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Tutela jurídica das pessoas que vivem em economia comum ou em família anaparental

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Agenda 18/05/2018 às 10:15

3. EFICÁCIA DAS MEDIDAS DE PROTEÇÃO À ECONOMIA COMUM E AMPLIAÇÃO DO ROL, EM PORTUGAL, E CONSIDERAÇÕES ACERCA DA NORMATIZAÇÃO DA FAMÍLIA ANAPARENTAL, NO BRASIL

Mostra-se, aqui, a possibilidade de eficácia imediata dos direitos concedidos pela Lei nº 06/2001, de Portugal, às pessoas que vivem em economia comum, bem como a ampliação do respectivo rol, por meio da técnica de completude do direito, sob duas vertentes: A primeira, como forma de integração do direito, através do “diálogo das fontes” ou aplicação analógica. A segunda, invocando-se a teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais, sem necessidade de uma lei vindoura para tal mister.

No que concerne à família anaparental, será demonstrada a existência de projetos de lei para instituição do “Estatuto das Famílias” onde está sendo contemplado tal instituto, porém, de modo insatisfatório, razão pela qual será sugerida a edição de instrumento específico e urgente para a tutela das pessoas que vivem em família anaparental no País.

3.1. Imediata implementação dos direitos concedidos pela lei 6/2001, em Portugal

Em Portugal, apesar da lei da economia comum ter sido editada em 2001, até então padece de regulamentação, impossibilitando que os direitos prescritos sejam implementados, o que não se justifica, pois decorridos mais de dez anos de vigência da norma.

Apenas na hipótese de arrendamento para moradia, o direito vem sendo pleiteado, provavelmente, porque o Código Civil português (artigo 1106) e a Lei do Arrendamento Urbano (Lei nº 6/2006, artigo 85), há algum tempo, vêm disciplinando a questão. 

Contudo, diante da omissão legislativa específica, a questão pode ser enfrentada sob duas vertentes. A primeira, como forma de integração do direito, por meio do que a doutrina chama de “diálogo das fontes” ou aplicação analógica.

O “Diálogo das Fontes” ou heterointegração de institutos é um fenômeno que decorre da moderna interpretação das normas jurídicas. Significa que nenhum sistema jurídico encontra-se isolado dos demais sistemas, pois as fontes legais convergem entre si, na mesma hierarquia, em respeito ao princípio da unidade do ordenamento jurídico.[83] Segundo essa interpretação, o aplicador do direito está autorizado a fazer aplicação direta ou indireta de qualquer fonte (hermenêutica dialógica) – desde que mais adequada à hipótese - fazendo uma interpretação sistemática, inspirada nos vetores axiológicos impregnados nas normas do sistema jurídico.[84] Podendo ser utilizado em qualquer situação de lacuna jurídica, tanto normativa, quanto ontológica ou axiológica.

Nesse sentido, completa Godinho que não se encontrando isolados no ordenamento jurídico os sistemas, a aplicação de uma norma reclama um permanente diálogo com as demais, inclusive com os princípios gerais do Direito, que têm força normativa e exercem as funções informativa, interpretativa e integrativa na aplicação das leis.[85]

Isso se coaduna com a idéia do non-liquet, sistema segundo o qual o juiz não pode se eximir de julgar o caso a si submetido quando está diante de uma lacuna jurídica.

No ordenamento jurídico brasileiro, esta previsão se encontra no artigo 140 do Código de Processo Civil, que preceitua: “o juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico”; como também no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, que complementa: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Sobre o tema, valem menção, por pertinentes, às lições de Norberto Bobbio sobre o dogma da completude:

O dogma da completude, isto é, o princípio de que o ordenamento jurídico seja completo para fornecer ao juiz, em cada caso, uma solução sem recorrer à eqüidade, foi dominante, e o é em parte até agora, na teoria jurídica européia de origem romana. Por alguns é considerado um dos aspectos salientes do positivismo jurídico. [...] Concluindo, a completude é uma condição necessária para os ordenamentos em que valem estas duas regras: 1) o juiz é obrigado a julgar todas as controvérsias que se apresentarem ao seu exame; 2) deve julgá-las com base em uma norma pertencente ao sistema.[86]

Com efeito, diante da ausência de regra específica que solucione o problema, o aplicador do direito pode se utilizar dos métodos de integração citados, como a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

No presente caso, pode ser resolvida a questão por meio da analogia ou ‘diálogo das fontes’, podendo-se efetivar os direitos prescritos pela Lei nº 6/2001, com base na Lei dos conviventes da união de facto ou mesmo da família matrimonial, uma vez que ambos os conviventes possuem similitude de condições de modo de vida.

Some-se a isso que a Lei nº 7/2001, define a união de facto como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges”, equiparando os conviventes à condição das pessoas casadas (artigo1º, Nº 2, Lei 7/2001), e ao conceder os respectivos direitos, dispôs no sentido de serem gozados nas condições em que as pessoas casadas gozariam.

Desse modo, perfeitamente possível a equiparação dessa condição (pessoas casadas), para fins de usufruto dos direitos, por analogia, também para as pessoas que vivam em economia comum, a fim de serem implementados, de imediato, os direitos concedidos pela Lei nº 06/2001, em seu artigo 4º.

No que toca aos direitos laborais e fiscais, por exemplo, basta que os direitos possam ser exercidos pelas pessoas casadas para que sejam exigidos pelos membros da economia doméstica, com as adaptações devidas, visto que regulamentados para tal seguimento.  E no que respeita aos direitos inerentes ao arrendamento urbano e à proteção da morada comum, os dispositivos da Lei nº 6/2001, com o apoio do artigo 1106 do CC, são suficientes ao respectivo implemento. 

Ademais, tem-se a segunda vertente de aplicação dos direitos em apreço, qual seja, a teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais, dada a natureza dos direitos em voga, que, em boa parte, são direitos fundamentais, os quais possuem eficácia imediata, por força do comando constitucional hodierno (neoconstitucionalismo), podendo ser efetivados, imediatamente, sem necessidade de uma lei vindoura para tal mister. Vejamos o que diz o renomado jurista Gomes Canotilho, a esse respeito:

Os direitos, liberdades e garantias não estão, prima facie, dependentes de lei concretizadora. Em termos jurídico-dogmáticos, os direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis porque: (1) concebem-se e valem constitucionalmente como norma concretamente definidora de posições jurídicas (norma normata) e não apenas como norma de produção de outras normas jurídicas (norma normans); (2) prima facie, isto é, numa primeira aproximação, aplicam-se sem necessidade de interposição conformadora de outras entidades, designadamente do legislador (inter positio legislatoris); (3) também em princípio, constituem direito actual e eficaz e não apenas directivas jurídicas de aplicabilidade futura.[87]

Também pugnando pela implementação imediata dos direitos previstos na Lei nº 6/2001, é o Parecer da Provedoria de Justiça de Lisboa (Parecer nº 011005276, ref. Ao Processo R-768/11, A2) destinado à Diretora dos Serviços de IRS, para a concessão dos direitos nela previstos, grafando, expressamente, a desnecessidade de regulamentação de alguns artigos da mencionada lei. Veja-se:

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2. Solicitado, pela reclamante, aquele esclarecimento à Direcção de IRS, foi-lhe respondido, conforme cópia que se anexa: “quanto a ser considerado o 2º titular da sua declaração de rendimento [ a mãe da reclamante] informa-se que não poderá ser aplicado o regime de economia comum enquanto não for regulamentada a Lei nº 6/2001 de MAIO, como impõe o seu artigo 8º.

3. Não compreende a Provedoria de Justiça as razões invocadas, uma vez que, pelo menos em matéria de fiscalidade, o diploma não pare carecer de regulamento executivo, o qual seria apenas necessário na medida em que a vontade do legislador da Lei nº 6/2011 “fosse relativamente obscura ou lacunosa” e que como tal, se impusesse um regulamento de execução que contivesse “as providências necessárias para assegurar a fidelidade, ou seja, a conformidade à vontade do legislador” – o que está longe de ser o caso.

4. fixemo-nos, antes de mais, nos termos da disposição constante do artigo 8º daquele diploma legal – precisamente o invocado por essa direção de serviços – o qual é bastante explícito no sentido de que o respectivo diploma legal só será regulamentado relativamente às normas que de tal necessitem.

6. Estabelecem os nºs 1 e 2 do artigo 2º daquele diploma legal: “Entende-se por economia comum a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos”; esta norma não nos parece padecer de qualquer omissão na sua estatuição sendo perceptíveis os seus objetivos: os de que ambos os sujeito passivos vivam em comunhão de mesa e habitação, que essa situação dure há mais de dois anos e que se encontre estabelecida uma vivência em comum. E adianta-se de imediato no que se consubstancia o conceito de economia comum: entreajuda e partilha de recursos.

7. Importante para o legislador será também que nenhum dos sujeitos passivos se encontre abrangido por qualquer das excepções constantes do artigo 3º do mesmo diploma legal, o que funciona também (automaticamente) como limite à eficácia da situação economia comum.

9. A alínea c) da norma constante desse artigo 3º, por seu turno, não se agigura, também ela, susceptível de apresentar qualquer óbice à aplicação directa deste diploma legal: efectivamene, como bem faz notar José António da França Pitão, a lei exige desde logo que a situação de economia comum dure há mais de 2 anos (subentendendo-se obviamente que de forma ininterrupta) devendo, por conseguinte, haver a intenção dos intervenientes de criarem entre si uma economia comum. A ser assim, aceitará V. Exª que também não exista aqui qualquer ponto que se imponha regulamentar já que a lei se basta com a “intenção”.

10. O artigo 4º do aludido regime legal, por seu lado, é expresso no sentido de que “à pessoas em situação de economia comum são atribuídos os seguintes direitos: (...) c) aplicação de regime de imposto de rendimento sobre as pessoas singulares nas mesmas condições dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens nos termos do disposto no artigo 7º. Trata-se de uma norma meramente remissiva cuja hipótese de regulamentação está afastada à partida, como V. Exª certamente também concordará.

11. O artigo 7º do diploma em crise dispõe: “A situação de duas pessoas vivendo em regime de economia comum é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto no artigo14º - A do Código do IRS, aprovado pelo Decreto – Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro”. Colocando-se aqui a ressalva “com as devidas adaptações” poder-se-ia legitimamente questionar se, por ventura, estas não serão apenas de ordem semântica – substituição das palavras união de facto por economia comum – e, necessariamente, de substituição automática dos requisitos do regime da Lei nº 7/2001, pelo da Lei n.º 6/2001.

12. E facto é que tudo indica que sim: não vemos, na verdade, como é que a aplicação do actual artigo 14º do Código do IRS a uma situação de economia comum necessite, de normas “intermediárias” e, consequentemente, que ao falar de “carência de regulamentação” o legislador estivesse a referir-se a questões fiscais.

13. Com efeito, determina a disposição constante do actual artigo 14º do Código do IRS, sob a epígrafe “Uniões de facto”: “1 – As pessoas que vivendo em união de facto preencham os pressupostos constantes da lei respectiva, podem optar pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens. 2 – A aplicação do regime a que se refere o número anterior depende da identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação, bem como da assinatura, por ambos, da respectiva declaração de rendimentos. 3 – No caso de exercício da opção prevista no nº 1, é aplicável o disposto no nº 2 do artigo 13.º, sendo ambos os unidos de facto responsáveis pelo cumprimento das obrigações tributárias.[88]

Nessa quadra, basta que, no caso concreto, estejam preenchidos os requisitos estabelecidos pela LEC, quais sejam, identidade de domicílio com partilha de recurso e relação de entreajuda por mais de dois anos, para que os membros da economia comum possam usufruir os respectivos direitos.

3.2.Ampliação do rol dos direitos. Mecanismos

Como já restou demonstrado, a convivência de pessoas em economia comum pressupõe a existência dos mesmos requisitos de uma família tradicional, à exceção da relação sexual e/ou procriação. Assim, não há como negar que a economia comum seja digna de ser elevada a posição de entidade familiar, merecedora de proteção estatal, com o reconhecimento de todos os direitos inerentes às pessoas que integram à família tradicional, com suas devidas adaptações.

A Lei nº 6/2001, em Portugal, concedeu alguns direitos aos membros da economia comum, frise-se, os únicos direitos reconhecidos a este grupo social até o presente momento, já que dita lei contemplou aqueles dantes reconhecidos pelo Código Civil (artigo 1106) e pela antiga lei do Arrendamento Urbano (artigo 85). Cabe então uma pergunta, o rol do artigo 4º da lei em apreço é taxativo?

Se partirmos de uma interpretação restritiva, responderemos positivamente, já que esta lei visa, exclusivamente, à instituição do regime de proteção das pessoas que vivem em economia comum, definindo o instituto e concedendo direitos aos destinatários da norma.

Contudo, essa não é solução que melhor se apresenta no ordenamento jurídico diante dos princípios constitucionais reinantes, que, inclusive, foram citados alhures.

Com efeito, o rol do artigo 4º da Lei 6/2001 é meramente exemplificativo. Diante do caso concreto, por tudo que foi dito sobre completude do sistema jurídico, deverá o intérprete lançar mão de outros direitos próprios dos tipos de família existentes na sociedade, além daqueles contemplados pela Lei nº 6/2001, para estender à economia comum, com a chancela do ordenamento jurídico, quer por meio da analogia (diálogo das fontes), quer por aplicação direta, em razão de possuírem eficácia imediata.

A sugestão acima se amolda, por exemplo, ao caso do artigo 113° do Código Penal português, que trata dos titulares do direito de queixa, em que pessoas em união de facto, independentemente de sexo, podem constituir-se Assistente em Processo Penal em nome do parceiro falecido. Então, em tal situação, seria razoável que o membro da economia comum gozasse de igual direito. E, da mesma forma, poderia usufruir do direito de visitas a hospitais e a prisões, conforme é previsto para as pessoas que vivem em união de facto.

E do mesmo modo, podem ser concedidos aos membros da união comum, a depender do caso concreto, os direitos de sucessão, alimentos, adoção e direito real de habitação, mutatis mutandis, nos moldes em que o Brasil concede à família anaparental.

3.3. Considerações acerca da normatização da família anaparental

Apesar dessa realidade ser presente na sociedade contemporânea, não é prestigiada pelo legislador brasileiro, razão porque não existe uma legislação específica que regule a situação das pessoas que vivem em regime de economia comum/doméstica/familiar, gerando prejuízos de toda sorte (especialmente patrimoniais e sociais) às pessoas que formam essa nova modalidade de família.

Com o avanço do Poder Judiciário nas questões do Direito de Família no Brasil, vários projetos de leis foram protocolados no Congresso Nacional, em ambas as casas, com o intuito de regulamentar a matéria, em especial, os artigos 226 e 227 da Constituição Federal. Alguns refletindo a ideologia da corrente mais conservadora, defendendo, por exemplo, o casamento apenas entre “homem e mulher”, outros, porém, refletindo as mudanças ocorridas na sociedade, clamando por conformação do Direito de Família com os princípios constitucionais vigentes. A seguir, serão tecidas considerações acerca dos três projetos mais relevantes, ainda em tramitação no Congresso, que são os Projetos de Lei nº 2.285/2007 e 6.583/2013, em tramitação na Câmara dos Deputados, e o Projeto de Lei nº 470/2013, em tramitação no Senado Federal.

3.3.1. Projeto de Lei nº 2.285/2007 - Estatuto “das Famílias”  

O Projeto de Lei nº 2.285/2007 foi apresentado na Câmara dos Deputados no dia 25 de outubro de 2007. Dispõe sobre o Estatuto das Famílias, usando a expressão no plural, para contemplar as novas configurações familiares, que deixaram de ser singular e passaram a ser plural. Define família como “toda comunhão de vida instituída com a finalidade de convivência familiar, em qualquer de suas modalidades”. Vale destaque a dicção dos artigos 1º a 5º, in verbis:

DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

Artigo 1.º Este Estatuto regula os direitos e deveres no âmbito das entidades familiares.

Artigo 2.º O direito à família é direito fundamental de todos.

Artigo 3.º É protegida como família toda comunhão de vida instituída com a finalidade de convivência familiar, em qualquer de suas modalidades.

Artigo 4.° Os componentes da entidade familiar devem ser respeitados em sua integral dignidade pela família, pela sociedade e pelo Estado.

Artigo 5.º Constituem princípios fundamentais para a interpretação e aplicação deste Estatuto a dignidade da pessoa humana, a solidariedade familiar, a igualdade de gêneros, de filhos e das entidades familiares, a convivência familiar, o melhor interesse da criança e do adolescente e a afetividade.[89] (destaque posterior)

O projeto de lei propõe a existência de um estatuto autônomo, desmembrado do Código Civil, incluindo as normas de direito material e de direito processual que dispõem sobre família. É um projeto audacioso que reflete a ideologia do século atual, das mudanças pelas quais vem passando a sociedade e, consequentemente, a família, trazendo inclusive novos conceitos de família, e estendendo, ainda que implicitamente, direitos inerentes à família tradicional.  

Em palavras do presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família, Rodrigo da Cunha, um dos autores do mencionado Projeto:

Esse projeto é produto da reflexão de dez anos de existência do IBDFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família), que veio instalar novos paradigmas jurídicos para a organização das famílias. Ele foi pensado, escrito e formatado por uma comunidade jurídica de quase 4 mil associados, entre os quais juristas, advogados, magistrados, membros do Ministério Público, professores de direito, psicólogos, psicanalistas e assistentes sociais.

O projeto de lei 2.285/07 representa o pensamento mais legítimo e contemporâneo do direito de família. É um projeto revolucionário. Certamente, o que está ali expressado não é unanimidade, mas representa e traduz o pensamento não só de uma comunidade jurídica, mas, principalmente, da realidade brasileira atual.[90]

Contudo, tendo em vista se tratar de um instrumento revolucionário, como o próprio autor mencionou, foi alvo de acirrados debates no cenário nacional, motivando o ingresso de projeto em sentido contrário, também no âmbito da Câmara dos Deputados, o Projeto nº 6.583/2013, a seguir descrito.

3.3.2.  Projeto de Lei nº 6.583/2013 - Estatuto “da Família”

O Projeto de Lei nº 6.583/2013, denominado de Estatuto da Família, no singular, foi apresentado na Câmara dos Deputados, no dia 16 de outubro de 2013, em reação ao projeto do IBDFam. O projeto em questão reflete o pensamento da corrente tradicional, defendendo, por exemplo, a entidade familiar apenas como a união entre um homem e uma mulher em razão do casamento, da união estável ou da família monoparental. Veja-se: 

Artigo 2º Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.[91]

De início, vislumbram-se duas inconstitucionalidades, a primeira, na expressão “entre um homem e uma mulher” do mencionado texto, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal já declarou a constitucionalidade da união de pessoas do mesmo sexo, por ocasião do julgamento da Ação Declaratória de Preceito Fundamental – ADPF nº 132/RJ, desde 05 de maio de 2011,[92] já havendo inclusive, como dito alhures, resolução do Conselho Nacional de Justiça proibindo as autoridades competentes de se recusarem à realização de casamento entre pessoas do mesmo.  Portanto, superada a discussão a esse respeito.

A segunda inconstitucionalidade está na restrição das hipóteses de entidades familiares citadas (matrimonial, união estável e monoparental), deixando de fora as demais, como as famílias mosaicos, recompostas e anaparentais, por exemplo, que, mesmo implicitamente, foram contempladas pela Constituição Federal.

Como frisa Flávio Tarturce, a Constituição Federal Brasileira de 1988 é inclusiva, e não exclusiva, “não podendo uma lei infraconstitucional limitar o texto superior na concessão de direitos civis sob pena de flagrante inconstitucionalidade”.[93]

Contudo, mesmo recheado de inconstitucionalidades e indo na contramão do direito contemporâneo, mencionado projeto estava ganhando a simpatia dos parlamentares, chegando a ser aprovado na Comissão Especial de Justiça da Assembleia Legislativa e seguindo para o plenário da casa, foi então que o IBDFam novamente entrou em ação e apresentou outro projeto de lei, desta feita, perante o Senado Federal.

3.3.3. Projeto de Lei nº 470/2013 - Estatuto “das Famílias”

O projeto de lei em questão (PL nº 470/2013) foi apresentado perante o Senado Federal no dia 12 de novembro de 2013, como réplica ao PL da Família, também de autoria do Instituto Brasileiro de Direito da Família e denominado de Estatuto “das Famílias”. Retoma os preceitos do projeto anterior, apresentado na Câmara dos Deputados em 2007 e melhora o campo de direitos das famílias. Nas palavras do ainda presidente do IBDFAM, Rodrigo da Cunha Pereira:

A apresentação do Estatuto das Famílias no Senado é uma forma de corrigir, alterar e ampliar a proposta original, afirma o presidente do IBDFAM. É um momento simbólico da maior importância e vem atender à moderna linha do Direito Civil que é a criação de microssistemas. Não cabe, no mundo contemporâneo, um Código Civil que abrange tudo. Assim como existe o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso, agora temos um para tratar especificamente das famílias brasileiras.

É necessário adequar as regras às novas formatações de família que não são protegidas pela legislação atual.[94] 

O Estatuto “das Famílias” (PL 470/2013), ora em tramitação no Senado Federal, traz a seguinte explicação de ementa, deixando claro seu caráter de estatuto que bem atende aos anseios do atual direito das famílias:

Institui o Estatuto das Famílias, composto dos seguintes títulos: I) Disposições Gerais; II) Das Relações de Parentesco; III) Das Entidades Familiares, sendo este título subdividido em: Das Disposições Comuns, Do Casamento; Da Capacidade para o Casamento; Dos Impedimentos; Das Provas do Casamento; Da Validade do Casamento; Dos Efeitos do Casamento; Da União Estável; Da Família Parental; Das Famílias Recompostas; IV) Da Filiação; V) Da Adoção; VI) Da Autoridade Parental; VII) Da Convivência Familiar; VIII) Da Alienação Parental e do Abandono Efetivo; IX) Dos Alimentos; X) Do Bem de Família; XI) Da Tutela e da Curatela; XII) Do Processo e do Procedimento; XIII) Do Procedimento para o Casamento; XIV) Da Ação de Divórcio; XV) Do Reconhecimento e da Dissolução da União Estável; XVI) Da Ação de Separação de Corpos; XVII) Da Ação de Alienação Parental; XVIII) Dos Alimentos; XIX) Da Averiguação da Filiação; XX) Da Ação de Interdição; XXI) Dos Procedimentos dos Atos Extrajudiciais; XXII) Das Disposições Finais e Transitórias; revoga o Livro IV da Lei nº 10406/02 (Código Civil) e dispositivos do Código de Processo Civil e da legislação correlata.[95]

Traz também, no rol da justificação, arrazoada defesa em prol das entidades familiares existentes, asseverando que a Constituição atribui a todas as entidades familiares a mesma dignidade, sendo merecedoras de igual tutela, sem hierarquia, razão pela qual “o título destinado às entidades familiares estabelece primeiro as diretrizes comuns a todas elas, para depois tratar de cada uma”. Além do casamento, o Estatuto visa regular a união estável, a família parental, na qual se inclui a família monoparental e a pluriparental, como também atende às famílias que se constituem com egressos de vínculos afetivos anteriores e formam o que se chama de famílias recompostas.[96]

 Por certo que os projetos apresentados pelo Instituto Brasileiro do Direito de Família, PL nº 2.285/2007 e PL nº 470/2013, em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, respectivamente, melhor se coadunam com a realidade vivenciada pela sociedade contemporânea, plural e democrática que se tornou.

Assim, se tem por certo que uma vez reconhecida por lei a família anaparental como entidade familiar, seus membros vão poder usufruir dos mesmos direitos reconhecidos às demais famílias, guardando as devidas proporções.

Contudo, apesar da existência desses projetos de lei, não há detalhamento sobre a formação e/ou composição da família anaparental. Por apresentar peculiaridades, mormente quando formada por membros não parentes, é necessário que sejam previstas em lei as particularidades, a fim de que se evitem dúvidas quando da implementação dos direitos.

Ademais, há mora significativa na tramitação de tais projetos, a exemplo do PL nº 2.285/2007 (complementado pelo PL nº 470/2013 – Estatuto “das Famílias”), que proposto em 2007, ainda se encontra pendente de julgamento, já transcorridos dez anos. Além de haver outro projeto em sentido contrário (PL nº 6.583/2013 - Estatuto “da Família”), pondo em questão a tutela dessas novas entidades familiares.

Diante desse quadro, justifica-se a edição de um instrumento específico e urgente para a tutela das pessoas que vivem em família anaparental no Brasil.

Todavia, enquanto não vier regramento dessa natureza, o Poder Judiciário deve continuar concedendo os direitos do núcleo básico a essas novas entidades, pois não se pode excluir uma realidade presente apenas por detalhe formal.  É necessário que o ordenamento jurídico brasileiro acompanhe as mudanças porque passa a sociedade, sob pena de desrespeitar direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, implementando-se uma releitura no atual direito de família, bem assim nos projetos em tramitação no Congresso Nacional, para que se venha a proteger todas as entidades familiares existentes.

Sobre a autora
Antonia Tania Maria de Castro Silva

Servidora pública federal. Mestranda em Ciências Jurídicas na Universidade Autônoma de Lisboa – UAL. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UCAM. Especialista em Processo Civil pela UNISUL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Antonia Tania Maria Castro. Tutela jurídica das pessoas que vivem em economia comum ou em família anaparental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5434, 18 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66292. Acesso em: 22 nov. 2024.

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