2. ROL DOS DIREITOS CONCEDIDOS ÀS PESSOAS QUE VIVEM EM ECONOMIA COMUM E EM FAMÍLIA ANAPARENTAL
Neste capítulo, serão apresentados os direitos previstos na legislação portuguesa às pessoas que vivem em economia comum (Lei nº 06/2001), como direitos laborais (licenças para acompanhamento do convivente comum, férias conjuntas), direitos fiscais (declaração conjunta de imposto de rendimento das pessoas singulares), direitos reais (residência no imóvel do proprietário por cinco anos após a morte deste) e de locação (permanência do contrato de aluguel até o final do contrato em caso de morte do contratante).
Com relação à família anaparental, será demonstrado que muitos juízes e tribunais estão dando tratamento de verdadeira entidade familiar, inclusive, com o reconhecendo alguns direitos inerentes às famílias tradicionais, como direitos a alimentos, à adoção, à sucessão e ao direito real de habitação, no que estão sendo aplaudidos pela doutrina de vanguarda no País.
2.1. Direitos concedidos às pessoas que vivam em economia comum (Lei nº 06/2001, de 11 de maio, de Portugal)
Em boa hora o legislador português concedeu às pessoas que convivem em economia comum alguns direitos das searas trabalhista, fiscal e civil da família, por meio da Lei nº 6/2001, direitos que também foram reconhecidos aos conviventes da união de facto, dada à similitude de vida de ambos os grupos, já que também vivem em regime de comunhão de despesas e de entreajuda no mesmo lar.
Em verdade, o que diferencia um instituto do outro é que a união de facto visa aos mesmos fins da união por casamento, qual seja, a constituição de família nuclear, com relacionamento conjugal e procriação de filhos, enquanto as pessoas que se unem para viver em economia comum não têm essa finalidade, dividem apenas a casa e a habitação. Podem até se envolver num relacionamento afetivo dessa natureza, mas não é o objetivo precípuo delas, mesmo porque, se a união se transmudar num relacionamento sexual, mudará também a natureza do instituto, hipótese em que os conviventes passarão a ser tutelados pelo estatuto da união de facto.
Isso dito e, considerando que essas pessoas convivem nos moldes de uma família, conceito moderno, consequentemente fazem jus aos direitos concedidos às famílias tradicionais, naquilo que for compatível, pois gozam da mesma tutela constitucional.
Nesse particular, pertinente a leitura do artigo 9º da carta portuguesa:
Artigo 9º: São tarefas fundamentais do Estado: [...]
d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem com o a efectividade dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais; [54]
A concessão de direitos como o gozo conjunto de férias e de feriados, licença para acompanhamento do convivente (direitos sociais), possibilidade de abatimento de despesas dos membros da economia comum junto ao fisco (benefício fiscal), direito de permanecer na casa de morada comum quando da morte do proprietário e direito de execução do contrato de arrendamento urbano quando da morte do contratante (direito real de habitação) são, por certo, medidas que emancipam essas pessoas enquanto cidadãos - esse novo tipo de família - enaltecendo o princípio-mor das relações sociais, a dignidade da pessoa humana.
2.1.1. Direitos laborais
No âmbito dos direitos dos trabalhadores empregados, tanto do setor público, quanto do setor privado, a legislação estendeu alguns desses direitos às pessoas que vivem em regime de economia comum, assim dispondo o artigo 4º, da Lei 6/2001:
Artigo 4º - Direitos aplicáveis.
1 - Às pessoas em situação de economia comum são atribuídos os seguintes direitos:
a) Benefício do regime jurídico de férias, faltas e licenças e preferência na colocação dos funcionários da Administração Pública equiparado ao dos cônjuges, nos termos da lei;
b) Benefício do regime jurídico das férias, feriados e faltas, aplicável por efeito de contrato individual de trabalho, equiparado ao dos cônjuges, nos termos da lei;[55]
Para os trabalhadores do setor público, foram estendidos os direitos de férias, faltas justificadas, licenças e preferência na colocação de funcionários públicos quando há o deslocamento de um dos conviventes.
E para os trabalhadores do setor privado, foram também reconhecidos os direitos ao regime jurídico de férias e das faltas justificadas e acrescido o gozo conjunto dos feriados, nos moldes a serem usufruídos pelos cônjuges e/ou companheiros da união de facto, segundo as respectivas legislações, mas com adaptações, como por exemplo, no caso de haver mais de duas pessoas residindo em economia comum, apenas duas delas devem ser consideradas para fins de fruição do direito (nº 2, do artigo 4º, da Lei nº 6/2001).
No que respeita às férias, segundo os institutos correlatos, se dois trabalhadores do mesmo empregador conviverem numa economia comum, vão poder gozar as férias no mesmo período, desde que esse gozo conjunto não traga prejuízos ao empregador, como, aliás, ocorre com os conviventes da família tradicional que trabalham no mesmo empregador.
Igual tratamento ocorre em relação às faltas justificadas quando um dos conviventes se encontra em iguais condições que um dos cônjuges. Por exemplo, no caso da morte de um deles, o outro terá direito de se ausentar do posto de trabalho pela quantidade de dias em que teria direito o cônjuge ou companheiro. Ou, ainda, para dar assistência ao companheiro de residência em caso de doença deste.
No setor privado, a lei concede o direito ao gozo do feriado, o que permite concluir que, em atividades ininterruptas, com turmas de revezamento, os dois membros da economia comum que trabalham nesse sistema têm direito de gozar o feriado juntos, caso não traga prejuízos ao empregador.
Com relação ao setor público, têm-se, ainda, dois direitos reconhecidos aos membros da economia comum, a licença e a preferência na colocação, cuja concessão também vai seguir os moldes regulamentados aos cônjuges/companheiros que trabalham em tal setor.
A licença pode ser concedida, por exemplo, para um dos conviventes acompanhar o outro em missão ou estudo de longa duração no exterior. E a preferência na colocação pode ocorrer quando um for lotado em cidade ou domicílio distante da residência comum, situação em que o outro terá o direito de ser colocado em órgão público similar na mesma cidade, para preservar a mantença da união em economia comum.
A legislação andou bem na concessão desses direitos a essa união, contudo, comporta uma crítica relativamente à restrição da quantidade de membros a ser beneficiados nessa coletividade.
Nº 2, do artigo 2º, da Lei 6/2001: - O disposto na presente lei é aplicável a agregados constituídos por duas ou mais pessoas, desde que pelo menos uma delas seja maior de idade.
Nº 2, do artigo 4º, da Lei 6/2001: Quando a economia comum integrar mais de duas pessoas, os direitos consagrados nas alíneas ‘a’ e ‘b’ do número anterior, apenas podem ser exercidos, em cada ocorrência, por uma delas. (destaque posterior)[56]
Ora, se a própria lei ressalta que podem conviver, em tal situação, mais de duas pessoas (nº 2, artigo 2º), para fins de proteção do Estado, não pode, posteriormente, fazer limitação dessa quantidade, justamente para fruição dos direitos. Isso contraria a finalidade do instituto, além de favorecer discriminações no seio da comunidade, violando o princípio constitucional da igualdade (artigo 13º da CFpt).
Há que se repensar esse comando legal, pois, no caso concreto, pode ser concedido o direito a todas as pessoas da coletividade, com as adaptações devidas, observando-se os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, para não inviabilizar a atividade do empregador. O que não é admissível é a proibição taxativa, sob pena de violar a Norma Superior.
2.1.2. Imposto de rendimento das pessoas singulares
Sobre o imposto de rendimento das pessoas singulares (benefício fiscal), a letra ‘c’ do artigo 4º da lei em comento assevera que:
Artigo 4º - Direitos aplicáveis.
c) Aplicação do regime do imposto de rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, nos termos do disposto no artigo 7º; - Regime fiscal. À situação de duas pessoas vivendo em regime de economia comum é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 14º - A do Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei Nº 442-A/1988, de 30 de Novembro".[57]
Esse direito também será concedido aos conviventes da economia comum nos moldes da concessão oferecida aos cônjuges ou companheiros, ou seja, podem os membros da economia doméstica fazer declaração conjunta de imposto de rendimento, podendo deduzir despesas uns dos outros, independentemente da quantidade de membros da residência.
Um caso julgado pelo Tribunal Central Administrativo Norte do Porto, apesar de ter sido julgado improcedente, retrata a possibilidade de fruição desse direito.
DESCRITORES: IRS - ABATIMENTOS - ECONOMIA COMUM.
1. O artigo 55.º n.º 1 al. b) CIRS (redacção em vigor no ano de 1994) previa, entre o mais, como uma das condições, dos requisitos, para os sujeitos passivos de IRS poderem abater, à totalidade dos seus rendimentos líquidos, importâncias, pagas e não reembolsadas, respeitantes a despesas de saúde tidas com os seus ascendentes, a situação/conceito de “economia comum”.
2. No nosso ordenamento jurídico, vigora a L. 6/2001 de 11.5. que, por inscrição expressa da sua parte introdutória, “Adopta medidas de protecção das pessoas que vivam em economia comum”, a qual fornece um contributo inestimável, concretamente, uma definição da expressão “Economia Comum”. Assim, nos termos do seu artigo 2.º n.º 1, deve entender-se por economia comum “a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos”.
3. Do transcrito segmento normativo brotam como traços indeléveis, nitidamente identificativos, do conceito jurídico sob avaliação a “comunhão de mesa e habitação” e a “vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos”. Registre-se que estas típicas características se compatibilizam com a raiz etimológica da palavra economia: oikos (casa) + nomia, de nemein (administrar, estabelecer normas, decidir).
4. Assim, para que, no ambiente jurídico, se tenha por preenchida uma situação de economia comum, é mister que os sujeitos envolvidos comunguem da mesma mesa e habitação, norteando a sua actuação por impulsos de ajuda mútua ou de partilha dos recursos, granjeados pelo conjunto e disponíveis.
5. Firmada esta conclusão, importa expressar não encontrarmos quaisquer razões, de especificidade e privativas, que impeçam a transposição do conceito vindo de desenhar para as hipóteses em que o direito substantivo tributário lance mão do mesmo, conferindo-lhe relevância e implicações jurídico-fiscais.
6. Na situação destes autos, presente a factualidade julgada provada, mostrando-se plena a demonstração de que a mãe da impugnante vive e, sobretudo, vivia, no ano de 1994, em casa própria, situada em Penafiel, apenas indo morar com os impugnantes em situações de doença e, particularmente, no decurso desse ano, por virtude da intervenção cirúrgica a que teve de se submeter em unidades hospitalares instaladas na cidade do Porto, onde residia a sua filha e genro, temos de dizer que falece um dos elementos preponderantes, decisivos, para o preenchimento do conceito de “economia comum”; especificamente, a “comunhão de mesa e habitação”. (ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO NORTE. PROCESSO: 00231/01 – PORTO, SECÇÃO: 2ª SECÇÃO - CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO, DATA DO ACORDÃO: 23/10/2008, RELATOR: ANÍBAL FERRAZ) [58]
Na postulação inicial, o genro tentava abater, da sua declaração de imposto de rendimentos, as despesas médicas efetuadas com a sogra, alegando que esta vivia em economia comum consigo e com sua esposa.[59]
O Tribunal negou o pedido do autor por ausência dos requisitos da economia comum, faltando, na espécie, a convivência permanente, já que ficou comprovado que apenas em períodos eventuais a sogra habitava com a filha e com o genro. Contudo, o Acórdão ressaltou que, caso a sogra, efetivamente, morasse com o casal, em regime de entreajuda ou partilha de bens o genro poderia incluir as despesas médicas na sua declaração de imposto de rendimentos, à luz do que dispõe o artigo 4º, letra ‘c’, da Lei 06/2001, de 11 de maio.
Proteção da casa de morada comum
O legislador se preocupou com a situação dos demais membros da coletividade quando o proprietário da casa vem a falecer. Em tal situação, os sobreviventes, em igualdade de condições, terão a proteção da morada comum pelo prazo de cinco anos e, no mesmo prazo, o direito à compra do imóvel. Eis a dicção legal:
Artigo 5º - Casa de morada comum.
1 - Em caso de morte da pessoa proprietária da casa de morada comum, as pessoas que com ela tenham vivido em economia comum há mais de dois anos nas condições previstas na presente lei têm direito real de habitação sobre a mesma, pelo prazo de cinco anos, e, no mesmo prazo, direito de preferência na sua venda.[60]
No que refere à primeira parte (direito de permanência na casa de morada comum pelas demais pessoas dessa economia) nenhuma dúvida subsiste, ou seja, os herdeiros do proprietário haverão de respeitar essa situação pelo prazo de cinco anos.
Contudo, esse direito não é irrestrito, o legislador excetuou algumas hipóteses, em favor de filhos menores do proprietário e de ascendentes deste que convivam na residência comum, como também no caso de disposição testamentária em sentido contrário. Veja-se a redação dos números 2 e 3 do artigo 5º da respectiva legislação:
2 - O disposto no número anterior não se aplica caso ao falecido sobrevivam descendentes ou ascendentes que com ele vivessem há pelo menos um ano e pretendam continuar a habitar a casa, ou no caso de disposição testamentária em contrário.
3 – Não se aplica ainda o disposto no Nº 1 no caso de sobrevivência de descendentes menores que não coabitando com o falecido demonstrem ter absoluta carência de casa para habitação própria.[61]
No caso 2, os membros da economia comum não poderão exercer o direito de permanecer na morada se o proprietário houver deixado descendentes ou ascendentes que conviviam na casa há pelo menos um ano e que pretendam continuar nela coabitando. Nesta situação, prevalecerá o direito dos herdeiros.
Na hipótese 3, por evidente, prevalecerá a vontade do proprietário, se tiver feito testamento em sentido contrário, ou seja, se a vontade manifesta deste for deixar a casa para outra pessoa ou se simplesmente não desejar a mantença da morada comum em sua residência.
Há, ainda, uma quarta situação: a de filhos menores do proprietário que embora não residindo com ele na morada comum demonstre não possuir casa para habitação, hipótese em que os membros da economia haverão de entregar o imóvel aos representantes legais desses menores.
Essas exceções são razoáveis, pois visam à proteção dos menores, idosos e à própria vontade do proprietário, atendendo ao princípio da proteção integral, com absoluta prioridade aos menores, bem assim, garantem o direito de disposição da propriedade.
Por fim, tem-se uma consideração a se fazer na hipótese de venda da casa, na parte final do nº 1, quando ressalta de que “o direito de preferência na venda” será no mesmo prazo de cinco anos.
Ora, se se entender que durante o curso dos cinco anos, os herdeiros do proprietário podem vender a casa, não terá sido respeitada a primeira parte do artigo, “a proteção à morada comum pelo prazo de cinco anos”, o que esvaziará tal proteção, pois, vender o bem temporariamente inalienável será a primeira providência que passará pela cabeça dos herdeiros, a fim de que esse bem gravado venha a compor a partilha.
Portanto, a interpretação mais razoável nesse particular é a de se pensar que, no decurso de prazo de cinco anos, o direito de preferência na venda da casa de morada comum seja exercido tão somente no interesse dos membros da economia comum. Ou seja, se algum morador desejar adquirir o imóvel em tal período, deverá ser a ele vendido, desde que, é claro, sejam observados os valores e condições de mercado.
Por outro lado, transcorrido tal lapso temporal, parece não subsistir o direito de preferência na venda do imóvel ao morador, estando os herdeiros desobrigados de tal encargo, podendo, livremente, alienar o bem a terceiros.
2.1.3. Transmissão do arrendamento por morte
As pessoas que vivem em economia comum têm direito a transmissão do arrendamento para habitação por morte do contratante convivente (contrato de aluguel, no Brasil), por um prazo mínimo de seis meses. Apesar das alterações legislativas sobre a matéria, o direito subsiste, senão, vejamos:
Artigo 6º da Lei 6 de 2001: - Transmissão do arrendamento por morte.
Ao Nº 1 do artigo 85º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei Nº 321-B/1990, de 15 de Outubro, é aditada uma alínea f), com a seguinte redacção: ‘f) Pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos.’ [62]
Em 2006, com a edição da Lei do NRAU (Lei 06/2006, de 27 de fevereiro), houve revogação tácita desse dispositivo. A nova disciplina legal (artigo 57) não incluiu os membros da economia comum no rol dos beneficiados da transmissão do arrendamento por morte do contratante.
Contudo, o Código Civil português disciplina a matéria, no artigo 1106, N. 2, parte final, in verbis:
Artigo 1106.º do CC - Transmissão por morte.
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva: b) Pessoa que com ele residisse em economia comum e há mais de um ano.
2 - No caso referido no número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, em igualdade de circunstâncias, sucessivamente para o cônjuge sobrevivo ou pessoa que, com o falecido, vivesse em união de facto, para o parente ou afim mais próximo ou de entre estes para o mais velho ou para o mais velho de entre as restantes pessoas que com ele residissem em economia comum há mais de um ano.
3 - A morte do arrendatário nos seis meses anteriores à data da cessação do contrato dá ao transmissário o direito de permanecer no local por período não inferior a seis meses a contar do decesso.
Assim, fazendo-se uma interpretação teleológica, conclui-se que o direito subsiste aos membros da economia comum, mudando apenas o endereçamento da norma, que passou da lei do Arrendamento Urbano para a disciplina do Código Civil, ficando, inclusive, mais benéfico, pois, foi reduzido o prazo de dois para um ano, conforme já tratado em linhas anteriores.
Esse direito, aliás, por ser o único da lei da economia comum que tem regulamentação específica, como visto, no RAU e no CC, já foi bastante enfrentado nos tribunais e com êxito, conforme se constata através de julgados do Superior Tribunal de Justiça de Lisboa (Sumários do Boletim interno), extraídos do site da Procuradoria Geral-Distrital de Lisboa (PGDL)[63] e do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal.
ACSTJ de 25-11-2004
CONTRATO DE ARRENDAMENTO. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. ECONOMIA COMUM. FAMÍLIA
I - Para a operância da excepção tipificada na alínea c) do n.º 2 do artigoº 64 do RAU 90 - obstativa da resolução do contrato de arrendamento -, não basta a mera permanência de parentes ou familiares no arrendado, antes se configurando como necessária a existência de elos de dependência económica entre eles, ou com a própria casa/habitação e ou/o arrendatário.
II - O conceito de 'economia comum' pressupõe uma comunhão de vida, com base num lar em sentido familiar, moral e social, uma convivência conjunta com especial affectio ou ligação entre as pessoas coenvolvidas, convivência essa que não impõe a permanência no sentido físico, antes admitindo eventuais ausências, sem intenção de deixar a habitação, com sujeição a uma economia doméstica comum com a quebra dos laços estabelecidos, verificando-se, assim, apenas uma única economia doméstica, contribuindo todos ou só alguns para os gastos.
III - A ratio legis radica na protecção da estabilidade do agregado familiar com sede no arrendado (que não no interesse económico do senhorio).
IV - A instalação de um novo agregado familiar no arrendado não está já abrangido pela protecção excepcional contemplada na alínea c) do n.º 2 do artigoº 64 do RAU 90, já que, assim se não entendesse, representaria como que a transmissão (cessão) em vida da posição de arrendatário habitacional, ao arrepio do regime legal específico. (Revista n.º 3633/04 - 2.ª Secção Ferreira de Almeida (Relator) * Abílio de Vasconcelos Duarte Soares) [64]
ACSTJ DE 05-07-2007
CONTRATO DE ARRENDAMENTO. CADUCIDADE. TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO. ECONOMIA COMUM.
I -Estando em causa a transmissão da posição de arrendatário num contrato de locação para a habitação, por morte da locatária, a sobrinha desta que prove que com a mesma vivia, à data daquela morte, há mais de dois anos, beneficia da presunção de convivência em economia comum, com a falecida arrendatária, prevista no n.º 2 do artigo 76.º do RAU. II - Logo a referida sobrinha beneficia do direito à transmissão da posição da locatária no mesmo contrato de locação, nos termos do artigo 85.º, n.º 1, al. f), do RAU, na redacção dada pelas Leis nº s 6/2001 e 7/2001, ambas de 11-05. (Revista n.º 4767/06 -6.ª Secção João Camilo (Relator) Azevedo Ramos Silva Salazar.)[65]
ACSTJ de 09-05-2006
CONTRATO DE ARRENDAMENTO. ECONOMIA COMUM. REQUITOS TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO. APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO.
I - Provado que a ré reside na fracção desde 08-04-1977, tendo convivido com a primitiva arrendatária de 1977 a 1996, relação de convivência que se baseou sempre numa base de amizade e inter-ajuda entre as duas senhoras, principalmente a partir do ano de 1996, altura em que a arrendatária adoeceu ficando num estado muito debilitado e dependendo exclusivamente da ajuda da ora ré, que se desempregou para prestar auxílio, gratuito, até à morte daquela, prestando-lhe cuidados médicos e de higiene permanentes, acompanhados de amizade e companhia, em troca de uma repartição de custos diários com a manutenção de duas vidas, acrescida, para a ré da possibilidade de habitar a fracção, estabeleceu-se entre as duas senhoras uma estreita convivência “quase familiar” que se integra no conceito de economia comum.
II - A al. f) do .º 1 do artigo 85.º do RAU, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 6/2001, de 11 de Maio, reporta-se a um estatuto legal, nela tendo o legislador tido em atenção tão só a relação locatícia duradoura, abstraindo dos factos que a originaram, desviando-se claramente de regulamentar o conteúdo de cada específico contrato de arrendamento celebrado, aplicando-se mesmo às situações jurídicas em que o direito à transmissão do arrendamento já estava constituído à data da sua entrada em vigor, não podendo, consequentemente esse efeito imediato da lei nova, previsto na segunda parte do n.º 2 do artigo 12.º do CC, enquanto tal, ser considerado como representando um efeito retroactivo. (Revista n.º 714/06 - 1.ª Secção Borges Soeiro (Relator) Pinto Monteiro Faria Antunes). [66]
ACSTJ de 29-06-2000
ARRENDAMENTO. DIREITO A NOVO ARRENDAMENTO. ECONOMIA COMUM.
I - Quando o artigo nº 90 remete para as pessoas referidas na al. a) do n.º 1 do artigo nº 76, ambos do RAU, desde que convivam com o arrendatário há mais de cinco anos, estabelece na primeira parte a condição de vivência em economia comum e, na segunda, o período em que essa convivência se deve manter. Não se basta, assim, com uma convivência em economia comum por um prazo inferior a cinco anos.
II - Perante a letra da lei e a história do preceito há que entender os requisitos da vivência em economia comum como cumulativos no prazo de cinco anos. N.S. (Revista n.º 1612/00 - 2.ª Secção Simões Freire (Relator) Roger Lopes Costa Soares.)[67]
Com efeito, por necessitar de uma interpretação expansiva e teleológica, muitas controvérsias vão continuar existindo a respeito do tema, mas, o intérprete e aplicador do direito deve voltar seu foco para a finalidade da lei, que é a proteção das pessoas que coabitam nessa família especial, de modo que a orientação seja percebida para avançar e não para restringir direitos.
2.2. Direitos reconhecidos pela doutrina e pela jurisprudência do Brasil à família anaparental
No Brasil, como visto, doutrina e jurisprudência vêm reconhecendo como entidade familiar a “união de pessoas que convivem em economia comum (parentes, não parentes ou ambas), com divisão de casa e mesa, sem conotação sexual e sem finalidade de procriação, constituída com a finalidade de um projeto de felicidade comum”, com o nome de família anaparental, cuja definição decorre exatamente da falta de um dos pais no núcleo familiar.
Apesar de não haver uma lei regulamentando esse fato social, frise-se, muito comum na sociedade pós-moderna, os tribunais brasileiros, diante das demandas a si submetidas, vêm concedendo alguns direitos próprios das famílias tradicionais, mutatis mutandis, como direito de sucessão, de alimentos, direito à impenhorabilidade do bem de família e direito real de habitação.
2.2.1. Direito ao reconhecimento de bem de família
O Direito brasileiro já consagrou como entidade familiar dois irmãos solteiros que vivem juntos, a nomeada família anaparental, garantindo-lhes o direito de impenhorabilidade do imóvel onde residiam, reconhecendo-o como bem de família, exatamente nos moldes em que o direito é aplicado para a família nuclear. Confira-se:
EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIRO. LEI 8009/90. IMPENHORABILIDADE. MORADIA DA FAMILIA. IRMÃOS SOLTEIROS. Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza da proteção de impenhorabilidade, prevista na lei 8009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles. Recurso conhecido e provido. (STJ. REsp 159851/SP, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 19/03/1998, DJ 22/06/1998 p. 100).[68]
2.2.2. Direito a alimentos
O Direito Civil brasileiro impõe responsabilidades aos parentes, no sentido de que uns assistam os outros materialmente, independentemente da linha e do grau de parentesco. Veja-se o que dispõe o artigo nº 1.694 do mencionado diploma:
Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
§ 1o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.
§ 2o Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.
Art. 1.695. São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento.
Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.
Art. 1.697. Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais.
Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.[69]
A previsão se destina àquelas pessoas que não podem prover sua própria subsistência, que podem pleitear alimentos dos cônjuges, companheiros, parentes em linha reta e colateral.
O fundamento encontra guarida no direito fundamental à vida, bem assim nos princípios da solidariedade, cooperação e dignidade da pessoa humana, todos inseridos na Constituição Federal, em especial nos artigos 226 e 227.
Nesses termos e por interpretação analógica (artigo 140 do CPC), o Direito brasileiro vem reconhecendo aos conviventes em economia comum (família anaparental), o direito a integrar o rol do artigo 1.694 do Código Civil, ficando demonstrado que a parte pedinte dos alimentos não possui meios de se manter.[70]
Nesse contexto, convém mencionar o entendimento do Conselho da Justiça Federal, na IV Jornada de Direito Civil, consubstanciado no enunciado número 341, que dispõe: “para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar”.
No mesmo sentido, segue o Projeto de Lei n. 2.285/07, que versa sobre o Estatuto das Famílias. Veja-se a redação do artigo 115: “Podem os parentes, cônjuges, conviventes ou parceiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver com dignidade e de modo compatível coma sua condição social”.[71]
Como se pode constatar, o direito brasileiro caminha para a concessão de alimentos para os membros da família anaparental composta por familiares. Nada obsta, por outro lado, que o mesmo direito seja concedido aos membros não parentes, desde que estejam satisfeitos, no caso concreto, os requisitos da razoabilidade e da proporcionalidade. E, de igual modo, pode ser aplicado à economia comum portuguesa.
2.2.3. Direito à sucessão
O direito à sucessão, assim como o direito a alimentos, também pode ser reconhecido ao membro da família anaparental ou da economia comum, em algumas circunstâncias, quando, por exemplo, restar comprovado que o membro sobrevivo contribuiu onerosamente para a construção do patrimônio do de cujus, sendo justo, portanto, que também seja beneficiário na sucessão.
A solução jurídica pode ser o disposto no artigo 1.790 do Código Civil, destinado a regular a sucessão na união estável, também por aplicação analógica, que disciplina:
Artigo 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.[72]
Em tal situação, o convivente deve participar da sucessão, mas, apenas, quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a convivência, e limitado à parte que onerosamente ajudou a adquirir durante a convivência, ou seja, não é herdeiro necessário.
Há ainda quem faça uma ressalva, de alguns, no sentido de que o convivente só tenha direito à sucessão se o óbito do outro sobrevier ainda durante a convivência.[73]
Maria Berenice Dias apresenta uma hipótese de incidência de direitos sucessórios na família anaparental que representa uma possibilidade jurídica, além de responder a muitas inquietações nesta questão. Exemplifica que a convivência sob o mesmo teto, durante longos anos de duas irmãs que conjugam esforços para a formação do acervo patrimonial, constitui uma entidade familiar. E que na hipótese de falecimento de uma delas, descabe dividir os bens igualitariamente entre todos os irmãos, como herdeiros colaterais, em nome da ordem de vocação hereditária. E do mesmo não cabe reconhecer que se tratava de sociedade de fato, não sendo justo invocar a Súmula 380/STJ para conceder somente a metade dos bens à sobrevivente, porque fora essa irmã quem auxiliou a amealhar dito patrimônio. Diz que a solução que se aproxima de um resultado justo é conceder à irmã, com quem a falecida convivia, a integralidade do patrimônio, pois ela, em razão da parceria de vidas, antecede aos demais irmãos na ordem de vocação hereditária. Justifica que ainda que inexista qualquer conotação de ordem sexual, a convivência identifica comunhão de esforços, cabendo aplicar, por analogia, as disposições que tratam do casamento e da união estável, porque essas estruturas de convívio em nada se diferenciam da entidade familiar de um dos pais com seus filhos, portanto, merecem proteção constitucional.[74]
Outro exemplo pertinente é no caso de um dos conviventes falecer sem deixar herdeiro, hipótese em que seu patrimônio vai para o Estado. Contudo, parece mais justo e razoável que fique com o outro convivente da união, já que representa, e até substitui, os parentes do de cujus.
Esse é o pensamento de Maria Helena Diniz, para quem o Poder Público, representado pela União, Estados e Municípios, sendo um sucessor irregular, não deve receber toda a herança, pois existe um sucessor legítimo, qual seja, o membro da família anaparental, o que afasta o Poder Público da condição de beneficiário.[75]
Dessa feita, há possibilidades de se reconhecer direitos sucessórios aos membros da família anaparental, como também aos da economia comum, independentemente da formação ser por parentes ou não.
2.2.4. Direito real de habitação
A interpretação no caso do direito real de habitação para os conviventes da família anaparental segue o mesmo trilhar dos casos anteriores, dada a sua similitude de gênese. É de se conceder tal direito ao convivente desse agrupamento com fundamento, também analógico, bebendo-se da dicção da Lei da União Estável (Lei nº 9.278/96), que traz a seguinte redação, em seu parágrafo único do artigo 7:
Dissolvida a união por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá o direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família.[76]
É possível se utilizar, ainda, da Lei da Impenhorabilidade do Bem de Família (Lei 8.009/90) para garantir o direito real de habitação aos membros da família anaparental.
Afinal, como enfatiza Hugo Sá, o Estado não pode se abster de proteger o convivente sobrevivo integrante da família anaparental, negando efeitos jurídicos a uma relação que foi regada pelo afeto, mesmo elemento que legitimou a concessão destes mesmos efeitos aos companheiros de uma união estável. Não sendo razoável que relações semelhantes, fundadas no mesmo elemento, o afeto, ensejem conseqüências jurídicas tão distintas.[77]
2.2.5 Direito à adoção
Questão mais delicada, mas também viável, é a possibilidade de adoção de crianças pela família anaparental, por duas ou mais pessoas.
Conforme já mencionado em tópico anterior, o Superior Tribunal de Justiça já enfrentou a questão, em caso de uma adoção póstuma, reconheceu a dois irmãos, de sexos opostos, o direito de adotar um menor que vivia na companhia do casal, como filho de ambos. Constatou que os irmãos, que viveram sob o mesmo teto até o óbito de um deles, agiam como família que eram, tanto entre si como para o infante, e, naquele grupo familiar, o adotando se deparou com relações de afeto, construiu – nos limites de suas possibilidades – seus valores sociais, teve amparo nas horas de necessidade físicas e emocionais, encontrando naqueles que o adotaram a referência necessária para crescer, desenvolver-se e inserir-se no grupo social de que hoje faz parte.[78]
O STJ frisou que os fins colimados pela lei da adoção - a existência de núcleo familiar estável e a consequente rede de proteção social que pode gerar para o adotando - encontravam-se satisfeitos na situação em apreço, asseverando que o que informa e define um núcleo familiar estável são os elementos subjetivos, que podem ou não existir, independentemente do estado civil das partes.[79]
Por fim, ressaltou que o conceito de núcleo familiar estável não pode ficar restrito às fórmulas clássicas de família, devendo ser ampliado para abarcar a noção plena apreendida nas suas bases sociológicas.[80]
Com isso, de fácil percepção a possibilidade de se reconhecer o direito de adoção à família anaparental, independentemente de ser formada por núcleo parental.
2.2.6. Outros direitos
Aos filhos socioafetivos, os conhecidos enteados, também são concedidos direitos patrimoniais, na Lei dos Servidores Públicos Civis da União (Lei 8.112/1990), “considerando-se-os por dependentes na aferição do salário-família e da pensão por morte do servidor, em condição de igualdade ao filho registral”.[81]
Cláudia Pozzi lembra outra situação de família diferenciada para a qual são concedidos direitos que na sua gênese são destinados à família tradicional. “É o caso da “Bolsa Família”, criada pela Lei nº 10.836/2004 (artigo 2º, § 1º, n. I), que considera para aferição da renda familiar a “unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco ou de afinidade, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e que se mantém pela contribuição de seus membros”.[82] Indubitavelmente, um conceito extensivo de família, que cabe na definição de família anaparental.
Como se pode notar, embora o Poder Legislativo não tenha acompanhado esta palpitante evolução da sociedade, o Poder Judiciário vêm tentando suavizar os impactos dessa ausência legislativa - com o apoio da doutrina - e vem tentando integrar as novas formas de entidade familiar à sociedade, e, consequentemente, reconhecendo alguns direitos para a mantença do mínimo existencial desses grupos familiares, em cumprimento ao decreto da dignidade da pessoa humana.