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O CNJ e a autorização judicial para investigar pessoas com foro de prerrogativa de função

Consequência jurídica da falta de autorização para abertura da investigação criminal

Agenda 21/05/2018 às 23:12

EMENTA: 1. Consequência jurídica da falta de autorização para abertura da investigação. 2. O Conselho Nacional de Justiça e o sistema acusatório. 3. O CNJ e a função do magistrado na investigação criminal.

O CNJ E A AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INVESTIGAR PESSOAS COM FORO DE PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

EMENTA: 1. Consequência jurídica da falta de autorização para abertura da investigação. 2. O Conselho Nacional de Justiça e o sistema acusatório. 3. O CNJ e a função do magistrado na investigação criminal. 4. A impossibilidade de extensão da exigência prevista no regimento interno do STF aos demais tribunais de justiça. 5. Da desnecessidade de autorização judicial para investigar magistrados. 6.Investigações conduzidas pelo delegado de polícia e autorização para indiciados com foro por prerrogativa de função. 7. O CNJ e a inconstitucionalidade de dispositivos regimentais que condicionaram a instauração de inquérito policial à autorização do poder judiciário.

O foro por prerrogativa de função, instituto jurídico com previsão na Constituição da República, consiste na atribuição a determinadas pessoas, ocupantes de cargos públicos de elevada envergadura, de processo e julgamento criminal realizado por Tribunais, com o objetivo preservar a imparcialidade necessária para a correta aplicação da lei.

Todavia, tendo em vista a ausência de normas regulamentares sobre a matéria, uma vez que a Carta Magna e as Constituições Estaduais apenas apontam quais são os Tribunais competentes para julgar determinadas autoridades, sem contudo traçar o procedimento adequado, vislumbramos uma série de entendimentos jurisprudenciais divergentes.

Assim, o objetivo do presente artigo é analisar o procedimento de investigação criminal aplicado aos indivíduos favorecidos pelo foro por prerrogativa de função, à luz da jurisprudência dos Tribunais Superiores.

1.CONSEQUÊNCIA JURÍDICA DA FALTA DE AUTORIZAÇÃO PARA ABERTURA DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL:

Grande parte da doutrina é silente e a jurisprudência brasileira sempre apresentou divergência no que pertine às consequências da ausência da supervisão judicial na fase investigatória pelo Ministério Público, até mesmo sobre a real necessidade de se exigir a controle pelo Poder Judiciário para instauração de inquéritos envolvendo autoridades com foro por prerrogativa de função.

No livro Tratado Doutrinário de Processo Penal,[1] foi feita uma digressão sobre como decide os tribunais superiores, in verbis:

Nesse diapasão, é possível observarmos que no Supremo Tribunal Federal, até outubro de 2015, predominava o entendimento de que a ausência de autorização para deflagração de diligências investigatórias em face de autoridade com foro por prerrogativa não traria a mácula da nulidade ao processo, salvo em situações nas quais a regra da reserva de jurisdição restasse desrespeitada. Nesse sentido:

“Embargos de declaração em inquérito. Inquérito instaurado contra autoridade com prerrogativa de foro, sem observância da competente supervisão judicial. Salvo casos em que haja fundadas razões em desvio de finalidade, não são ilícitas as provas que independem de autorização judicial para produção.  Embargos de declaração rejeitados. (Inq 2952 ED, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 10/03/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-057 DIVULG 23-03-2015 PUBLIC 24-03-2015)”.

No julgado acima mencionado, a Excelsa Corte cuidou de fazer importante distinguishing acerca do caso concreto, ao afirmar que, embora o investigado possuísse foro por prerrogativa de função, a colheita de elementos de informação não demandavam autorização judicial, de modo a dispensar a intervenção do Tribunal competente.

Outro argumento valioso foi o de que os dados obtidos na fase investigativa buscavam subsidiar a peça acusatória, podendo ser submetidos ao contraditório em momento posterior, durante a ação penal, razão pela qual não faria sentido o refazimento de todo arcabouço de convicção até então colhido em virtude tão somente do foro por prerrogativa do investigado.

Ou seja, salvo exceções pontuais, a exemplo de realização de interceptações telefônicas, a realização de diligências pelo membro ministerial sem autorização prévia da casa competente não acarretaria nulidade para o processo penal dela decorrente.

Continuando com o que escrevemos no livro Tratado Doutrinário de Processo Penal,[2]in verbis:

Entretanto, cumpre registrar que em outubro de 2015, em decisão oriunda do Estado da Paraíba, aquela Excelsa Corte afirmou que a mera instauração de inquérito contra Prefeito municipal sem a devida autorização judicial acarreta a inépcia da denúncia com o posterior trancamento da ação penal. Nesse sentido:

“Na espécie, no limiar das investigações, havia indícios de que o então Prefeito teria praticado crime eleitoral, por ter supostamente oferecido emprego a eleitores em troca de voto, valendo-se, para tanto, de sua condição de alcaide, por intermédio de uma empresa contratada pela municipalidade.  Nesse contexto, não poderia o inquérito ter sido supervisionado por juízo eleitoral de primeiro grau nem, muito menos, poderia a autoridade policial direcionar as diligências apuratórias para investigar o Prefeito e tê-lo indiciado. 6. A usurpação da competência do Tribunal Regional Eleitoral para supervisionar as investigações constitui vício que contamina de nulidade a investigação realizada em relação ao detentor de prerrogativa de foro, por violação do princípio do juiz natural (art. 5º, LIII, CF). Precedentes.  Questão de ordem que se resolve pela concessão de habeas corpus, de ofício, em favor do acusado, para extinguir a ação penal, por falta de justa causa (art. 395, III, CPP). (grifos nossos) (AP 933 QO, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 06/10/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-020 DIVULG 02-02-2016 PUBLIC 03-02-2016)”.

Importante destacar a sempre firme jurisprudência de nossa Corte Suprema no sentido de que eventuais nulidades ocorridas na fase investigativa não possuem o condão de macular o processo judicial dela decorrente. Assim sendo, como justificar que a mera condução de investigação criminal por parte de autoridade incompetente seja capaz de imputar a pecha de nulidade para o processo penal que se seguiu?

O Supremo Tribunal Federal reconheceu, no julgado ora analisado, que a simples menção de autoridades com foro por prerrogativa funcional em investigações criminais não são suficientes para justificar o deslocamento da competência para investigar. Entretanto, afirmou que, diante da constatação da existência de indícios da participação ativa e concreta do titular da prerrogativa em ilícitos penais, a atração da causa para o foro competente se faz imprescindível.

Desse modo, o fato de o titular de foro por prerrogativa figurar como investigado já será suficiente para tornar nula a produção dos elementos informativos que seguirem presidida por autoridade incompetente, maculando não apenas a fase inquisitória, mas também eventual processo judicial que dela decorrer.

O Superior Tribunal de Justiça possuía, até outubro de 2014, decisões que exigiam a supervisão prévia pelo Judiciário para fins de autorizar investigações criminais em face de autoridades com foro por prerrogativa de função. Nesse sentido:

“O  processamento do inquérito policial instaurado para investigar suposto delito envolvendo Prefeito perante a Autoridade Policial, sem qualquer supervisão do Tribunal de Justiça, torna nulas as provas obtidas durante a fase extrajudicial e, consequentemente, a denúncia fundada nos elementos colhidos no inquérito.  Ordem de habeas corpus parcialmente concedida, para anular a denúncia, a decisão que a recebeu, bem como os atos de investigação realizados sem a supervisão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, sem prejuízo de que sejam retomadas as investigações perante a autoridade agora competente.(HC 205.721/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 05/11/2013, DJe 19/11/2013)

Ocorre que, em março de 2017 a egrégia Corte Superior decidiu em sentido completamente inverso, afirmando não haver necessidade de autorização judicial para instauração de investigações por parte do Ministério Público, mesmo que o investigado possua foro por prerrogativa de função. Vejamos o Acórdão:

“Autorização do tribunal de justiça para abertura das investigações preliminares. Desnecessidade. Ausência de previsão na lei 8.038/90. Exigência de sindicabilidade judicial apenas no recebimento da denúncia. Recurso desprovido. Os poderes investigatórios do Ministério Público são poderes implícitos, corolário da própria titularidade privativa do Parquet em promover a ação penal pública (Constituição da República, art. 129, I). Contudo, a Constituição, em seu art. 129, VIII, confere expressamente ao Ministério Público a atribuição de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito à autoridade policial, independentemente de sindicabilidade ou supervisão judicial. Nas hipóteses de haver previsão de foro por prerrogativa de função, seja por disposição do poder constituinte, do constituído reformador ou decorrente, pretende-se apenas que a autoridade, em razão da importância da função que exerce, seja processada e julgada perante foro mais restrito, formado por julgadores mais experientes, evitando-se pois persecuções penais infundadas. Da prerrogativa de função, contudo, não decorre qualquer condicionante à atuação do Ministério Público, ou da autoridade policial, no exercício do mister investigatório, sendo, em regra, despicienda a admissibilidade da investigação pelo Tribunal competente”.  (RHC 77.518/RJ, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 09/03/2017, DJe 17/03/2017)

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Em que pese a apontada divergência das mencionadas Cortes Superiores em relação à apuração de crimes praticados por autoridades com foro por prerrogativa de função, ambas concordam que, mesmo em se tratando de diligências investigatórias por parte do Ministério Público, será necessário expressa autorização judicial para diligências “sob reserva de jurisdição”. Nesse aspecto, será exigida autorização judicial para determinar interceptações telefônicas, quebra de sigilo bancário, dentre outras.

Há muito tempo já defendíamos que a exigência de prévia autorização judicial para instauração de inquérito policial contra pessoas detentora de foro privilegiado afigura total afronta aos postulados do sistema penal acusatório consagrados na Constituição Federal; e foi justamente nesse sentido que decidiu o CNJ, em julgado a ser analisado ainda no presente trabalho.

Ademais, repisamos o argumento segundo o qual eventuais nulidades ocorridas na fase pré-processual, ou seja, no inquérito, não possuirá qualquer força impeditiva para a fase que se segue.

Data máxima venia, não há como tratar do tema com dois pesos e duas medidas diferentes. Se a fase investigativa possui capacidade de macular o processo que dela decorre, então a jurisprudência deverá se abrir à possibilidade de nulidade do processo decorrente de flagrantes ilegais ou mesmo interrogatórios policiais conduzidos sem a presença do advogado.

Não vemos, porém, dessa forma. Entendemos que a fase inquisitiva, por possuir natureza de procedimento administrativo, não é capaz, ao menos em regra, de afetar a legitimidade do processo que virá logo em seguida. Aqui utilizamos da expressão “em regra” tendo em vista a possiblidade de elaboração de provas nessa fase preliminar, a exemplo do depoimento ad perpetuam rei memorium, provas cautelares e prova não repetível.

Em casos tais, por se tratar verdadeiramente de provas, e não de meros elementos informativos, sua produção deve seguir o devido rito, inclusive com submissão ao contraditório e ampla defesa do acusado. Eventuais ilicitudes ocorridas na elaboração de tais provas poderá prejudicar o processo judicial nelas embasado.

2.O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA E O SISTEMA ACUSATÓRIO

O Procedimento de Controle Administrativo nº 0002734-21.2018.2.00.0000. Relator: André Godinho, do CNJ, fez um destaque especial ao acolhimento do princípio acusatório, delimitando qual é a real função do juiz no moderno processo penal, in verbis:

A Constituição Federal de 1988 consagra o sistema acusatório no ordenamento jurídico brasileiro. A escolha do referido sistema depreende-se dos princípios constitucionais norteadores do processo penal e das garantias fundamentais asseguradas, especialmente, do quanto previsto em seus artigos 129, inciso I, e 5º, inciso, LIX, os quais garantem, respectivamente, a titularidade da ação penal pública por parte do Ministério Público e a possibilidade de oferecimento da ação penal privada subsidiária da pública, se a ação penal pública não for intentada pelo Parquet no prazo legal.

Segundo Ferrajoli, são características do sistema acusatório a separação rígida entre o  juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, a publicidade e a oralidade do julgamento. Em lado diametralmente oposto, são tipicamente próprios do sistema inquisitório a iniciativa do juiz em campo probatório, a disparidade de poderes entre acusação e defesa e o caráter escrito e secreto da instrução.[3]

O modelo de Estado Democrático de Direito estabelece que a jurisdição seja exercida na forma da imparcialidade do julgador. Dessa forma, na atual conjuntura do processo penal democrático, considerando os ditames de um sistema acusatório, as funções de acusador e julgador são previamente estabelecidas e delimitadas, não podendo haver a substituição de um pelo outro.

Ao demarcar a separação das funções de acusar e julgar e, principalmente, atribuir a gestão da prova às partes, o modelo acusatório redesenha o papel do juiz no processo penal, não mais como juiz-ator (sistema inquisitório), mas sim de juiz-espectador. Trata-se de atribuir a responsabilidade pela produção da prova às partes, como efetivamente deve ser num processo penal acusatório e democrático.

Portanto, o juiz deixa de ter o papel de protagonismo na realização das oitivas, para ter uma função completiva, subsidiária. Não mais, como no modelo anterior, terá o juiz aquela postura proativa, de fazer dezenas de perguntas, esgotar a fonte probatória, para só então passar a palavra ás partes, para que, com o que sobrou, complementar a inquirição.

(...)

A situação é ainda mais grave quando o Ministério Público não está na audiência e, diante da ausência do acusador, assume o juiz esse papel, formulando as perguntas. Neste caso, mais do que protagonista, o juiz assume uma postura substitutiva do acusador, em flagrante incompatibilidade com o sistema acusatório, a imparcialidade e a própria igualdade de armas”.[4]

Diante da excelente explanação do ilustre Conselheiro podemos perceber a importância do sistema acusatório para o processo penal.

A divisão das atribuições de julgar, acusar e defender tem por escopo garantir a aplicação efetiva dos princípios do contraditório e ampla defesa, posto que visa manter a imparcialidade do órgão julgador, tornando sua decisão a mais justa possível.

Desse modo, exigir a participação prematura de magistrado em fase investigativa pode, inevitavelmente, afetar sua necessária imparcialidade para julgar o meritum causae em momento oportuno. É imprescindível que a participação desse membro do Poder Judiciário se restrinja a atos estritamente necessários, tais como aqueles que demandem sua autorização prévia.

Nesse tom, tomamos a liberdade de complementar os argumentos do ilustre Conselheiro, trazendo à baila lições de São Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica, que já defendia:

“Não podemos praticar a justiça para conosco mesmos, mas, para com outrem. Logo, é necessário que o juiz decida, entre duas partes; o que se dá sendo uma o autor e outra o réu. Logo, em se tratando de crimes, o juiz não pode condenar quem não tem acusador”.[5]

Essa separação das funções estatais de julgar e acusar demonstra, claramente, que não se poderá obter uma sentença justa daquele que foi contaminado previamente pela ação positiva de investigar os elementos que circundam o caso concreto. Assim, não deve o magistrado competente agir em momento antecedente ao processo, a menos que sua atuação seja estritamente necessária para a normalidade do ato que se busca realizar.

3.O CNJ E A FUNÇÃO DO MAGISTRADO NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

No mesmo Procedimento de Controle Administrativo acima analisado, de relatoria do Conselheiro André Godinho, do CNJ, foi dito que:

Desse modo, como corolário do sistema acusatório, é imprescindível a imparcialidade do julgador, devendo o magistrado intervir apenas quando necessário, e desde que seja provocado nesse sentido. Em razão disso, entende-se que a atuação moderna do juiz na fase de inquérito é de simplesmente resguardar os direitos fundamentais dos envolvidos, visto que há um núcleo de direitos e garantias individuais que só podem ser restringidos a partir da ordem da autoridade judiciária competente, o que se denomina de “cláusula de reserva de jurisdição”. [6]

Nesse contexto, a jurisprudência pátria costuma qualificar a atuação judicial em fase investigatória como “magistrado de garantias”, conforme se vê:

(......) De rigor, pois, o exercício pleno da atribuição investigativa do Parquet, independente da sindicabilidade do Tribunal de Justiça, que somente deverá ocorrer por ocasião do juízo acerca do recebimento da denúncia ou, eventualmente, antes, se houver necessidade de diligência sujeita à reserva jurisdicional, conforme disposição expressa nos arts. 4º e 6º da Lei 8.038/90. 7. Recurso desprovido. (STJ - RHC: 77518 RJ 2016/0277997-8, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 09/03/2017, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/03/2017).

Tal posicionamento se filiou à linha jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal anterior a outubro de 2015, e do Superior Tribunal de Justiça do período posterior a outubro de 2017, conforme já dito linhas acima.

Acertado, de fato, tal linha argumentativa, pois harmoniza com toda a plêiade de julgados no sentido de que inexiste nulidade no processo em virtude de vicissitudes ocorridas no inquérito que o antecede. Desse modo, tal linha jurisprudencial optou por cindir as fases investigativa e processual, de modo que eventuais vícios de uma não importem em efeitos deletérios na outra.

4. A IMPOSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DA EXIGÊNCIA PREVISTA NO REGIMENTO INTERNO DO STF AOS DEMAIS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA

Seguindo no estudo do supramencionado Procedimento de Controle Administrativo, podemos perceber que a exigência de prévia autorização do Tribunal para a instauração de investigação criminal, constante do art. 21, XV do Regimento Interno do STF, deve ser interpretada restritivamente, de modo a ser aplicada exclusivamente para casos sujeitos à sua jurisdição. Vejamos o trecho da decisão:

No que se refere a impossibilidade de extensão da exigência prevista no RISTF aos demais Tribunais Estaduais, oportuno transcrever, por sua clareza, trecho da manifestação proferida pelo Ministra Rosa Weber quando do julgamento da AP 912/PB, de Relatoria do Ministro Luiz Fux:

“Reputo importante o registro porque, diferentemente das autoridades sujeitas ao regime de prerrogativa de foro nesta Suprema Corte, onde há norma regimental expressa a condicionar a instauração do inquérito à determinação/autorização do Ministro Relator (artigo 21, XV, do RISTF), não existe disciplina normativa equivalente com relação aos Prefeitos Municipais (artigo 29, X, da CF), que se sujeitam, quanto à instauração do inquérito, às normas comuns do CPP. De fato, o artigo 21, XV, do RISTF, incluído pela Emenda Regimental nº 44/2011, atribui ao Relator “(...) determinar a instauração de inquérito a pedido de Procurador-Geral da República, da autoridade policial ou do ofendido”, nos casos das autoridades com prerrogativa de foro nesta Suprema Corte. Já quanto aos Prefeitos, a norma do  artigo 29, X, da CF, garante apenas o “julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça”, e nada dispõe a respeito de autorização/determinação judicial para o início das investigações. Submetem-se os Prefeitos Municipais, desse modo, quanto à instauração do inquérito, às normas ordinárias do CPP, aplicável à generalidade dos cidadãos, as quais não exigem autorização jurisdicional para a mera abertura de investigações preliminares. As normas pertinentes à prerrogativa de foro – especialmente aquelas que interferem na embrionária etapa das investigações preliminares, em que protagonizam a Polícia e o Ministério Público – por serem exceções ao regime republicano, devem ser interpretadas com comedimento. Essa é a linha de compreensão que venho adotando nesta Suprema Corte e, particularmente quanto à questão da autorização judicial para a instauração do inquérito, já tive a oportunidade de expô-la em obter dictum no voto vista que proferi no INQ 3847/AgR, Rel.Ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 08.6.2015”. (AP 912, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 07/03/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-101 DIVULG 15-05-2017 PUBLIC 16-05-2017).

Com esses argumentos, o CNJ estabeleceu uma linha divisória claramente delimitada no sentido de que, em regra, a investigação criminal de pessoas titulares de foro por prerrogativa de função deve ocorrer sem intervenção prévia do Poder Judiciário. A exceção ficará por conta de expressa previsão em sentido contrário constante de normas primárias em nosso ordenamento jurídico.

5.DA DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INVESTIGAR MAGISTRADOS

O CNJ ao julgar o Recurso Administrativo em PCA - Procedimento de Controle Administrativo - 0006125-28.2011.2.00.0000 - Rel. SAULO CASALI BAHIA - 183ª Sessão Ordinária - j. 25/02/2014, decidiu que:

1. O dispositivo da LOMAN que exige autorização da Corte Superior para prosseguimento das investigações quando constatados indícios de prática de crime de ação pública por magistrado não foi recepcionado pela nova ordem constitucional. Precedentes do STF.

2. Não há necessidade de autorização prévia do Tribunal para o prosseguimento de investigações contra magistrados. Exigência do art. 360 e parágrafos do Regimento Interno do TJMG que deve ser suprimida.

3. Recurso administrativo provido.

Agora no Procedimento de Controle Administrativo nº 0002734-21.2018.2.00.0000. Relator: André Godinho, decidiu o CNJ:

Ante todo o exposto, com fulcro no artigo 25, XII, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça, julgo formulados e determino PROCEDENTES OS PEDIDOS ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará a supressão da exigência de autorização prévia para investigar crime cometido por autoridade com prerrogativa de foro, INCLUSIVE MAGISTRADOS, prevista em seu Regimento Interno.

Nesse específico ponto, podemos perceber a tendência, ao menos do CNJ, de restringir ao máximo a intervenção jurisdicional nos atos investigativos, o que se coaduna com o sistema acusatório.

O artigo 33 da LOMAN que estabelece a exclusividade das investigações pelo Poder Judiciário quando constatados indícios de prática de crime de ação pública por magistrado, realmente, não foi recepcionado pela Constituição Federal e afronta o princípio acusatório.

No ordenamento jurídico brasileiro, a lei goza de presunção de legalidade e de constitucionalidade, que não pode ser afastada pelo juiz em cognição superficial para reconhecer admissível o direito invocado, portanto, enquanto o artigo 33 da LOMAN não for declarado inconstitucional (não recepcionado), o Mistério Público e a polícia não pode, em regra, investigar magistrado. Trataremos da exceção no item seguinte.

6. INVESTIGAÇÕES CONDUZIDAS PELO DELEGADO DE POLÍCIA E AUTORIZAÇÃO PARA INDICIADOS COM FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

Um dos desdobramentos decorrentes da jurisprudência ora analisada diz respeito à possibilidade de a autoridade policial presidir investigações de membros da Magistratura e do Ministério Público. Como dito linhas acima, diante da inexistência de normas que regulem a apuração de crimes cometidos por pessoas titulares de foro por prerrogativa funcional, deve o intérprete buscar a solução através de normas principiológicas que estruturem o Estado Democrático de Direito.

Comungando o já mencionado princípio acusatório com o princípio dispositivo, segundo o qual a resposta jurisdicional deve ocorrer após provocação da parte interessada, chegamos ao entendimento que confere ao delegado de polícia e o Ministério Público, como regra geral,  a total liberdade, dentro dos parâmetros legais, a condução de investigação de crime praticado por indivíduo com foro privilegiado. Nesse tom, a autoridade judicial será suscitada apenas para a produção de atos que a lei exija sua prévia e expressa autorização, como é o caso dos já citados: a) regimento interno do STF; b) Artigo 33 da LOMAN, enquanto não forem declarados inconstitucionais por visível afronta ao princípio acusatório.

Defendemos, portanto, a não recepção do art. 33, parágrafo único da Lei Complementar nº 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) pela Constituição de 1988, pois referido dispositivo é fruto de um regime ditatorial que não respeitava o sistema acusatório, tampouco garantias mínimas do acusado.  Vejamos o teor da norma:

Art. 33 - São prerrogativas do magistrado:

(...)

Parágrafo único - Quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte do magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou órgão especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigação.

Insistimos em repisar a importância da separação das atribuições de julgar, acusar e defender, tendo em vista que retratam a forma mais justa de aferir se a pessoa acusada efetivamente cometeu o delito a ela imputado. Desse modo, mostra-se manifestamente prejudicial à convicção do magistrado sua participação em momento anterior ao julgamento da conduta delitiva.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal proferiu decisão, na AP 937, disciplinando o alcance e extensão do foro por prerrogativa de função. A Excelsa Corte optou por realizar uma redução teleológica sobre os dispositivos constitucionais que tratam da prerrogativa em questão, limitando as hipóteses que sujeitarão o ocupante do cargo beneficiado ao julgamento pelo Tribunal competente. Nesse sentido foi assentado que:

O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, resolveu questão de ordem no sentido de fixar as seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”

Com a decisão supracitada, o STF abriu a possibilidade de julgamento das pessoas que gozem da mencionada prerrogativa pelo juízo de primeiro grau, mantendo no Tribunal apenas os delitos cometidos durante o exercício do cargo e relacionado com suas funções.

Assim, o Supremo Tribunal Federal permitiu situações em que, mesmo sendo titular de cargo dotado de foro por prerrogativa de função, será possível o julgamento do crime por um magistrado de primeiro grau e, consequentemente, a apuração, na fase investigativa, pela autoridade policial.

Entendemos que, com o julgamento da AP 937, o STF permitiu que eventuais investigações criminais de pessoas titulares do citado foro sejam conduzidas por delegados de polícia ou Ministério Público sem necessidade de autorização ou supervisão judicial. Ademais, seria contraproducente e violador do princípio da razoável duração do processo exigir que toda e qualquer investigação criminal na qual figurasse agente dotado dessa prerrogativa fosse dirigida ao Tribunal competente, sobretudo quando apenas uma pequena parcela delas seriam efetivamente processadas e julgadas nesses Tribunais.

Havendo conhecimento de que o delito tenha sido praticado fora das hipóteses em que são asseguradas o foro por prerrogativa de função, a autoridade policial ou Ministério Público deve, então, proceder à investigação criminal, tendo em vista que o delito será processado e julgado por um magistrado de primeira instância.

7.O CNJ E A INCONSTITUCIONALIDADE DE DISPOSITIVOS REGIMENTAIS QUE CONDICIONARAM A INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL À AUTORIZAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO

O Procedimento de Controle Administrativo nº 0002734-21.2018.2.00.0000. Relator: André Godinho, destacou julgados que consideram inconstitucionais dispositivos regimentais que condicionam a instauração de inquérito policial a autorização do poder judiciário, in verbis:

Por fim e não menos importante, o Supremo Tribunal Federal, em sede da ADI nº 5104/DF, já se posicionou no sentido de que o condicionamento da instauração de inquérito policial eleitoral a uma autorização do poder judiciário viola aos princípios do sistema acusatório, da reserva de jurisdição e do juiz natural, conforme se vê:

Forte plausibilidade na alegação de inconstitucionalidade do art. 8º, da Resolução nº 23.396/2013. Ao condicionar a instauração de inquérito policial eleitoral a uma autorização do Poder Judiciário, a Resolução questionada institui modalidade de controle judicial prévio sobre a condução das investigações, em aparente violação ao núcleo essencial do princípio acusatório. (STF - ADI: 5104 DF, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 21/05/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014)

Através desse julgado, de relatoria do ilustre Ministro Roberto Barroso, podemos concluir que, em homenagem ao princípio acusatório, não se mostra possível que aquele que julgue tenha qualquer proximidade anterior com atos investigativos, sob pena de contaminar sua preciosa e necessária imparcialidade. Assim, qualquer aproximação entre magistrado e atos preparatórios para a ação penal pode trazer prejuízos imensuráveis  para o processo judicial, sobretudo em virtude de sua impossibilidade fática de comprovação.

Explicamos. Uma vez em contato com elementos produzidos unilateralmente por uma das partes, sem a necessária observância do contraditório e ampla defesa, o julgador estará sendo influenciado, em menor ou maior proporção, a favorecer ou prejudicar o investigado quando de seu julgamento no processo subsequente.

Além disso, o grau de influência sobre o juízo do membro do Poder Judiciário jamais poderá ser cabalmente comprovado, posto que o impacto dessa participação antecipada no processo residirá, exclusivamente, em seu foro íntimo.

Diante de tudo que se expôs até o presente momento, percebemos ser imprescindível o necessário distanciamento entre o órgão julgador e qualquer ato que ocorra antes do processo judicial como forma de preservar seu juízo imparcial sobre o caso concreto, ainda que se trate de autoridade dotada de foro por prerrogativa de função.


[1] Capítulo 3, Investigação criminal supervisionada judicialmente, editora JH Mizuno.

[2] Capítulo 3, Investigação criminal supervisionada judicialmente, editora JH Mizuno.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 518

[4] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 651-655.

[5] AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Volume 3 (IIa-IIae). Tradução de Alexandre Correia. 4ª Edição. Campinas: Eclesiae, 2016. P. 436.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 151

Sobre o autor
Francisco Dirceu Barros

Procurador Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, Promotor de Justiça Criminal e Eleitoral durante 18 anos, Mestre em Direito, Especialista em Direito Penal e Processo Penal, ex-Professor universitário, Professor da EJE (Escola Judiciária Eleitoral) no curso de pós-graduação em Direito Eleitoral, Professor de dois cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal, com vasta experiência em cursos preparatórios aos concursos do Ministério Público e Magistratura, lecionando as disciplinas de Direito Eleitoral, Direito Penal, Processo Penal, Legislação Especial e Direito Constitucional. Ex-comentarista da Rádio Justiça – STF, Colunista da Revista Prática Consulex, seção “Casos Práticos”. Colunista do Bloq AD (Atualidades do Direito). Membro do CNPG (Conselho Nacional dos Procuradores Gerais do Ministério Público). Colaborador da Revista Jurídica Jus Navigandi. Colaborador da Revista Jurídica Jus Brasil. Colaborador da Revista Síntese de Penal e Processo Penal. Autor de diversos artigos em revistas especializadas. Escritor com 70 (setenta) livros lançados, entre eles: Direito Eleitoral, 14ª edição, Editora Método. Direito Penal - Parte Geral, prefácio: Fernando da Costa Tourinho Filho. Direito Penal – Parte Especial, prefácios de José Henrique Pierangeli, Rogério Greco e Júlio Fabbrini Mirabete. Direito Penal Interpretado pelo STF/STJ, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Recursos Eleitorais, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Direito Eleitoral Criminal, 1ª Edição, Tomos I e II. Editora Juruá, Manual do Júri-Teoria e Prática, 4ª Edição, Editora JH Mizuno. Manual de Prática Eleitoral, Editora JH Mizuno, Tratado Doutrinário de Direito Penal, Editora JH Mizuno. Participou da coordenação do livro “Acordo de Não Persecução Penal”, editora Juspodivm.

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