes é comum. No entanto, não se pode identificar a parcela de Direito que cabe a cada uma delas.
- Vínculo fático ligando entre si pessoas indetermináveis: o que faz com que as pessoas indeterminadas possuam interesse em comum é um fato, uma circunstância, como a de morarem em uma mesma cidade.
- DIREITOS COLETIVOS – art. 81, parágrafo único, II, do Código de Defesa do Consumidor.
São os direitos ‘’[...] transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base’’.
Características:
- Sujeitos indeterminados, mas determináveis.
- Indivisibilidade do objeto.
- Vinculo jurídico.
Exemplos: empregados de determinada empresa pleiteiam o direito a um ambiente de trabalho saudável; determinado grupo de pessoas que pleiteiam o não-aumento de mensalidades escolares; ou determinado grupo pleiteia o não-aumento das mensalidades dos planos de saúde.
- INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS – art. 81, parágrafo único, III, do Código de Defesa do Consumidor.
São os direitos ‘’[...] decorrentes de origem comum’’.
Características:
- Sujeitos determinados ou determináveis.
- Divisibilidade do objeto – implica em se poder saber perfeitamente qual a lesão individual sofrida pela pessoa, de forma que a reparação do dano possa ser feita caso a caso.
- Origem comum das lesões sofridas.
- Possibilidade de tutela coletiva.
Exemplo: determinado fabricante de automóvel coloca no mercado dez mil exemplares de um modelo com o mesmo defeito (por exemplo, no botão do rádio), decorrente de falha no processo produtivo.
Teríamos, então, dez mil lesões pessoais, do mesmo tipo e origem que haveriam de ser tuteladas em igual número de ações individuais. Ou permite o legislador que a tutela possa ser feita de forma coletiva viabilizando o acesso à justiça e desafogando, assim, o Poder Judiciário [27].
Essa migração das gerações iniciais do Direito, especialmente dos direitos individuais, aos direitos sociais, coletivos é o pulo do gato que apenas ensaiamos, e de modo muito tímido, pois ainda há um excessivo apego ao patrimônio, à propriedade, aos direitos de natureza individual e privada. Nossa atenção e intenção acerca dos direitos públicos, sociais, coletivos, da coisa pública, são muito incipientes, insatisfatórias, só iniciais e precárias.
O direito de moradia, por exemplo, é comumente regulado pelo Direito Civil, como parte do direito patrimonial. Mas não é tratado pelo jurista como direito público, como direito que se torna eficaz a partir de políticas públicas eficientes [28]. O Direito Ambiental, por outro lado, é tido pela sociedade como responsabilidade única e exclusiva do Estado – como se não fosse um Direito que só encontrará plena vigência com um envolvimento massivo da população e da Sociedade Civil organizada.
Neste último aspecto, é claro que a discussão nos remete para a leitura histórica das gerações de direitos humanos, como vemos em Bobbio (1992), Bonavides (2002), Wolkmer (2003), Comparato (2001) entre tantos outros.
Enfim, não há conclusão porque este é um tema que não conhece fim, a menos que nossa realidade se mostrasse pautada em outras bases - algo como o Direito que nos servisse como utopia, orientação e caminho comum. Aliás, isso será possível?