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Tutela jurídica das pessoas que vivem em economia comum ou em família anaparental

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Não há óbice para que tais agrupamentos sejam enquadrados como entidade familiar, para poderem receber a proteção estatal destinada à família.

“Temos o direito de sermos iguais quando as diferenças nos inferiorizam, e temos o direito de sermos diferentes quando as igualdades nos escravizam”

(Boaventura de Sousa Santos)

RESUMO: Estuda-se o Estatuto da Economia Comum, Lei nº 6/2001, de Portugal, em contraponto com a Família Anaparental, do Brasil, tipos especiais de família, o que requer uma análise das transformações pelas quais passou a sociedade nos últimos séculos e dos princípios norteadores da família contemporânea. Nesse viés, investigam-se os elementos que caracterizam o preceito economia comum, as pessoas que podem conviver sobre tal forma, o limite de idade, o tempo mínimo, o objetivo das pessoas que se juntam para essa convivência, os casos de não configuração, as maneiras de provar o início e o termo final do vínculo e, principalmente, os direitos prescritos no respectivo estatuto, mostrando-se a possibilidade de eficácia imediata e de ampliação do rol. Concernente à família anaparental, mostra-se a previsão na jurisprudência brasileira, com o reconhecimento de vários direitos inerentes à família matrimonial, como direitos a alimentos, à adoção, à sucessão e ao direito real de habitação; além disso, a previsão expressa em projeto de lei para instituição do “Estatuto das Famílias”, em tramitação no Congresso brasileiro.  Constatando-se a similitude das condições de vida das pessoas que convivem em economia comum e em família anaparental, sugere-se a adoção de instituto similar em ambos os países para que essas pessoas tenham tutela estatal nos moldes de uma família.

Palavras-chave: Economia Comum. Família Anaparental. Direitos.

SUMÁRIO:Introdução .1.CONVIVÊNCIA EM ECONOMIA COMUM E EM FAMÍLIA ANAPARENTAL .1.1.  Economia comum  .1.1.1.  Requisitos . 1.1.2. Vivência em comum de entreajuda ou de partilha de recursos . 1.1.3. Maioridade (maior de 18 anos) .1.1.4. Tempo mínimo (mais de dois anos) .1.1.5. Deveres das partes  ..1.1.6. Prova do vínculo da vida em comum .1.1.7. Prova da extinção da relação .1.1.8. Exceções legais ...1.1.9. Evolução histórica .1.2. Família anaparental .1.2.1. Definição  .1.2.2.  Reconhecimento no direito brasileiro .2.ROL DOS DIREITOS CONCEDIDOS ÀS PESSOAS QUE VIVEM EM ECONOMIA COMUM E EM FAMÍLIA ANAPARENTAL .2.1. Direitos concedidos pela Lei nº 06/2001, de Portugal, às pessoas que vivam em economia comum ..2.1.1. Direitos laborais .2.1.2. Imposto de rendimento das pessoas singulares ..2.1.3. Proteção da casa de morada comum .2.1. 4. Transmissão do arrendamento por morte .2.2. Direitos reconhecidos pela doutrina e pela jurisprudência do Brasil à família anaparental .2.2.1. Direito ao reconhecimento de bem de família .2.2.2. Direito a alimentos ..2.2.3.  Direito à sucessão .2.2.4. Direito real de habitação  .2.2.5. Direito à adoção .3.2.6. Outros direitos ..3.EFICÁCIA DAS MEDIDAS DE PROTEÇÃO À ECONOMIA COMUM, AMPLIAÇÃO DO ROL, EM PORTUGAL, E CONSIDERAÇÕES ACERCA DA NORMATIZAÇÃO DA FAMÍLIA ANAPARENTAL, NO BRASIL .3.1. Imediata implementação dos direitos concedidos pela Lei nº 6/2001  .3.2. Ampliação do rol de direitos. Mecanismos .3.3. Considerações acerca da normatização da família anaparental .3.3.1. Projeto de Lei nº 2.285/2007 - Estatuto “das Famílias”.3.3.2.  Projeto de Lei 6.583/2013 - Estatuto “da Família”.3.3.3. Projeto de Lei nº 470/2013 - Estatuto “das Famílias”.Conclusão .Referências .


Introdução

Em razão das transformações sociais ocorridas nos últimos séculos, a vida humana se tornou complexa. As concepções de família da fase pré-moderna, de cunho patrimonialista e núcleo de reprodução, por exemplo, já não são mais as mesmas. Fatos importantes como a Revolução Francesa, com sua ideologia de igualdade, liberdade e fraternidade, bem como a Revolução Industrial, modificando o mercado de trabalho, influenciaram, sobremaneira, o papel da mulher perante a sociedade, pois esta saiu do lar e se lançou no mercado de trabalho, em igualdades de condições que o homem, e, com isso, novos contornos foram dados à família.

Essa mudança de paradigma é ainda conseqüência da ascensão do Direito Constitucional - também fruto dessas transformações sociais - que consolidou os direitos fundamentais e colocou a pessoa humana no centro do ordenamento jurídico, em detrimento da tutela do patrimônio dantes reinante,[1] e, também, promoveu a Constitucionalização do Direito, levando à conformação das normas e diretrizes constitucionais a todos os ramos do Direito, como também ao comportamento das pessoas.[2]          

Passou-se a um novo modelo da família, fundado, agora, nos pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo,[3] impingindo-se nova roupagem axiológica ao direito das famílias, com o foco voltado para a tutela do indivíduo.[4]

A entidade familiar com esse novo enfoque ultrapassa os limites da união por matrimônio, para abarcar novos modelos, como união estável, família monoparental, família homoafetiva, anaparental, mosaico, paralela, recombinada, enfim, todo e qualquer agrupamento de pessoas, ‘unidas por economia comum’, onde permeie o elemento afeto,[5]  independentemente do lugar em que cada membro ocupe nessa comunidade, não se exigindo, necessariamente, que estejam presentes as figuras específicas do pai, da mãe e dos filhos. Nessa nova formatação, exige-se apenas a presença dos elementos da afetividade, da estabilidade (durabilidade) e da ostensividade (publicidade).[6]

Nesse contexto, estuda-se o estatuto da economia comum, de Portugal (Lei nº 6/2001), que trata das “pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência comum de entreajuda ou partilha de recursos”[7], fazendo-se um contraponto com a família anaparental, do Brasil, uma convivência semelhante à união em economia comum de Portugal, cujos membros também vivem na mesma casa, independentemente de relacionamento sexual, “sendo composta por parentes sem um núcleo familiar (pais), como também por pessoas não ligadas por laços de parentesco, com o sentimento de que estão convivendo em família, havendo assistência mútua, material e emocional”. Mostra-se a similitude de ambos os institutos e sugere-se a adoção de tratamento jurídico, também similar, em ambos os países, visando à tutela estatal nos moldes de uma família.

Serão apresentados os direitos previstos na legislação portuguesa a esse seguimento social (Lei nº 06/2001), como direitos laborais (licenças para acompanhamento do convivente comum, férias conjuntas), direitos fiscais (declaração conjunta de imposto de rendimento das pessoas singulares), direitos reais (residência no imóvel do proprietário por cinco anos após a morte deste) e de arrendamento (permanência do contrato de aluguel até o final do contrato em caso de morte do contratante) e será apresentada uma proposta de ampliação do rol, sem necessidade de nova ação do legislador, por técnica de interpretação conforme a Constituição.

Diante da constatação de ausência, injustificada, de regulamentação da mencionada lei, será recomendada a imediata implementação dos direitos por meio da técnica de completude do direito, sob duas vertentes: A primeira, como forma de integração do direito, através do “diálogo das fontes” ou aplicação analógica, valendo-se das lições de Norberto Bobbio, sobre o dogma da completude. A segunda, invocando-se a teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais, sem necessidade de uma lei vindoura para tal mister, seguindo as lições  de Gomes Canotilho.

Quanto à questão no Brasil, serão analisados os contornos da família anaparental, demonstrando-se que alguns tribunais já estão reconhecendo esse arranjo como entidade familiar e reconhecendo alguns direitos inerentes às famílias tradicionais como direitos a alimentos, à adoção, à sucessão e ao direito real de habitação. Será demonstrada, ainda, a existência de projeto de lei, em tramitação no Congresso Nacional, para instituição do “Estatuto das Famílias” no Brasil, no qual está sendo contemplada a família anaparental.

A pesquisa vislumbra a possibilidade de adoção de medidas estatais para que as pessoas que vivam nessa condição tenham tutela estatal nos moldes de uma família.


1.  CONVIVÊNCIA EM ECONOMIA COMUM E EM FAMÍLIA ANAPARENTAL

1.1. Economia comum

O conceito de economia comum é dado pelo artigo 2°, 1, da Lei nº 6/2001, de Portugal, segundo o qual “entende-se por economia comum a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência comum de entreajuda ou partilha de recursos”.[8]

A lei portuguesa não exige a coabitação conjugal dos conviventes para tal configuração, mas não há impedimento que esse relacionamento afetivo venha a ocorrer, como por exemplo, quando não puder ser reconhecida a situação de união estável e estiverem presentes os demais requisitos (prazo mínimo de dois anos e a partilha de recursos ou de entreajuda).

A explicação para essa não ocorrência de relacionamento sexual é óbvia, pois se já existe uma lei em Portugal (Lei nº 7/2001) que protege as pessoas que vivem em união de facto, não há, pois, necessidade da lei em comento (Lei nº 6/2001) fazer essa referência, mesmo porque o objetivo é a proteção de outro segmento social.

Nesse sentido, é a justificativa da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, constante da exposição de motivos da mencionada lei.

O que caracteriza essencialmente a nova fórmula que se propõe, distinguindo-a do regime aplicável às uniões de facto é a absoluta irrelevância da orientação sexual das pessoas a quem se confere protecção legal. Partindo da verificação objectiva da partilha de certos meios de vida e outros traços integrantes daquilo que se denominou «vida em economia comum», o legislador pode passar a configurar um conjunto de benefícios aplicáveis numa multiplicidade de situações susceptíveis de serem estabelecidas entre pessoas, independentemente do sexo ou orientação sexual.[9]

Também não exige que a composição do grupo seja por pessoas ligadas por laços de parentesco, como ocorre em outros países, a exemplo dos Estados Unidos, em que a família comunitária (como lá é conhecida), só recebe proteção federal quando formada por membros da família. Apenas alguns poucos Estados não fazem essa distinção.[10]

Como exemplos de grupos de convivência familiar têm-se os agregados compostos por irmãos que, após a morte de progenitores comuns, continuam a viver em comunhão de mesa e habitação[11] e não se casam posteriormente, ou por outros parentes, de qualquer linhagem, como primos, avós e netos, tios e sobrinhos, que, simplesmente, resolvem viver juntos em relação de entreajuda e partilha de recursos. 

E como exemplo de convivência em comum não-familiar, tem-se a indicação de Jorge Pinheiro: “de um médico, um professor, um advogado, um mediador imobiliário, sem laços familiares entre si, que vivem na mesma casa, situada na zona onde todos exercem as respectivas profissões, dividindo as despesas relativas a casa, jantam juntos e cumprem um esquema de rotação no desempenho das tarefas domésticas”.[12]

Têm-se, também, outras situações de fácil constatação na sociedade em que estão presentes os requisitos da partilha de recursos e da entreajuda, como, por exemplo:

  1. estudantes que têm por objeto a conclusão de estudos por longo período (repúblicas de estudantes, pensionatos);[13]
  2. a realização de trabalho (pessoas que trabalham juntas no mesmo empregador, principalmente quando trabalham fora na sua residência originária);
  3. amigos que se juntam para dividir morada;
  4. pessoas que não desejam casar ou manter união de fato, mas que, também, não desejam morar na casa de seus pais, ou sozinhas, resolvem, então, viver com outras pessoas em comunidades.
  5. idosos que não desejam viver sob os cuidados de parentes e resolvem se unir com outros idosos para dividirem habitação, a fim de, juntos, partilharem dos gastos com profissionais necessários para sua boa qualidade de vida, como terapeutas, nutricionistas, massagistas, psicólogos, enfermeiros e os próprios cuidadosos de idosos, além das despesas de casa e mesa.[14]

Também há que se questionar, se configuraria economia comum as casas de prostituição, em que as pessoas residem e trabalham.

Do ponto de vista dos valores morais, não seria adequado, contudo, do ponto de vista teleológico, perfeitamente, possível, afinal, as “profissionais do sexo” até usam a casa para “trabalhar”, mas, também, para residirem, nos moldes da economia doméstica, então, basta que se verifiquem os demais requisitos para tal configuração.

Outra hipótese possível seria no caso de impedimento da união de facto (artigo 2.º, alínea ‘c’, da Lei nº 7/2001– de casamento anterior não dissolvido), ou seja, a situação em que a união de facto não poderia ser reconhecida por força do casamento anterior não dissolvido, mas, por outro lado, poder estar preenchidos os requisitos da Lei nº 6/2001.

Como se vê, várias são as possibilidades de formação de convivência em economia comum, das quais muitas se enquadram ao novo conceito de família e como tal necessitam de proteção estatal.

Portugal não distingue núcleo familiar de núcleo não-familiar para fins de incidência da Lei nº 6/2001, entretanto, não considera esse tipo de convivência, qualquer que seja a formação, como entidade familiar.

Todavia, a convivência que se assemelha à noção de família - quer seja formada por parentes, quer seja, apenas por amigos, ou até mista - merece um novo olhar, frise-se, aquele agrupamento formado com animus de constituir família, duradouro, sem termo final antecipadamente previsto, pois as pessoas que vão conviver nessa condição o fazem nos moldes de uma família. Adequando-se, portanto, ao conceito atual de família, de “núcleo de convivência, no mesmo teto, unido por laços afetivos estáveis”,[15] capaz de promover a dignidade das pessoas conviventes.

Situação diversa se observa em convivência comum para fins de estudos, ainda que ultrapassem os dois anos previstos na lei, como também quando colegas de trabalhos se unem para morar juntos, por força de situação provisória de remoção ou de transferência, independente do tempo de duração.

No caso concreto, se for possível constatar que o animus é provisório, não estará configurada a entidade familiar, por falta do requisito da afetividade, pois o que teria motivado a formação dessa convivência em economia comum teria sido uma circunstância, não o afeto. Nesta hipótese, não poderia ser dado a esse agrupamento o tratamento conferido às famílias.

Para o direito português, a economia comum, independente do tipo, não é família. Apesar de oferecer as medidas de proteção, da Lei nº 6/2001, tanto para a economia comum familiar quanto para a não-familiar, Portugal não reconhece nenhuma das duas figuras como entidade familiar.

Jorge Pinheiro Duarte, jurista português, qualifica essas uniões como relação parafamiliar. Para ele, sequer a união de fato o é. Esse autor diz que tais relações são emergentes de atos jurídicos, reais ou materiais. [16]

Afasta a natureza de fato jurídico porque as relações são formadas pela vontade das partes. Afasta, também, a natureza de relação contratual, porque os membros “não podem validamente vincular-se a um dever jurídico de comunhão análogo ao que vigora em certas relações familiares”[17], pois as medidas de proteção são conferidas independentemente de terem sido pretendidas pelas partes no momento em que a relação se constituiu ou quando perfaz dois anos. Complementa:

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Tendo em conta que as medidas de proteção são os efeitos essenciais da união de facto e da convivência em economia comum protegidas, o aspecto referido é decisivo para rejeitar a contratualidade. No casamento, cuja carácter negocial é controverso, a validade da constituição do vínculo é, pelo menos, suscetível de ser prejudicada se os nubentes não queriam submeter-se aos efeitos essenciais do acto que praticaram (cf. artigo 1635º, al. d). [18]

Defende que essas convivências, em verdade, têm natureza de atos jurídicos em sentido estrito ou deles são emergentes, mais precisamente de atos reais ou materiais, porque “para o Direito, é indiferente que os sujeitos digam ou deixem de dizer que vivem ou querem viver em comunhão”.  Explica Pinheiro Duarte:

Na constituição e no desenvolvimento da união de fato e da convivência em economia comum protegidas, os respectivos membros assumem comportamentos voluntários, cuja voluntariedade é suficiente para que se produzam os efeitos legais de proteção. Esses comportamentos não têm de ter conteúdo comunicativo, nem finalidade declarativa. O que releva é somente a vida em comum de companheiros e conviventes durante mais de dois anos, a prática ao longo de mais de dois anos de um conjunto de actos intencionais que identifique uma comunhão entre os sujeitos.[19]

Desse modo, as qualifica como “figuras rebeldes às qualificações marcadamente obrigacionais”, dada à dificuldade de enquadrá-las no âmbito das relações contratuais de facto.

França Pitão, em sua obra “Uniões de Facto e Economia Comum”, único material específico dedicado à economia comum, em Portugal, também segue a corrente que não considera essa convivência de pessoas como entidade familiar.[20]

Contudo, em pese as ponderações brilhantes desses doutos juristas, essa situação precisa ser repensada. Como visto, hoje, é comum pessoas resolverem não constituir família no sentido tradicional (casamento, procriação) e escolherem morar sozinhas, ou convidarem outras pessoas para dividirem habitação, sendo que, neste último caso, naturalmente, vai surgir o desenvolvimento de uma relação nos mesmos moldes de uma família, com relação de afeto, partilha de despesas, ajuda mútua e relação de companheirismo, com exceção, apenas, da relação sexual, sem falar que é muito mais comum parentes sem núcleo familiar (sem um pai ou uma mãe) conviverem com essa relação de entreajuda, exatamente com as características modernas de família (afetividade, ostensibilidade e estabilidade).

A economia comum, neste aspecto, é apenas mais um tipo de entidade familiar, dentre as tantas já existentes no universo real. É uma realidade cada vez mais expressiva na sociedade contemporânea.

Independentemente dos motivos que levam à constituição dessas uniões, o Estado tem o dever de protegê-las, oferecendo condições para que possam participar ativamente da vida em sociedade, gozando de direitos inerentes às famílias tradicionais, naquilo que lhes for compatível, materializando-se, assim, os princípios da igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana.

Com acerto, o legislador português conferiu à economia comum, alguns direitos próprios da união de facto, que serão analisados oportunamente, mas, pertinentes, no momento, os traços de semelhança e de diferenças de ambos os institutos para uma melhor compreensão.

No que respeita às semelhanças, tem-se a exigência de convivência por prazo superior a dois anos, a maioridade de, pelo menos, um dos conviventes, e a proteção da casa de morada comum.

Já as diferenças são mais significativas. A lei da economia comum é mais abrangente; comporta mais de duas pessoas na relação; não exige o relacionamento sexual e os direitos previstos na respectiva lei não incluem pensões de qualquer tipo (todo o resto é semelhante aos direitos base da Lei de União de Facto, com adaptações para as situações com mais de duas pessoas). Também os direitos previstos em outros textos legais, como no Código Penal, estendíveis à união de fato não se aplicam à economia comum.[21]

Importante registrar, também, que pode haver conversão da economia comum em outro instituto e vice-versa. Por exemplo, dois amigos resolvem dividir uma casa para morada e, posteriormente, vêm a desenvolver um relacionamento sexual, hipótese em que restará caracterizada a união de fato.

O contrário também pode ocorrer, ou seja, a união estável poder ser transformada em economia comum. Por exemplo, no caso de haver separação de cama dos companheiros e eles permanecerem coabitando na mesma casa, dividindo as despesas e em regime de entreajuda, seja em função dos filhos, seja porque um dos dois não tem para onde ir. Sendo possível, portanto, a conversão de um instituto em outro, e vive-versa.

Feita essas considerações, e guardadas as devidas proporções, não há óbice para que as pessoas que convivem em economia comum duradoura, formada pelo elemento afetivo, sejam enquadradas como entidade familiar, para poderem receber a proteção estatal destinada à família. Afinal, o núcleo onde convivem, diariamente, é justamente o lugar onde realizam o seu projeto de vida e de felicidade, função atual da família.

Some-se a isso que um Estado que tem suas bases fincadas no princípio democrático de direito tem o dever de respeitar a diversidade do modo de vida das pessoas que nele habitam.

Nessa linha, pode-se entender que o instituto da economia comum constitui um tipo especial de família, no qual as pessoas, sendo parentes ou não, possuem morada comum, de modo duradouro, partilhando despesas como alimentação, limpeza, higiene, bem assim os afazeres domésticos, ou outros de ordem pessoal, sem implicar em divisão de cama, apesar de não haver esse impedimento.

1.1.1.  Requisitos

O legislador português atribuiu alguns critérios objetivos para caracterizar essa modalidade de economia e/ou de família, quais sejam: 1) vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos; 2) maioridade: ter pelo menos um dos conviventes mais de dezoito anos e 3) haver vivência por prazo superior a dois.[22]

1.1.2. Vivência em comum de entreajuda ou de partilha de recursos (divisão de casa e mesa)

O requisito da convivência em comum, previsto no artigo 2º da Lei 06/2001, de 11 de maio, significa que as pessoas devam residir na mesma casa, suportando, em conjunto, as despesas de habitação e alimentação (partilha de recursos), que pode ocorrer não necessariamente com recursos financeiros por ambas as partes, podendo uma delas contribuir apenas com serviços, por exemplo, cuidar da casa (desde que não caracterize o vínculo de emprego doméstico), e, também, desenvolvendo uma relação de entreajuda, contribuindo ambas com apoio psicológico, solidariedade, afeto, companheirismo.

O artigo citado, cuja redação ora se transcreve, exige que na economia comum haja a (1) comunhão de mesa e habitação e (2) a vivência em comum de entreajuda ou a partilha de recursos, in verbis:

Artigo 2º, nº 1 - Entende-se por economia comum a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos.[23]

Contudo, concordamos com França Pitão ao criticar a redação da referida lei, acusando-a de trazer redundância nas expressões “comunhão de mesa e habitação” e “vivência em comum de entreajuda ou de partilha de recursos”, pois desnecessária a expressão “vivência em comum” da parte ‘b’ do dispositivo legal, uma vez que a primeira expressão já pressupõe a outra. Em palavras de Pitão:

De facto, o preceito começa por considerar que a economia comum é a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação. Tal significa, obviamente, que as pessoas em causa têm de manter entre si uma vivência comum, sob pena de se destruir aquele conceito. Assim, não se entende a necessidade de o legislador reafirmar a vivência comum, quando é certo que se impõe como princípio que vivem em comunhão de mesa e habitação.[24]

No entanto, o legislador quis reforçar o requisito em apreço, significando, como dito acima, “que as pessoas devam residir na mesma casa, suportando, em conjunto, as despesas de habitação e alimentação (partilha de recursos), desenvolvendo também uma relação de ‘entreajuda’, contribuindo ambas com apoio psicológico, solidariedade, afeto, companheirismo.”[25]

1.1.3. Maioridade (maior de 18 anos)

A maioridade é um dos requisitos para a caracterização da união em economia comum, cuja previsão está no artigo 2º, 2, da Lei nº 6/2001.

A lei dispõe que todas as pessoas que vivam nessas condições são protegidas “desde que pelo menos uma delas seja maior de idade”,[26] leia-se, maior de 18 anos, que é a maioridade reconhecida no direito português (artigo 130º, CCpt).

Há quem defenda que essa maioridade seja necessária, a fim de que haja um responsável pela família, inclusive monetariamente, no entanto, há controvérsias, vez que a lei foi feita com o intuito de proteção, para conceder direitos a esse agrupamento social e, em havendo restrição de idade, há contradição com a ratio legis, além de violar a Constituição portuguesa, que no artigo 13, apregoa a igualdade de direitos para todos os cidadãos.

Nesse sentido, a melhor solução parece ser a de se fazer uma interpretação conforme a constituição, superando-se essa exigência pelos institutos protecionistas do menor, adequados a cada caso, como a assistência, a representação legal, a emancipação, de modo a permitir o gozo do direito pelo menor, quando possível (por exemplo, o menor do nº 2 do artigo 1093º do CCpt). Comunga desse pensamento, o jurista português França Pitão.[27]

No Brasil, o menor emancipado pode praticar todos os atos da vida civil, e o menor que trabalha (artigo 7º, XXXIII, da CLT), tanto por contrato de trabalho (jovens entre 16 a 18 anos) quanto por contrato de aprendizagem (a partir de 14 anos) pode usufruir de todos os direitos laborais, e, por outro lado, também é obrigado a declarar renda perante o fisco.

Os menores absolutamente incapazes são apenas aqueles que têm 16 anos incompletos. Aqueles entre 16 e 18 são relativamente capazes, podem, assistidos, praticar alguns atos da vida civil (artigos 4º e 5º, do CC/br), portanto, mutatis mutandis, para esses menores não há incompatibilidade com o gozo dos direitos previstos para quem convive em regime de economia comum, os que trabalham, por exemplo, podem, perfeitamente, fazer uso do gozo de férias, conjuntamente com seu convivente, como também fazer declaração conjunta de imposto renda.

E igualmente, não se vê óbice para que o menor usufrua os direitos de moradia e de arrendamento, em caso de morte do proprietário ou do locatário emancipado, pois poderá lançar mão dos institutos de representação e de assistência citados.

A análise deve ser feita no caso concreto, observando-se a idade exigida para o exercício de cada direito (artigo 124, CC/pt).

1.1.4. Tempo mínimo (mais de dois anos)

Para a configuração da economia comum, o legislador português exige que as pessoas vivam em relação de entreajuda ou partilha de recursos por mais de dois anos (artigo 1º, n. 1, da Lei nº 6/2001).[28]

Com acerto, um tempo mínimo se faz necessário para que se verifique a estabilidade da relação e assim sejam evitados oportunismos ou mau uso da lei no usufruto dos direitos.[29]

Contudo, em algumas situações há controvérsia quanto a esse prazo de dois anos, por exemplo, na situação de arrendamento para habitação (no Brasil, aluguel), que há previsão no Código Civil português de apenas um ano, veja-se:

Artigo 1106.º, CC, Transmissão por morte

1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva:

b) Pessoa que com ele residisse em economia comum e há mais de um ano.[30] (destaque posterior)

Têm-se aqui duas normas com conteúdos diferentes regulando a mesma matéria, formando um conflito, que, na espécie, seria resolvido pelo critério da especialidade, de modo a prevalecer a norma da lei da economia comum, por ser especial. No entanto, a própria Lei nº 6/2001, ressalva que quando houver regramento mais favorável, que seja aplicado esse normativo, veja-se:

N 2, artigo 1º, Lei nº 06/2001, de 11 de maio. O disposto na presente lei não prejudica a aplicação de qualquer disposição legal ou regulamento em vigor tendente à protecção jurídica de situações de união de facto, nem de qualquer outra legislação especial aplicável.[31]

Diante dessa situação, há quem defenda que para o usufruto do arrendamento pelo convivente sobrevivo, o prazo pode ser de um, dois ou três anos.

Os defensores da corrente do prazo de três anos dizem que se devem somar ambos os prazos (1 + 2 = 3 anos) porque o prazo de dois anos se destina à caracterização do instituto, sendo que antes de dois anos, não há que se falar em economia comum.[32] Há, também, quem defenda o prazo de dois anos (previsto na norma da economia comum) justificando a incidência do critério da especialidade.[33]

Todavia, a interpretação que melhor se coaduna com a mens legis é a aplicação do prazo de um ano, assinalado no Código Civil, justamente porque a Lei nº 06/2001, de 11 de maio de 2001, ressalva, expressamente, a prevalência de norma mais favorável.

É o entendimento de Jorge Duarte Pinheiro, para quem “o desvio quanto à duração da relação (um ano, em vez de dois anos) é o único que se observa em matéria de requisitos gerais de protecção da convivência em comum.” [34]

Assim, podemos concluir que para as pessoas contempladas no artigo 1106 do  Código Civil português (arrendamento para habitação), o prazo para configurar a economia comum deve ser de um ano, sendo de dois anos para os demais casos.

1.1.5. Deveres das partes

A convivência em economia comum, como se pode constatar, não visa à constituição de família no sentido tradicional (relação sexual e/ou procriação), pois não exige relacionamento sexual dos conviventes. Tanto é assim que a lei ressalva, no artigo 2º, 2, que o número de pessoas não está limitado a dois, comportando uma coletividade de pessoas, deixando claro o objetivo de não visar à união sexual.

Desse modo, não se vislumbram deveres especiais nesta relação, tão somente aqueles presentes em qualquer relação harmoniosa da vida humana como respeito, consideração, lealdade.

1.1.6.  Prova do vínculo da vida em comum

Questão de difícil verificação é a prova do vínculo da vida em comum. Há que se valer dos mesmos indícios que são necessários para a prova da união de facto (artigo 2º, Lei nº 7/2001), no que couber, como por exemplo, prova de mesmo domicílio, de encargos domésticos, existência de sociedade ou comunhão nos atos da vida civil, prova testemunhal, enfim, qualquer documento que possa levar à convicção do fato a comprovar. A seguir, o dispositivo:

Artigo 2.º-A (inserido pela Lei nº 23/2010).

Prova da união de facto

1 - Na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível.

2 - No caso de se provar a união de facto por declaração emitida pela junta de freguesia competente, o documento deve ser acompanhado de declaração de ambos os membros da união de facto, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos, e de certidões de cópia integral do registro de nascimento de cada um deles.

3 - Caso a união de facto se tenha dissolvido por vontade de um ou de ambos os membros, aplica-se o disposto no número anterior, com as necessárias adaptações, devendo a declaração sob compromisso de honra mencionar quando cessou a união de facto; se um dos membros da união dissolvida não se dispuser a subscrever a declaração conjunta da existência pretérita da união de facto, o interessado deve apresentar declaração singular.

4 - No caso de morte de um dos membros da união de facto, a declaração emitida pela junta de freguesia atesta que o interessado residia há mais de dois anos com o falecido, à data do falecimento, e deve ser acompanhada de declaração do interessado, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos, à mesma data, de certidão de cópia integral do registro de nascimento do interessado e de certidão do óbito do falecido.[35]

1.1.7.  Prova da dissolução

A dissolução pode ocorrer por diversas causas, desde a vontade ou o falecimento de uma das partes, a exemplo do que também ocorre com a união de facto, veja-se a dicção legal atinente à hipótese.

Artigo 8.º, da Lei nº 07/2001.

Dissolução da união de facto

1 - A união de facto dissolve-se:

a) Com o falecimento de um dos membros;

b) Por vontade de um dos seus membros;[36]

A prova da dissolução da economia comum por uma das partes pode não ser muito fácil, quando não se der por declaração de ambas, mas, possível, diante do caso concreto.

1.1.8 Exceções legais

A lei em comento traz um rol de hipóteses em que, independentemente do lapso de convivência ser superior a dois anos (artigo 3º), não configura economia comum, quais sejam:

a) existência de contrato de sublocação e hospedagem entre os moradores;

b) prestação de atividade laboral para com uma das pessoas com quem viva em economia comum;

c) quando a convivência está relacionada com a prossecução de finalidades transitórias e

d) coação física ou psicológica ou atentatória da autodeterminação individual. [37]

A ressalva do legislador é pertinente. De fato, em tais hipóteses, haveria um desvirtuamento do instituto. Nos dois primeiros casos, há um fim comercial e uma prestação de serviço mediante pagamento, respectivamente. No último, é nítido caso de vício de vontade. Não pode ser chancelada pelo ordenamento jurídico convivência de pessoas mediante coação de qualquer natureza.

Na terceira hipótese, comporta uma observação, pois trata de um enunciado normativo vago, a ser preenchido no caso concreto, de acordo com as circunstâncias que o envolvam.

Diante da ausência de um regulamento da lei, enumerando algumas situações de exclusão, há que se tomar cuidado para não se excluírem da proteção legal, hipóteses que o legislador não desejou fossem excluídas e que, pelo seu contexto social, não comportaria exclusão, como, por exemplo, os casos de estudantes, cujos períodos de duração dos cursos são provisórios e previamente definidos.[38]

Sendo assim, a análise dessa situação deve ser feita apenas no caso concreto, mediante ponderação de valores, e nos limites dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

1.1.9.  Evolução histórica                                                                                                                                                                                  

Antes da Lei nº 6/2001, não havia exigência de todos esses requisitos para se configurar a economia comum, bastava a comunhão de casa ou de alimentos para que se tivesse a convivência em apreço.

A ideia da proteção de pessoas que vivam em economia comum, como também a gênese desse termo surgiu em institutos diversos, a exemplo do Regulamento de Amparos da Lei do Serviço Militar (artigo 5º, Portaria 94/90 e Regulamento – Dec. Lei 463/88), hoje chamado de “Amparo de Família”, que descreve um rol de protegidos (cônjuges ou ex-cônjuges, ascendentes e descendentes, linha colateral e seus afins que vivam em economia comum).[39]

Também o Código Civil de Portugal, desde sua redação original, traz um rol de pessoas que vivem em economia comum com o arrendatário (arrendamento para habitação). Atualmente, esse rol (Nº 2, do artigo 1093) compreende:

A pessoa que com ele viva em união de facto, os seus parentes ou afins na linha recta ou até 3.° grau na linha colateral, ainda que paguem alguma retribuição, e bem assim as pessoas relativamente às quais, por força da lei ou de negócio jurídico que não respeite à habitação, haja obrigação de convivência ou de alimentos.[40]

Ressalte-se que apesar de constar no número 1 desse artigo, que podem residir no imóvel arrendado “todas as pessoas que vivam em economia comum”, no nº 2, a norma especifica quem são essas pessoas (artigo 1093, alterado pela Lei 6/2006).

Observe-se, por fim, que para os fins previstos nos citados institutos, as pessoas que vivem em economia comum não precisam preencher todos os requisitos da Lei nº 6/2001.

Jorge Pinheiro Duarte, trabalhando as definições de economia comum familiar e não familiar, traz uma situação de economia comum, por exemplo, que exige apenas o requisito da comunhão de casa e mesa, qual seja, o da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/1999), quando a convivência comum for formada por parentes.[41] Nesse sentido, dispõe o artigo 46, nº 2 da mencionada lei:

Artigo 46 - Definição e pressupostos

1- O acolhimento familiar consiste na atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitadas para o efeito, proporcionando a sua integração em meio familiar e a prestação de cuidados adequados às suas necessidades e bem-estar e a educação necessária ao seu desenvolvimento integral.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se que constituem uma família duas pessoas casadas entre si ou que vivam uma com a outra há mais de dois anos em união de facto ou parentes que vivam em comunhão de mesa e habitação.  (destaque posterior)[42]

Com efeito, a Lei de Proteção das Pessoas que Vivem em Economia Comum (Lei nº 6/2001) veio aperfeiçoar a proteção que já era destinada às pessoas que conviviam em tais situações. Por outro lado, quando outras leis dispuserem de modo mais benéfico, este será o regramento a ser aplicado, por força do próprio instituto da EC (artigo 1, nº 2, Lei nº 6/2001), como é o caso do prazo de um ano do Código Civil enquanto a LC prescreve dois anos para tal caracterização.

1.2. Família anaparental

O agrupamento formado com animus de constituir família, animus duradouro, sem termo final antecipadamente previsto, independentemente de seus componentes serem ligados por laços familiares enquadra-se ao conceito atual de família, “de núcleo de convivência, unido por laços afetivos estáveis, que costumam compartilhar o mesmo teto” [43], sendo capaz de promover a dignidade das pessoas conviventes. Nesse contexto, está inserida a família anaparental, a seguir examinada.

1.2.1. Definição

A família anaparental, termo criado por Sérgio Resende de Barros, decorre do prefixo "ana", de origem grega, indicando "falta", "privação", caracteriza a família sem a presença dos pais. Nas palavras do autor:

São as famílias que não mais contam com os pais, as quais por isso eu chamo famílias anaparentais, designação bastante apropriada, pois “ana” é prefixo de origem grega indicativo de “falta”, “privação”, como em “anarquia”, termo que significa falta de governo.[44]

Constitui-se pela convivência, na mesma casa, de parentes sem um núcleo familiar (pais), como também por pessoas não ligadas por laços de parentesco, independente de sexo, com o sentimento de que estão convivendo em família, havendo assistência mútua, material e emocional.

Em palavras de Maria Berenice Dias:

A convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade de propósito, impõe o reconhecimento da existência de entidade familiar batizada com o nome de família parental ou anaparental. [45]

Hugo Sá assinala que a família anaparental é um formato familiar capaz de adquirir as mais diversas configurações, talvez comporte algumas concepções citadas, como as famílias recompostas, reconstruídas, recombinadas, mosaicos, pluriparentais, binucleares e ensambladas. Cita como exemplos próprios de família anaparental, “a convivência longa e duradoura entre dois irmãos que foram abandonados pelos pais ou que estes faleceram, ou até mesmo duas amigas idosas que decidem viver o resto das suas vidas juntas, compartilhando suas aposentadorias”.[46]

Tal qual a economia comum em Portugal, esse instituto também não exige os papeis de pais e nem a finalidade de procriação, aliás, se caracteriza justamente pela ausência dos pais na sua constituição (ana = ausência). E também pode haver “a convivência de pessoas do mesmo sexo ou não, que sem conotação sexual, vivem como se família fossem.[47]

1.2.2. Reconhecimento no direito brasileiro

A família anaparental não está positivada no direito brasileiro, mas a doutrina e os tribunais vêm enfrentando a questão e vêm dando tratamento de entidade familiar às pessoas que vivem nessa situação. O Superior Tribunal de Justiça, numa decisão histórica, consagrou, sem nenhuma dúvida, a existência dessa família especial. Na ocasião, assinalou que “o primado da família socioafetiva tem que romper os ainda existentes liames que atrelam o grupo familiar a uma diversidade de gênero e fins reprodutivos, não em um processo de extrusão, mas sim de evolução, onde as novas situações se acomodam ao lado de tantas outras, já existentes, como possibilidades de grupos familiares.”[48] Eis a ementa da decisão:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ADOÇÃO PÓSTUMA. VALIDADE. ADOÇÃO CONJUNTA. PRESSUPOSTOS. FAMÍLIA ANAPARENTAL. POSSIBILIDADE. Ação anulatória de adoção post  mortem, ajuizada pela União, que tem por escopo principal sustar o pagamento de benefícios previdenciários ao adotado - maior interdito -, na qual aponta a inviabilidade da adoção post  mortem sem a demonstração cabal de que o de cujus desejava adotar e, também, a impossibilidade de ser deferido pedido de adoção conjunta a dois irmãos. A redação do art. 42, § 5º, da Lei 8.069/90 - ECA -, renumerado como§ 6º pela Lei 12.010/2009, que é um dos dispositivos de lei tidos como violados no recurso especial, alberga a possibilidade de se ocorrer a adoção póstuma na hipótese de óbito do adotante, no curso do procedimento de adoção, e a constatação de que este manifestou,em vida, de forma inequívoca, seu desejo de adotar.Para as adoções post mortem, vigem, como comprovação da inequívoca vontade do de cujus em adotar, as mesmas regras que comprovam afiliação socioafetiva: o tratamento do menor como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição. O art. 42, § 2º, do ECA, que trata da adoção conjunta, buscou assegurar ao adotando a inserção em um núcleo familiar no qual pudesse desenvolver relações de afeto, aprender e apreender valores sociais, receber e dar amparo nas horas de dificuldades, entre outras necessidades materiais e imateriais supridas pela família que, nas suas diversas acepções, ainda constitui a base de nossa sociedade. A existência de núcleo familiar estável e a consequente rede de proteção social que podem gerar para o adotando, são os fins colimados pela norma e, sob esse prisma, o conceito de núcleo familiar estável não pode ficar restrito às fórmulas clássicas de família, mas pode, e deve, ser ampliado para abarcar uma noção plena de família, apreendida nas suas bases sociológicas. Restringindo a lei, porém, a adoção conjunta aos que, casados civilmente ou que mantenham união estável, comprovem estabilidade na família, incorre em manifesto descompasso com o fim perseguido pela própria norma, ficando teleologicamente órfã. Fato que ofende o senso comum e reclama atuação do interprete para flexibilizá-la e adequá-la às transformações sociais que dão vulto ao anacronismo do texto de lei. O primado da família socioafetiva tem que romper os ainda existentes liames que atrelam o grupo familiar a uma diversidade de gênero e fins reprodutivos, não em um processo de extrusão, mas sim de evolução, onde as novas situações se acomodam ao lado de tantas outras, já existentes, como possibilidades de grupos familiares. O fim expressamente assentado pelo texto legal - colocação do adotando em família estável - foi plenamente cumprido, pois os irmãos, que viveram sob o mesmo teto, até o óbito de um deles, agiam como família que eram, tanto entre si, como para o então infante, e naquele grupo familiar o adotado se deparou com relações de afeto, construiu - nos limites de suas possibilidades - seus valores sociais, teve amparo nas horas de necessidade físicas e emocionais, em suma, encontrou naqueles que o adotaram, a referência necessária para crescer, desenvolver-se e inserir-se no grupo social que hoje faz parte. Nessa senda, a chamada família anaparental - sem a presença de um ascendente -, quando constatado os vínculos subjetivos que remetem à família, merece o reconhecimento e igual status daqueles grupos familiares descritos no art. 42, § 2, do ECA. Recurso não provido. (STJ - REsp: 1217415 RS 2010/0184476-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 19/06/2012, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/06/2012)[49]

O mesmo STJ já reconheceu, também como entidade familiar, a comunidade constituída por irmãos solteiros que dividiam a mesma casa, nos moldes de família, protegendo o bem da morada comum. Veja-se:

EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIRO. LEI Nº 8.009/90. IMPENHORABILIDADE. MORADIA DA FAMÍLIA. IRMÃOS SOLTEIROS. Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza de proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei nº 8.009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles.[50]

EXECUÇÃO. BEM DE FAMÍLIA. Ao imóvel que serve de morada às embargantes, irmãs e solteiras, estende-se a impenhorabilidade de que trata a lei 8.009/90. (STJ RESP 57606/MG, 1994/0037157-8, REL. MINISTRO RELATOR MINISTRO FONTES DE ALENCAR, QUARTA TURMA, JULGADO EM 11 DE ABRIL DE 1995, PUBLICADO DJ 15/05/1995 P. 13410)[51]

Como diz Paulo Lobo, sem embargo do fim proposto da impenhorabilidade, as decisões em apreço cuidam de entidade familiar que se insere totalmente no conceito de família do artigo 226, pois dotada dos requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade,[52] estando, portanto, a família anaparental, enquadrada nessa configuração, que ultrapassando os limites da previsão jurídica tradicional (casamento, união estável e família monoparental) abarca “todo e qualquer agrupamento de pessoas onde permeie o elemento affectio familiae”.[53]

Com efeito, a nova concepção de família alcança tanto a família anaparental brasileira como a convivência em economia doméstica portuguesa, não havendo óbice que possa impedir a proteção desses grupos sociais, ao contrário, será repartido com o Estado o ônus de proteção das pessoas que vivem nessas moradas coletivas.

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Sobre a autora
Antonia Tania Maria de Castro Silva

Servidora pública federal. Mestranda em Ciências Jurídicas na Universidade Autônoma de Lisboa – UAL. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UCAM. Especialista em Processo Civil pela UNISUL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Antonia Tania Maria Castro. Tutela jurídica das pessoas que vivem em economia comum ou em família anaparental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5434, 18 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66292. Acesso em: 8 nov. 2024.

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