3.A SUCESSÃO DO COMPANHEIRO, DE ACORDO COM O ARTIGO 1790 CC/02:
Sucessão após a morte, trata como se dará a disposição do patrimônio das pessoas após a sua morte, ou seja, como se dará a transmissão patrimonial para os seus herdeiros e/ou legatários.
O momento da transmissão da herança acontece no mesmo momento da morte, ainda que presumida nos termos da lei (CC/2002, artigos 6º e 7º), pois as relações jurídicas não podem ficar privadas de um titular. Assim, a transmissão da herança, no plano jurídico, ocorre automaticamente e sem formalidade, com fundamento no princípio da saisine, ainda que, no plano fático, a morte seja desconhecida pelos sucessores. (CAHALI; HIRONAKA, 2014, p. 37).
No Brasil, o direito à herança é resguardado constitucionalmente através do art. artigo 5º, inciso XXX e integra o rol dos direitos e garantias fundamentais. A sucessão mortis causa poderá se dar através da sucessão testamentária e/ou por meio da sucessão legítima (CC/2002, artigo 1.786). A sucessão testamentária resulta de ato de última vontade do falecido.
Nela, o herdeiro é aquele indicado no testamento como sucessor. De outro lado, a sucessão legítima, também denominada sucessão legal ou ab intestato (sem testamento), se dá em observância à ordem de vocação hereditária prevista na legislação, mais precisamente no art. 1829 e seguintes do CC/02. Nela, o herdeiro é aquele indicado na lei como sucessor e além dos ascendentes, descendentes, cônjuge, colaterais, também existem os companheiros. Estes últimos possuem no atual código civil, uma disciplina sucessória própria e que por muito tempo foi alvo de duras críticas pelos aplicadores do Direito.
Os direitos sucessórios do companheiro(a), ou seja, o direito à herança das pessoas que conviviam entre si em União Estável, eram disciplinados pelo polêmico artigo 1790 do CC/02, com a seguinte redação:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança".
A autora Stela Maris Vieira Mendes (2017, p. 189) esclarece a sucessão do companheiro, através dos ditames do art. 1790 CC/02:
O companheiro participa da sucessão quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da União Estável (art. 1790 CC/02). A base de cálculo são os aquestos, tanto para apurar a meação, quanto para identificar a quota sucessória.
Em breve análise do artigo acima, clara é a diferença em relação a sucessão do cônjuge.
Ainda segundo Mendes (2017, p. 194):
Somente na união estável existe concorrência com os parentes colaterais, porque a lei os inseriu em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, relegando ao compenheiro o último lugar.
A regra foi erroneamente introduzida entre as disposições gerais do Direito das Sucessões. Isso se deu pelo fato de o tratamento relativo à união estável ter sido incluído no CC/2002 nos últimos momentos de sua elaboração e sem a devida atenção do legislador. Ressalta-se também que, apesar do atual CC ter entrado em vigor em 2003, o projeto do mesmo é dos anos 70, onde os costumes da sociedade eram outros e não se tinha tantas famílias informais.
Pelo mesmo fato, o companheiro não consta da ordem de vocação hereditária, trazida pelo art. 1829 CC/02, não sendo incluído no rol de herdeiros necessários, constante d o art. 1845 do mesmo diploma legal, apenas sendo tratado como um herdeiro especial, em um outro artigo.
Pelo fato do atual Código Civil ser um projeto anterior à Constituição Federal de 1988, mas apenas ter entrado em vigor em 2003, o Companheiro (a), não veio elencado no rol de vocação hereditária, de acordo com a redação do art. 1829 CC/02, in verbis:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.
Ordem de vocação hereditária, é o chamamento das pessoas com direito à herança, para que recebam o patrimônio deixado pelo de cujus. É uma ordem de prefêrencia estabelecida, dentre aqueles que possuem o direito à herança. A vocação hereditária pode ocorrer por sucessão legítima, ou seja a que decorre da lei, ou por disposição de última vontade do falecido, por meio do testamento.
O art. 1829 CC/02, traz o rol das pessoas legitimadas à sucessão, que são elas: Os descendentes, os ascendentes, o cônjuge sobrevivente e os colaterais até o 4º grau.
Dentro desta ordem, ainda existe a classificação entre herdeiros legítimos necessários e herdeiros legítimos facultativos, conforme os arts 1845 e 1850, ambos do CC/02. Por herdeiros legítimos necessários, ou seja, os descendentes, os ascendentes e o cônjuge, entende-se que estes têm direito ao mínimo de 50% (cinquenta por cento) do acervo hereditário, não podendo serem afastados da sucessão, conforme regra do art 1846 CC/02, exceto nos casos de indignidade e deserdação, devidamente arbitrados nos arts. 1814 e seguintes e 1961 e seguintes, todos também do CC/02.
Os herdeiros necessários somente poderão ser privados da herança legítima nas hipóteses específicas de indignidade e deserdação, estabelecidas de forma taxativa na lei. Em relação a eles, a legítima é inatingível, “não podendo ser diminuída na essência, ou no valor, por nenhuma cláusula testamentária” (NEVARES, 2015, p. 21).
Quanto ao restante dos bens, o autor da herança poderá dispor da maneira que quiser, através do testamento. Ainda nesta esfera, deve ser levada em consideração a regra do art. 1833 CC/02, onde diz que os mais próximos excluem os mais remotos, salvo o direito de representação.
Já na classificação dos herdeiros legítimos facultativos, temos os Colaterais até o 4º grau, ou seja, os irmãos, tios, sobrinhos, tios – avós, sobrinhos – netos e primos, sendo que os parentes de graus mais próximo excluem os mais remotos, salvo o direito de representação a favor dos filhos de irmãos, também são considerados herdeiros dentro da ordem do art. 1829 CC/02, porém estes não tem metade da herança resguarda, podendo ser afastados de todo o acervo hereditário, através de testamento, sem nenhuma motivação.
Observa-se que em nenhum momento o art. 1829 CC/02 faz menção ao companheiro (a), como herdeiro. Os conviventes, através da união estável, eram considerados herdeiros especiais e a sucessão era regulamentada unicamente pelo art. 1970 CC/02.
O referido artigo colocava o companheiro em situação inferior à situação do Cônjuge sobrevivente. A Constituição Federal concede a mesma e igual proteção à família, independentemente da sua formatação: se por meio do casamento ou da união estável.
Importantes são as palavras de Maria Berenice Dias (2017):
A simples recomendação — aliás, para lá de inútil — de ser facilitada a conversão da união estável em casamento não hierarquiza os dois institutos. Não coloca o casamento como modelo.
Ainda assim, de modo para lá de desarrazoado, a lei insiste em deferir-lhes tratamento distinto. Principalmente em sede de direito sucessório. O Código Civil considera o cônjuge herdeiro necessário, e o companheiro, não. Ao atribuir a quem compartilhou a vida, uma parte do que cabe aos filhos, estabelece outra e desarrazoada distinção
A situação sucessória do cônjuge sobrevivente tinha uma situação muito mais protetiva, vez que este tem as seguintes regras:
Quando concorre com descendentes, caso seja casado pelo regime da comunhão universal de bens, é meeiro e não herdeiro; quando casado pelo regime da comunhão parcial de bens, é meeiro dos bens comuns e herdeiro dos bens particulares; se casado pelo regime da separação legal, é herdeiro dos bens particulares; se casado pelo regime da separação obrigatória de bens, é meeiro dos bens adquiridos com o esforço comum e se casado pelo regime da participação final nos aquestos, segue a regra do regime da comunhão parcial de bens.
Já quando concorre com ascendentes, a regra muda. Diante desta regra, o cônjuge sobrevivente herda, independente do regime de bens. Se casado no regime da comunhão universal de bens, é meeiro dos bens comuns e herdeiro dos bens particulares, quando casado pelo regime da comunhão parcial de bens, é meeiro dos bens comuns e herdeiro dos bens particulares; se casado pelo regime da separação legal, é herdeiro dos bens particulares; se casado pelo regime da separação obrigatória de bens, é meeiro dos bens adquiridos com o esforço comum e se casado pelo regime da participação final nos aquestos, segue a regra do regime da comunhão parcial de bens.
O cônjuge herda isoladamente, ou seja, todo acervo hereditário, caso o falecido não tenha deixado ascendentes e nem descendentes.
Os colaterais só herdariam caso o falecido não tivesse descendentes, ascendentes ou cônjuge sobrevivente.
O art. 1790 CC/02, como primeira regra, traz que, para o reconhecimento do direito sucessório do companheiro ou companheira, o caput enuncia que somente haverá direitos em relação aos bens adquiridos onerosamente durante a união. Desse modo, comunicam-se os bens havidos pelo trabalho de um ou de ambos durante a existência da união estável, excluindo-se bens recebidos a título gratuito, por doação ou sucessão, bem como os adquiridos anteriormente à união. Deve ficar claro que a norma não está tratando de meação, mas de sucessão ou herança, independentemente do regime de bens adotado. Por isso, em regra, pode-se afirmar que o companheiro é meeiro e herdeiro dos mesmos bens.
Em linhas gerais, o art. 1790 CC/02, restringe o direito do companheiro(a) aos bens adquiridos onerosamente da constância na união, nada tendo direito aos bens particulares (adquiridos anteriormente à união, ou adquiridos durante a vigência da união, porém através de doação ou herança), faz distinção entre a concorrência do companheiro com filhos comuns ou só do falecido, prevê o direito apenas à metade do que couber aos que descenderem somente do autor da herança e estabeleçe um terço na concorrência com herdeiros de outras classes que não os descententes do falecido, a exemplo dos colateriais, e só é chamado a concorrer com a totalidade da herança na falta destes; o conjuge, porém, prefere aos parentes colaterais e por último, não o inclui como herdeiro necessário e nem com um quinhão mínimo.
Diante de tal análise, verifica-se que, de acordo com o CC/02, o companheiro tem uma posição sucessória inferior a do cônjuge.
O grande problema da sucessão do companheiro, conforme a regra do art. 1790 CC/02, era quando concorria com outros parentes (ascendentes ou colaterais), tinha direito a apenas 1/3 ( um terço) da herança. A diferença gritante é que o cônjuge não concorre com colaterais e herda também dos bens particulares.
Diante de tal regra, diversos questionamentos doutrinários surgiram: o companheiro terá que dividir herança, tendo direito a apenas 1/3 se concorrer inclusive com colaterais, fato este que pode deixá-lo em situação de desprovimento, por colocar o companheiro em possível desfavorável em relação a parentes distantes, com os quais muitas vezes não se têm vínculo familiar. O companheiro apenas herda os bens comuns, adquiridos onerosamente durante a vigência da união estável, então, caso o falecido somente tenha deixado bens particulares, seja pelo modo de aquisição (doação ou herança), ou pelo regime de bens escolhido, o companheiro não tinha direito à herança, ficando desprotegido.
Por fim, consagra o inciso IV do art. 1.790 do CC que somente se não houver parentes sucessíveis – descendentes, ascendentes e colaterais até o quarto grau -, é que o companheiro teria direito à totalidade da herança. Esta regra era a mais criticada, pois o companheiro só herdar a totalidade da herança na falta de colaterais, o deixava em situação bastante inferior a do cônjuge, vez que este herda a totalidade na falta de ascendentes e descendentes.
Ao dispor sobre o regime sucessório aplicável ao cônjuge no artigo 1.829 e ao companheiro no artigo 1790, o Código Civil acabou por desequiparar, para fins sucessórios, cônjuges e companheiros, ao outorgar a estes últimos direitos sucessórios distintos e inferiores dos conferidos aos cônjuges, impondo uma hierarquização das entidades familiares totalmente dissonante da previsão constitucional e em total descumprimento aso princípios da liberdade de constituir família e da afetividade.
Ao analisar o Direito de Família brasileiro e as regras da CF/88, observa-se que existe uma equiparação do casamento à união estável, como núcleo familiar, devendo ser abolida qualquer regra que trate o companheiro em situação inferior e desfavorável à do cônjuge.
Diante disto, diversos tribunais estaduais reconheceram a inconstitucionalidade do art. 1790 CC/02, por afrontar os princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana, Igualdade, liberdade de constituir famílias e afetividade, uma vez que o art. 226, §3º CF/88, deu tratamento paritário ao casamento e a União Estável. Além disso, o mesmo entendimento deve prevalecer para as uniões estáveis de casais homoafetivos, estendendo-se os mesmos efeitos da decisão, independente da orientação sexual dos casais. As uniões homoafetivas possuem os mesmos direitos e obrigações das uniões heteroafetivas.