O Direito surge como anseio da sociedade, visando regulamentar a vida do homem. Onde há sociedade, há direito, tendo Aristóteles afirmado que o homem é um animal político (zoon politicon) [1], sendo o direito penal o primeiro a surgir. [2]
O direito penal como ramo do direito público, visa proteger os bens jurídicos fundamentais para a vida em sociedade, [3] como a vida, o patrimônio, a honra, estabelecendo sanções penais para as ações humanas que atinjam esses bens. Observa-se portanto, que a função específica do direito penal é a proteção da sociedade. [4]
Aquelas ações humanas que contrariem o ordenamento jurídico, mas que não atinjam citados bens jurídicos, forjam o ilícito civil ou administrativo, de gravidade menor, portanto apenados de forma menos rigorosa.
Montesquieu em seu livro, "L’Esprit des lois", disse que, "É essencial que as penas se harmonizem, porque é essencial que se evite mais um grande crime do que um crime menor, aquilo que agride mais a sociedade do que aquilo que a fere menos."
No mesmo diapasão, encontra-se Roxin apud Heleno Cláudio Fragoso, o qual afirma ainda que, "...o Direito Penal tem caráter subsidiário, de tal forma que as lesões de bens jurídicos só podem ser submetidos à pena quando isto seja indispensável à vida em comum". [5]
Logo, o direito penal apresenta como característica a fragmentariedade, somente intervindo quando os bens jurídicos de maior relevância para a sociedade sejam atingidos de forma sisuda.
O Estado ao legislar sobre direito penal deve atenção ao caráter fragmentário e de intervenção mínima do direito penal, para que não ocorra a sua banalização, e deve ter vistas voltadas à verdadeira prevenção dos delitos.
Sobre prevenção, o Professor Doutor Antônio García-Pablos de Molina, da Universidade Complutense de Madri, profecia que, a prevenção do delito no Estado Social e Democrático de Direito, de acordo com a criminologia clássica, visualiza o delito como o enfrentamento simbólico entre o Estado e o infrator, numa luta entre o bem versus o mal.
A Criminologia moderna, no entanto, visualiza a situação sob uma óptica mais complexa, pois analisa o acontecimento delitivo de acordo com o papel ativo e dinâmico que atribui aos seus protagonistas (delinqüente, vítima e comunidade), destacando o lado humano e conflitivo do delito, os elevados custos pessoais e sociais deste doloroso problema.
Conclui o citado autor, "Ressocializar o delinqüente, reparar o dano e prevenir o crime são objetivos de primeira magnitude". [6]
Logo, o Direito Penal não deve se ocupar das ações que atinjam bens jurídicos não fundamentais dos cidadãos, e que encontram guarida em outros ramos do mundo jurídico. Dessa forma concede-se à prevenção um caráter mais efetivo.
Estendendo seus tentáculos sobre determinadas matérias que poderiam ser regulamentadas por outros ramos do Direito, o Direito Penal corre o risco de não conseguir "segurar" firme aquelas ações em que realmente se faz necessária a sua intervenção.
André Luiz Callegari afirma que, "É que hoje em dia o Direito Penal tende a insinuar-se por qualquer lugar, a converter-se cada vez mais em simples sancionador da violação de normas de outra natureza: civil, mercantil, administrativa". [7]
É o caso sob análise, da emissão de cheque pós-datado (e não pré-datado), sem a devida provisão de fundos, ser considerado crime por alguns profissionais do direito.
Muitas pessoas, cientes do temor que o signatário da lâmina de cheque tem ao saber que poderá ser apenado por ter perpetrado o crime de estelionato, utilizam a elaboração do Boletim de Ocorrência, ou o requerimento de instauração de Inquérito Policial, como meio coercitivo para obter o pagamento do numerário devido.
O Direito Penal passa a ser utilizado como meio para compelir o devedor ao pagamento. Fácil é essa constatação no caso do cheque pós-datado, pois não raro, já se passaram meses entre a data em que o cheque deveria ter sido descontado e a data em que se requer a medida penal.
Cesare Beccaria, em 1764, no livro "Dos delitos e das penas", já afirmava que, "o fim das penas não pode ser atormentar um ser sensível, nem fazer que um crime não cometido seja cometido".
Continua o mestre, "Para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar, basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime. Devem contar-se ainda como parte do castigo os terrores que precedem a execução e a perda das vantagens que o crime devia produzir. Toda severidade que ultrapasse os limites se torna supérflua e, por conseguinte, tirânica."
Em ciência os termos devem ser unívocos e não equívocos.
No caso específico de se tentar configurar a emissão de cheque pós-datado como delito de estelionato na modalidade de emissão fraudulenta de cheque, faz-se necessárias observações mais complexas quanto à interpretação desse delito.
Interpretar consiste em extrair da norma seu real significado e verdadeiro alcance. Mesmo nos casos em que a vontade da lei salte aos olhos, faz-se necessário a interpretação.
No caso em tela, o cheque é considerado uma das modalidades de título de crédito, sendo classificado como de modelo vinculado, ou seja, a lei estabelece quais os requisitos necessários para que possam ser assim considerados.
Ele apresenta como característica essencial tratar-se de título de crédito de pagamento à vista, sendo que, qualquer cláusula inserta na lâmina que tente retirar essa característica, é tida como não escrita, ineficaz (artigo 32, da Lei nº 7.357/85), como esclarece Fábio Ulhoa Coelho, em seu Manual de Direito Comercial.
Continua o indigitado autor, "A fraude é elemento do tipo, de sorte que o conhecimento, pela vítima, da insuficiência de fundos disponíveis importa na descaracterização da emissão como crime. Neste sentido, a emissão de um cheque pós-datado sem fundos não é comportamento criminoso". [8]
A interpretação que se faz quando se pós-data um cheque, é que não se quer tê-lo como cheque, e sim como garantia de dívida, assumindo portanto a roupagem de Nota Promissória, que nada mais é que uma promessa de pagamento que uma pessoa faz em favor de outra.
Com a aplicação no Direito Penal do princípio da legalidade, temos como efeito a taxatividade, que significa estabelecer a necessidade de precisão técnica dos termos utilizados nas normas penais.
Em virtude desse princípio, o vocábulo cheque, inserto no inciso sexto do parágrafo segundo do artigo 171 do Código Penal, deve ser entendido como título de crédito de pagamento à vista. Pós-datando o mesmo, desconfigura-o, sendo considerado como se Nota Promissória fosse.
Diz o artigo 171, § 2º, inciso VI do Código Penal, que incorre nas mesmas penas do crime de estelionato, o agente de "emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento" (grifos nossos).
Em direito penal a interpretação in malam partem é proibida, principalmente no que tange às normas penais incriminadoras.
Constata-se que, cheque diz respeito a título de crédito de pagamento à vista, e não a prazo, como ocorre no cheque pós-datado, tornando-se pois, atípica a conduta do emissor de cheque pós-datado.
Se não bastasse a presente constatação, o crime de estelionato exige para sua configuração a existência da fraude, o que não ocorre quando o sacador emite o cheque para pagamento futuro, pois o beneficiário tem plena ciência de que o mesmo não possui fundos na data da emissão.
Vejamos a jurisprudência a respeito, no Superior Tribunal de Justiça: "Comprovado mediante simples cotejo entre os fatos deduzidos na peça inaugural e os documentos que a acompanham, haver sido emitidos cheques, pré-datados, como garantia de dívida, fica desvirtuada a função de ordem de pagamento à vista, com exclusão da fraude caracterizadora do delito. Ordem de "habeas corpus" concedida para trancar a ação penal. Acórdão RHC 7620/RJ, Recurso Ordinário em HC 1998/0033745-8. Min. FERNANDO GONÇALVES (1107). SEXTA TURMA.".
No Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, as decisões são no mesmo sentido: "Estelionato. Pagamento feito com cheque pré-datado. Caracterização. Inocorrência: o cheque pré-datado representa garantia de dívida, o que desvirtua a sua função própria, não configurando o delito do art. 171, "caput", nem o do art. 171, § 2º, inc. VI, ambos do CP. APELAÇÃO. Processo: 1276959/9. Relator: OLIVEIRA PASSOS. Órgão Julg.: 2ª CÂMARA. Data : 22/11/2001. Ementa 119647."
Caso haja requerimento de instauração de Inquérito Policial formulado ao Delegado de Polícia, pelo fato de alguém ter emitido cheque pós-datado, o mesmo deve ser indeferido, devendo o Delegado manifestar por escrito, justificadamente o motivo, pois como demonstramos, o fato é atípico.
A parte deverá ser instruída no sentido de procurar a via judicial para ingressar com a ação de execução, em sendo o caso.
Ainda sobre a emissão de lâmina de cheque pós-datado, os Tribunais têm se manifestado no sentido de que, se eventualmente o beneficiário da lâmina vier a descontá-la antes da data aprazada, será cabível a indenização.
Notas
1GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1989, p. 52.
2FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1985, p. 24.
3JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002, vol. 1, p. 4.
4MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Ed. Atlas, 1991, vol. 1, p. 23.
5 FRAGOSO, Heleno Cláudio.
Lições de direito penal. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1985, p. 55.6 MOLINA, Antônio García-Pablos de.
Criminologia. Uma introdução a seus fundamentos teóricos. São Paulo: Ed. RT, 1992, p. 251.7CALLEGARI, André Luiz. IBCCRIM nº 70, setembro de 1998.
8 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. São Paulo: Ed. Saraiva, 1996, p. 263.