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Observações sobre a busca da verdade no processo judicial

Agenda 25/04/2005 às 00:00

"A verdade é, ao mesmo tempo, frágil e poderosa. Frágil porque os poderes estabelecidos podem destruí-la, assim como mudanças teóricas podem substituí-la por outra. Poderosa, porque a exigência do verdadeiro é o que dá sentido à existência humana" (CHAUI, 1995, p. 108).


Introdução

O Estado, há muito, tomou para si o poder de composição da lide, o que Foucault (2001, p. 79) denominou "estatização da justiça penal", muito embora esse poder não seja restrito à justiça penal e abranja toda a administração da justiça, salvo as raras exceções legais (a legítima defesa, o estado de necessidade, o exercício regular de direito, que são os casos de autotutela permitidos pelo direito, e a arbitragem, que é reconhecida como meio de composição da lide em determinadas matérias sem a jurisdição estatal).

O Estado é, por isso, o detentor da persecutio criminis, que é o poder de apurar as infrações penais (os fatos tipificados como crime e as contravenções penais), para determinar-lhes a autoria e punir os autores. Detentor também do ius puniendi, que é o direito de punir, e da jurisdição, que é o poder de dizer o direito. Jurisdição vem do latim, ius, direito, e dicere, dizer (NORONHA, 1989, p. 44).

E todo esse poder (de persecução, de jurisdição e de punição) é exercido por meio do processo judicial, que é o instrumento de composição da lide. O processo judicial é o meio pelo qual o Estado busca a verdade e, por fim, compõe a lide, dando-lhe a solução conforme o direito.

É interessante que se atente para isto: a composição da lide opera-se conforme o direito e não conforme a lei, pois que o conceito de direito é bem mais abrangente do que o de lei. A lei é apenas uma das fontes do direito. Como ensina a boa doutrina, "o Direito não se funda sobre normas, mas sobre os princípios que as condicionam e as tornam significantes" (REALE, 1994, p. 62), razão por que o "jurista tem compromisso com o Direito, não necessariamente com as leis" (MONTEIRO e SAVEDRA, 2001, p. 145).

É por isso que a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Decreto-lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942) estabelece, no seu art. 4.º, que "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito". E, semelhantemente, o Código de Processo Civil, no art. 126, estatui que "o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito".


Processo

No tocante ao processo, é necessário que, de início, sejam feitas as definições doutrinárias de processo, de lide e de pretensão, típicas do Direito Processual.

Processo é o instrumento de composição da lide. Compor a lide é dar-lhe a solução, mediante a aplicação do direito. Lide é o conflito de interesses que se qualifica pela resistência de alguém à pretensão de outrem. Pretensão é a exigência da subordinação de um interesse de outrem ao interesse próprio (SANTOS, 1998, p. 9).

Processo é o caminho percorrido pelo Estado para compor a lide. É um método. Processo, aliás, significa "marcha avante", "caminhada", do latim procedere, que significa "seguir adiante" (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, 1999, p. 275). E método, de m e t a – maior, que transcende – e o d o V – caminho, passagem –, etimologicamente, significa "caminho superior" (MONTEIRO e SAVEDRA, 2001, p. 37). Daí que Noronha (1989, p. 4), definindo o processo penal, di-lo: "(...) o conjunto de atos legalmente ordenados para apuração do fato, da autoria e a exata aplicação da lei. O fim é este; a descoberta da verdade, o meio."

E Manzini diz que

el conjunto de los actos concretos previstos y regulados en abstracto por derecho procesal, cumpridos [sic] por sujetos públicos o privados, competentes o autorizados, a los fines del ejercicio de la jurisdicción penal, en orden a la pretensión punitiva hecha valer mediante la acción o en orden a otra cuestión legítimamente presentada al juez penal constituye la actividad judicial progresiva que es el proceso penal (apud NORONHA, 1989, p. 4).

Vê-se, do exposto, que o processo judicial tem importante função social, qual seja, a pacificação social pela composição da lide, fundada na busca prévia e determinação da verdade, porquanto a função punitiva do Estado só deve prevalecer, só pode ser aplicada contra quem realmente praticou a infração. Não se pode apenar de forma temerária o acusado, ou seja, antes de ser apurada sua culpabilidade, razão por que "o Processo Penal deve tender à averiguação e descobrimento da verdade real, da verdade material, como fundamento da sentença" (TOURINHO FILHO, 1999, p. 40).

Logo, o que distingue o processo judicial hodierno das antigas formas de procedimento judiciário são a presença do Estado-juiz, como elemento neutro, e a busca da verdade, que existem neste como irrecusável condição de sua validade e não existiam naquelas.

Mutatis mutandis, o processo judicial tal qual se conhece hoje – como relação jurídica de três pessoas (juiz, autor e réu) que tem por meio a busca da verdade e por fim apenar o culpado – muito embora tenha existido entre os gregos, em Atenas, no século V a.C. (FOUCAULT, 2001, p. 53-54), e entre os romanos, de 200 d.C. a 565, desapareceu e somente ressurgiu muitos séculos depois.

A busca da verdade não existia no processo do direito grego arcaico (FOUCAULT, 2001, p. 53), pois aí o prevalecia a força, ganhava o mais forte, tinha razão quem tinha poder. Nem no direito germânico, em que a lide, caracterizada por atos de vingança, era decidida também pelo direito da força, quando não pela transação econômica.

O sistema que regulamentava os conflitos e litígios nas sociedades germânicas daquela época é, portanto, inteiramente governado pela luta e pela transação; é uma prova de força que pode terminar por uma transação econômica. Trata-se de um procedimento que não permite a intervenção de um terceiro indivíduo que se coloque entre os dois como elemento neutro, procurando a verdade, tentando saber qual dos dois disse a verdade; uma pesquisa da verdade nunca intervém em um sistema desse tipo (FOUCAULT, 2001, p. 57-58).

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É de se ressaltar, todavia, que, mesmo hodiernamente, a busca da verdade no processo judicial, às vezes não é absoluta, é relativa. Não obstante, o império da verdade seja o meio de se atingir o fim do processo, que é composição da lide, o valor atribuído ao formalismo, não raro sem qualquer razão de ser, prejudica a própria verdade.

Assim é que, muito embora deva prevalecer a verdade real sobre a verdade formal, há casos e situações que não se justificam senão como aberrações contra a própria verdade. No Direito Penal, por exemplo, se o réu for absolvido por falta de provas da acusação, depois que essa absolvição se tornar coisa julgada, não será permitido jamais reabrir o caso para processá-lo e puni-lo pelo mesmo fato, seja qual for a prova da verdade que venha a surgir. Se, todavia, em vez da absolvição, tratar-se de condenação, será permitida a revisão criminal, mesmo depois do trânsito em julgado.

Outro exemplo é o da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos. São nulas e, por conseguinte, não se prestam para o processo judicial, ainda que se trate de verdade real, as provas que são colhidas por meios ilícitos. Se, por exemplo, a Polícia, mediante escuta telefônica sem autorização judicial, descobrir quem assaltou um banco, por mais clara e contundente que seja a prova assim obtida, será considerada ilícita por derivação (fruits of the poisonous tree, como diz a doutrina) e não será aceita. Isso é absurdo, porquanto nesse caso o lógico seria o Estado punir ambas as infrações: o assalto e a escuta ilegal.


Verdade

O assunto reclama, demais disso, um breve discorrer sobre a verdade em si, despida de qualquer adjetivo ou locução adjetiva que se lhe possa aplicar. A verdade no processo judicial, antes de ser verdade no processo judicial, é verdade. Isso pode até parecer óbvio demais, todavia não é, haja vista que todos, desde tenra idade, ouvem falar da verdade e, por isso mesmo, passam a fazê-lo também, só que, na maioria das vezes, movidos por um processo de psitacismo, que leva a não parar para refletir sobre o conceito de verdade em si.

Filósofos e pensadores falam de algo que chamam "vontade de verdade" (FOUCAULT, 2000, p. 14-20), "desejo do verdadeiro" ou "desejo de buscar a verdade" ou simplesmente "busca da verdade" (CHAUI, 1995, p. 90-94).

Com efeito, as pessoas falam muito da verdade e até a defendem, mas o fazem sem qualquer lucubração. Quase ninguém, antes disso, se preocupa com indagações como: a verdade existe?; se existe, é universal?; que é a verdade? e assim por diante.

Que é a verdade? Boa pergunta, da qual se têm ocupado, ao longo dos tempos, filósofos, cientistas e outros pensadores. A propósito, é bastante conhecido e significativo – notadamente do ponto de vista jurídico ou, para ser mais preciso, do ponto de vista processual penal – o diálogo entre Jesus Cristo e o governador romano Pôncio Pilatos, no qual aparece, in verbis, essa indagação deste para aquele:

Então, lhe disse Pilatos: Logo, tu és rei? Respondeu-lhe Jesus: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.

Perguntou-lhe Pilatos: Que é a verdade?

Tendo dito isto, voltou aos judeus e lhes disse: Eu não acho nele crime algum. (João 18:37-38.)

Pode-se dizer, para início de discussão, que a verdade é um valor e dizer "que a verdade é um valor significa: o verdadeiro confere às coisas, aos seres humanos, ao mundo um sentido que não teriam se fossem considerados indiferentes à verdade e à falsidade" (CHAUI, 1995, p. 90).

A discussão sobre a verdade, contudo, é antiga; há, por conseqüência, diferentes teorias ou concepções e, como não poderia deixar de ser, muitas divergências, notadamente no campo filosófico, onde andam quase sempre juntos conceitos como "verdade", "conhecimento", "razão", "lógica", "pensamento". Assim, atestam os doutos:

Noções antes consensuais como "verdade" e "ciência", sob o bombardeio das teorias pós-modernas, foram "desconstruídas" como discursos ligados a interesses determináveis, o que provocou a necessidade de esclarecer esses conceitos, mostrando seus contornos e limites. (MONTEIRO e SAVEDRA, 2001, p. 23-24.)

E, um pouco mais à frente, discorrendo acerca da teoria geral do conhecimento:

Os filósofos divergem quanto à possibilidade de existência dos objetos independentemente de nossa subjetividade. Alguns adotam a posição realista, de acordo com a qual as coisas existem na natureza independentemente do pensamento. Outros defendem a posição nominalista ou conceitualista segundo a qual a realidade não passa de uma idéia geral e abstrata que nós construímos na nossa mente. Para os nominalistas as idéias correspondem a operações próprias ao pensamento e não signos que se aplicariam a diferentes indivíduos. Embora as teses em voga nos anos 70 e 80 (autores como Michel Foucault, Jean-Francois Lyotard, Richard Rorty, Giles Deleuze entre outros), fundadas num certo nihilismo de inspiração nietzschiana, tenham reavivado a tradição nominalista ao buscar "descontruir" a idéia de "verdade" a partir das vinculações entre interesse e discurso, a tradição realista segue sendo majoritária entre filósofos e cientistas.

A visão realista parece-nos bem representada pelo pensamento de John Searle (op. cit.),[ [1]] para quem existem realidades que são socialmente constituídas enquanto outras são apenas socialmente construídas. No primeiro caso, estão aqueles fatos que só existem em virtude das nossas crenças (tal como o fato de um pedaço de papel "valer" cem reais), os quais não são concebíveis sem a linguagem e sem a cultura. Numa palavra, esses fatos são "constituídos" por nossas crenças.

Os outros fatos são os chamados "fatos brutos", que existem independentemente da nossa linguagem (tal como o fato de que "o Rio Amazonas deságua no Oceano Atlântico"), mesmo que para dizer os fatos necessitemos dessa mesma linguagem. O fato requer a linguagem para existir para nós, mas sua existência é plenamente concebível sem a linguagem. (MONTEIRO e SAVEDRA, 2001, p. 27-28.)

Segundo Chaui, que discorre muito bem sobre o assunto (1995, p. 90-108), a "nossa idéia de verdade foi construída ao longo dos séculos, a partir de três concepções diferentes, vindas da língua grega, da latina e da hebraica" (1995, p. 99). Essas concepções são, respectivamente, a do ver-perceber, a do falar-dizer e a do crer-confiar.

Na concepção grega, a verdade se refere às coisas e aos fatos. Verdade é a l e q h i a (aletheia), que significa o não-oculto, não-escondido, não-dissimulado e, como tal, verdadeiro é o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito; é a manifestação do que é ou existe tal como é. O falso é pseudos, o escondido, o encoberto, o dissimulado, parece ser, mas não é como parece. Dessa forma,

a verdade é uma qualidade das próprias coisas e o verdadeiro está nas próprias coisas. Conhecer é ver e dizer a verdade que está na própria realidade e, portanto, a verdade depende de que a realidade se manifeste, enquanto a falsidade depende de que ela se esconda ou se dissimule em aparências (1995, p. 99).

Na concepção latina, verdade é veritas, significando exatidão, precisão, rigor do que se relata. Verdadeiro, agora, se refere à linguagem como expressão de fatos acontecidos, a relatos ou enunciados que dizem as coisas ou os fatos tais como foram, como aconteceram. Nessa concepção,

a verdade não se refere às próprias coisas e aos próprios fatos (como acontece com a aletheia), mas ao relato e ao enunciado, à linguagem. Seu oposto, portanto, é a mentira ou a falsificação. As coisas e os fatos ou são reais ou imaginários; os relatos e enunciados sobre eles é que são verdadeiros ou falsos (1995, p. 99).

Nesse sentido (de falso, falsidade):

Genericamente, pode dizer-se que falsidade é a não-correspondência com o verdadeiro, é sua imitação, já que se destina a enganar. Falsitas est veritatis imitatio in alterius praejudicium, costumam de dizer os exegetas. Conseqüentemente, além da immutatio veri (mudança do verdadeiro), a bem dizer, ínsita no falso, congênita a ele, a imitatio veritatis (imitação da verdade). Esta é indispensável, pois nela repousa o engano (NORONHA, 1989, p. 80).

Na concepção hebraica, verdade é emunah, que significa confiança. A verdade está nas pessoas e em Deus, que somente são verdadeiros se cumprem o que prometem, se não traem a confiança. A verdade, assim, está relacionada com a espera e certeza, confiança de cumprimento do que foi prometido ou pactuado.

Como se diz, sintetizando:

Aletheia se refere ao que as coisas são; veritas se refere aos fatos que foram; emunah se refere às ações e coisas que serão. A nossa concepção da verdade é uma síntese dessas três fontes e por isso se refere às coisas presentes (como na aletheia), aos fatos passados e à linguagem (como na veritas) e às coisas futuras (como na emunah). Também se refere à própria realidade (como aletheia), à linguagem (como na veritas) e à confiança-esperança (como na emunah) (CHAUI, 1995, p. 99).

Releva salientar, por fim, que há diferentes teorias sobre a verdade, conforme a predominância, no pensamento do teórico ou grupo de teóricos, desta ou daquela idéia ou concepção de verdade dessas já referidas. Dessarte, Chaui enumera quatro teorias da verdade (1995, p. 100). A teoria da correspondência ou evidência (com predomínio da aletheia), segundo a qual verdade é a adequação do nosso intelecto à coisa ou da coisa ao nosso intelecto. A teoria da coerência (com predomínio da veritas), segundo a qual verdade é a coerência interna ou a coerência lógica das idéias que, de acordo com as regras e leis dos enunciados, formam um raciocino. A teoria da convenção ou do consenso (em que predomina a emunah), segundo a qual verdade é o consenso a que chegam, observados princípios e convenções que estabelecem sobre o conhecimento, os membros de uma comunidade de pesquisadores ou estudiosos. E a teoria pragmática (fundada em critério prático de verificabilidade de resultados), segunda a qual a verdade está nos resultados e aplicações práticas do conhecimento, aferível pela experimentação e pela experiência.

Assim, conforme a teoria adotada, são as coisas ou os fatos ou a linguagem ou, ainda, os resultados que são ou não são verdade.

Na primeira teoria (correspondência), as coisas e as idéias são consideradas verdadeiras ou falsas; na segunda (coerência) e na terceira (consenso), os enunciados, os argumentos e as idéias é que são julgados verdadeiros ou falsos; na quarta (pragmática), são os resultados que recebem a denominação de verdadeiros ou falsos.

Na primeira e na quarta teoria, a verdade é o acordo entre o pensamento e a realidade. Na segunda e na terceira teoria, a verdade é o acordo do pensamento e da linguagem consigo mesmos, a partir de regras e princípios que o pensamento e a linguagem deram a si mesmos, em conformidade com sua natureza própria, que é a mesma para todos os seres humanos (ou definida como a mesma para todos por um consenso) (CHAUI, 1995, p. 100-101).

É interessante ressaltar que Foucault fala desse "deslocamento" da verdade, considerando-o sistema de exclusão e por isso o classifica como "separação historicamente constituída" entre verdadeiro e falso. Diz ele que isso não se verifica somente entre nós, nos dias de hoje, mas já era nítido entre os gregos:

(...) ainda nos poetas gregos do século VI, o discurso verdadeiro – sentido forte e valorizado do termo –, o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror, aquele ao qual era preciso submeter-se, porque ele reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e conforme o ritual requerido; era o discurso que pronunciava a justiça e atribuía a cada qual sua parte; era o discurso que, profetizando o futuro, não somente anunciava o que ia se passar, mas contribuía para a sua realização, suscitava a adesão dos homens e se tramava assim com o destino. Ora, eis que um século mais tarde, a verdade a mais elevada já não residia mais no que era o discurso, ou no que ele fazia, mas residia no que ele dizia: chegou um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação, para o próprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relação a sua referência. Entre Hesíodo e Platão uma certa divisão se estabeleceu, separando o discurso verdadeiro e o discurso falso; separação nova visto que, doravante, o discurso verdadeiro não é mais o discurso precioso e desejável, visto que não é mais o discurso ligado ao exercício do poder (FOUCAULT, 2000, p. 14-15).


Conclusão

O Estado é o detentor da persecutio criminis, da jurisdição e do ius puniendi. E o processo judicial é o seu instrumento para isso tudo, tendo por meio a busca da verdade. A ninguém mais, pois, é permitida a autotuela, salvo as exceções legais da legítima defesa, do estado de necessidade e do exercício regular de direito. Demais disso, não se concebe o processo judicial senão como a atividade de três pessoas (iudicium est actus trium personarum: iudicis, actoris et rei, como diz a doutrina), das quais uma, o Estado-juiz, tem o dever da imparcialidade na busca da verdade. A busca da verdade é o meio para se alcançar a prestação jurisdicional, que é o fim.

A imparcialidade a que se alude, todavia, nem sempre existe na prática. Cabe, portanto, aos diversos operadores do direito a atuação crítica e muito responsável, comprometida com a justiça e com o direito, para fazer que a busca imparcial da verdade se verifique na prática e, conseqüentemente, na práxis.

Essa atuação crítica não deve se restringir apenas ao âmbito acadêmico, do cientista, mas também e principalmente deve abranger a atuação diária do profissional do direito em quaisquer atividades.

Dizem Monteiro e Savedra (2001, p. 145-146):

"O jurista qua jurista tem compromisso com o Direito, não necessariamente com as leis. Isto significa que o jurista defende primordialmente os valores éticos, em especial a Justiça e os princípios gerais do direito que a sociedade dos homens livres, pelo uso da razão comunicativa, consagrou. As leis, criações contingentes e emanações tanto da força quanto da razão, podem facilmente tornar-se instrumento de opressão. Por isso, parece lícito afirmar que a ordem jurídica é questionável, em sua validade mesma, pela [sic] jurista na condição de jurista. Se assim é, mais passível ainda de questionamento é a ordem jurídica pelo jurista enquanto cientista."

Com efeito, abstraídas as discussões teoréticas naquilo que diz respeito à especulação abstrata, a busca da verdade no processo judicial contempla todas as teorias sobre a verdade, pois que, ora se busca a verdade das coisas ou dos fatos (mormente no processo civil, mas não somente neste), ora se busca a verdade dos relatos ou enunciados (com muita freqüência no processo penal, mas não somente neste), ora se busca a verdade dos resultados e aplicações práticas do conhecimento (caso das mais variadas formas de perícia, aplicáveis aos mais variados tipos de processo) e assim por diante.


BIBLIOGRAFIA

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: 1999.

Evangelho segundo João. Português. In: Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. p. 99-126. Versão Revista e Atualizada no Brasil. Bíblia. N. T.

FOUCAULT, Mighel. A Verdade e as Formas Jurídicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Nau, 2001.

______. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 6. ed. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2000.

MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira, SAVEDRA, Mônica Maria Guimarães. Metodologia da Pesquisa Jurídica: manual para elaboração e apresentação de monografias. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 19. ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1989.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 20. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 1.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 37. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v. 1.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 21. ed. rev. e atual. São Paulo: 1999. v. l.


NOTA

1 A obra citada de John Searle é The Construction of Social Reality. New York: The Free Press, 1995.

Sobre o autor
Valdinar Monteiro de Souza

advogado, procurador jurídico-legislativo da Câmara Municipal de Marabá,Estado do Pará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Valdinar Monteiro. Observações sobre a busca da verdade no processo judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 657, 25 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6628. Acesso em: 5 nov. 2024.

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