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A construção da responsabilidade penal do indivíduo no plano internacional

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O MUNDO PÓS NUREMBERG

Aproximadamente meio século depois da Segunda Guerra Mundial, com a eclosão dos conflitos sediado na região dos Bálcãs, na ex-Iugoslávia, a discussão sobre a responsabilidade do indivíduo internacionalmente foi reaberta.

Após a queda do muro de Berlim e, principalmente, pela bandeira nacionalista levantada por Slobodan Milošević, que instaurou “um regime de apartheid e inúmeras leis de exceção, proibindo jornais, rádio e televisão em língua albanesa, fechando museus, teatros e estúdios de cinema, enviando o exército à região e abolindo seu status de Província”[25], a ex-Iugoslávia foi palco de inúmeros crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes contra a paz, na medida em que a região se esfacelava ante os movimentos separatistas que desestruturaram o modelo federativo até então consolidado após a “era Tito”.

Carlos Eduardo Adriano Japiassú reproduz nitidamente o desenrolar da contenda Iugoslava:

Os conflitos na região balcânica remontam à Antiguidade, dada a composição multiétnica que correspondia à antiga Iugoslávia. Na região, são encontrados, entre outros, sérvios, croatas, eslovenos, macedônios, albaneses, muçulmanos, montenegrinos, turcos e húngaros. (...) Durante as quase quatro décadas, no entanto, sob a mão forte do governo Tito, a Iugoslávia se mantém unida e sem maiores problemas. Após a morte de seu líder, em 1980, e com o agravamento da situação econômica, por força do final dos regimes comunistas no Leste Europeu, nomeadamente, após 1987, os antigos ódios raciais ressurgiram intensamente. A primeira etapa do conflito ocorreu na Eslovênia, tendo começado quando esta República se proclamou independente da Iugoslávia, no dia 25 de junho de 1991. A segunda fase do conflito foi relativa à Croácia e o terceiro momento da guerra deu-se na Bósnia e Herzegovina. Por fim, houve o período do Kosovo.[26]

Assim, como uma forma de contratacar as emancipações, Milošević orquestrou a chamada “limpeza étnica” no território de seu domínio, incitando conflitos regionais, guerras civis que causaram a morte de no mínimo oitocentas mil pessoas[27] e promoveram o refúgio de milhões de pessoas, em um ambiente extremamente parecido com o vivenciado pelos judeus na Alemanha nazista. Bazelaire e Cretin descrevem a opressão exercida:

Ao sabor dos movimentos de população, a Iugoslávia torna-se um mosaico de Estados e uma constelação de povos mais ou menos concentrados. Alguns nomes de localidades simbolizam essa política deliberada de limpeza étnica: Vukovar, Sarajevo e Srebrenica especialmente. No dia 18 de novembro de 1991, a cidade croata de Vukovar (Eslavônia Oriental) cai nas mãos do exército federal sérvio (apoiado por milícias sérvias) após um cerco de três meses. A cidade é destruída e suas ruas são cobertas de cadáveres. Os mortos são estimados entre 3 mil e 5 mil, enquanto os desaparecimentos chegam a 4 mil. Mas o episódio mais significativo continua sendo a execução, nos arredores da cidade, a partir de 19 de novembro, de cerca de 200 pessoas retiradas do hospital municipal. Em Sarajevo, as coisas duram mais tempo, já que os habitantes sofrem um cerco de três anos e meio iniciado em 2 de maio de 1992. Durante todo esse tempo, faltam produtos elementares e a comida só chega graças a uma ponte aérea humanitária. Além disso, eles estão expostos às granadas sérvias que caem sobre as filas de espera diante das lojas ou nos mercados, e aos tiros dos snippers, que os espionam quando se deslocam. Quanto a Srebrenica, ela é um território muçulmano encravado na Bósnia Oriental. Ela cai nas mãos das tropas sérvias do general Ratko Mladic em 10 de julho de 1995. Imediatamente, uma parte da população foge atravessando a área sérvia para alcançar a cidade de Tuzla. Os homens são executados sistematicamente, as mulheres e as crianças são seviciadas. O número de vítimas poderia alcançar entre 8 mil e 10 mil pessoas.[28]

Visando recuperar o controle da região e reestabelecer a paz, o Conselho de Segurança das Nações Unidas editou diversas resoluções recomendativas. A primeira, n° 713, de 25 de setembro de 1991, exigia um embargo imediato de toda a remessa de armas e quaisquer equipamentos militares para a ex-Iugoslávia. A segunda, sucessiva, de n° 743, criou a United Nations Protection Force (UNPROFOR) que objetivava a proteção de civis na Croácia.[29] A terceira, n° 757, sugeria a punição de alguns militares iugoslavos. A quarta, n° 764, advertia a todos os que tomaram parte no conflito sobre a Convenção de Genebra de 1949. A quinta, n° 771, que atribuía aos delitos praticados no território iugoslavo afronta ao Direito Internacional Humanitário, também conhecido como “jus in bello”. Finalmente, a sexta resolução criou uma comissão de especialistas para, in locu, verificar quantas e quais violações às normas de Direito Internacional estavam sendo violadas no território conflituoso. A comissão atuou de 04 de novembro de 1992 a 15 de abril de 1994, encaminhando o relatório de investigação para o Conselho de Segurança.

Entretanto, mesmo com os diversos alertas emitidos pelas Nações Unidas, os beligerantes não recuaram, e o confronto resistia mesmo diante da desaprovação internacional. O fluxo de depuração étnica só crescia, o que exigia da ONU uma postura mais efetiva para fazer cessar o caos na região.

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Foi tão somente em 25 de maio 1993, por meio da Resolução n° 827, que o Conselho de Segurança criou o Tribunal Penal Internacional ad hoc para a ex-Iugoslávia, situado em Haia, na Holanda, com o fito de julgar os indivíduos que praticaram toda sorte de crimes no período entre 1° de janeiro de 1991 a 1999[30], com base no Capítulo VII[31] da Carta das Nações Unidas.

Estabelecido para julgar as violações às Convenções de Genebra de 1949 (artigo 2°) e aos costumes e leis de guerra (artigo 3°), os crimes de genocídio (artigo 4°)[32] e os crimes contra a humanidade (artigo 5°)[33], o alicerce do Estatuto do ICTY (International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia) é fundado nos princípios basilares da Nuremberg Charter, com algumas inovações.

A primeira, a introdução do princípio non bis in idem expressamente no artigo 10 do Estatuto, vedando novo julgamento pelo mesmo fato internamente, caso o processo internacional já tenha sido concluído.

A segunda, a incorporação do consagrado princípio da presunção da inocência, que possui a máxima de que “o acusado será presumido inocente até que seja provado culpado”, posto no artigo 21 do Estatuto.

E a última, a inclusão do princípio nemo tenetur se detegere, que se traduz no direito do réu de não produzir qualquer tipo de prova que o incrimine, conforme reza o artigo 21, ‘4’, “g”.

Difere-se também da Carta de Nuremberg por não admitir a pena de morte. Segundo o texto do artigo 24, todas as punições estão limitadas à reclusão, ainda que de caráter perpétuo, devendo o quantum ser fixado proporcionalmente a gravidade da ofensa e as condições pessoais do acusado. Prevê, também, a possibilidade de recurso da sentença, quando houver algum erro que diga respeito a legalidade da decisão ou quando houver erro de fato que promova falha no julgamento.

Até 2017, cento e sessenta e um indivíduos foram levados a julgamento perante o Tribunal Penal Internacional ad hoc para ex-Iugoslávia, sendo que dezenove foram absolvidos, oitenta e três condenados a penas de reclusão (dois esperam ser transferidos para a corte, dezesseis já foram transferidos para cumprirem a pena, cinquenta e seis já cumpriram totalmente a pena, oito morreram durante o cumprimento da sentença e dois possuem apelações pendentes no Mechanism for the International Criminal Tribunais – MICT)[34], treze foram encaminhado reportados para jurisdições nacionais, vinte tiveram suas acusações retiradas antes do mérito, dez faleceram antes da transferência ao ICTY, sete morreram após serem detidos, e dois serão submetidos a novo julgamento pelo MICT.[35] Dois processos ainda tramitam: O caso “Mladić, Ratko”[36] e o caso “Prlić et al.”, atualmente na Câmara de Apelação para julgamento do recurso.

Simultaneamente ao conflito dos Bálcãs e ao estabelecimento do International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia, o território de Ruanda também vivenciou anos de guerras civis sangrentas, protagonizadas pelas etnias Hutu e Tutsi, que compreendiam quase a totalidade do país.

Após o encerramento do regime colonial Belga, em 1950, que abriu caminho para a disseminação de ideologias étnicas pelos quatro cantos do país, o Manifesto Hutu[37], de 1957 e a eleição do presidente hutu Grégoire Kayibanda, em 1962, que cuidou de criar uma imagem vil dos tutsis, comparando-os a meros insetos, formou-se uma base sólida de preconceito racial que viria a culminar em inúmeros massacres no território ruandês.

Primeiro, em 1963, quando os hutus extirparam mais de dez mil tutsis e deslocaram outros tantos para regiões fronteiriças. Segundo, em 1972, quando aproximadamente oitenta mil hutus e tutsis, que se abstiveram de tomar parte no conflito, foram assassinados em menos de quatro meses.[38] Terceiro, em 1979, após a eleição de Juvenal Habyarimana, sucessor de Kayibanda, milhares de exilados tutsis formaram uma milícia[39] em Uganda visando a recuperação de porções de terras ocupados pelos hutus.

Não obstante os incontáveis conflitos durante o século, o ano de 1990 é marcado por uma campanha ostensiva dos meios de comunicação, como o Jornal Kangura e a Radio Telévision Libre des Mille Collines, que incitavam o genocídio dos tutsis retratando-os como uma ameaça fatal a qualquer um que cruzasse seu caminho, criando um contexto de aparente “legítima defesa” dos hutus ao matarem milhares de tutsis.[40]

O ponto mais crítico desse período se deu após o dia 06 de abril de 1994, quando uma aeronave que transportava o presidente de Ruanda e o presidente de Burundi é abatida, resultando em uma guerra civil descontrolada pelo país, que somou, ao mínimo, oitocentas mil mortes e realocou cerca de dois milhões de pessoas para outros territórios.[41] O relato dos sobreviventes às barbaridades é chocante:

De uma maneira geral, as vítimas são atacadas a golpes de faca, machado, cacete, barra de ferro e pau. Os carrascos, muitas vezes, cortam primeiro os dedos, depois as mãos, os braços, os joelhos, antes de cortar a cabeça ou rachar o crânio. Relatam as testemunhas que não é raro as vítimas suplicarem aos carrascos ou oferecerem dinheiro para ser executadas a tiro e não com um machado. Contam, também, que quando os tutsis trancam-se em uma casa ou em uma igreja, os militares, ato contínuo, trancam as portas, jogam granadas e deixam que as milícias terminem o trabalho. Desse tipo de massacre não escapam as crianças nos orfanatos, nem os feridos nos hospitais.[42]

Desse modo, tal qual foi feito para a ex-Iugoslávia, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, após sucessivas resoluções recomendativas, criou o Tribunal Penal Internacional ad hoc para Ruanda por meio da Resolução n° 955, de 08 de novembro de 1994 para processar e julgar os delitos praticados no território ruandês e nas proximidades.

Assim como o Tribunal Militar para o Extremo-oriente está para Nuremberg, o Tribunal Penal Internacional ad hoc para Ruanda está para a ex-Iugoslávia. O Estatuto de Ruanda é basicamente idêntico ao da ex-Iugoslávia, dada a sua proximidade temporal de estabelecimento. A única diferença digna de nota é a inclusão do Protocolo Adicional II, da Convenção de Genebra, que não fora incluído no ICTY.

O ICTR (International Criminal Tribunal for Rwanda) cessou seus trabalhos em 31 de dezembro de 2015, vindo a julgar noventa e três indivíduos, sendo que dezessete foram condenados à prisão perpétua, trinta e oito a penas de reclusão, quatorze foram absolvidos, treze foram transferidos para jurisdições paralelas (oito foragidos), três morreram antes da conclusão do processo, dois tiveram suas acusações retiradas e seis ainda esperam decisão do recurso.

À vista disso, cabe grifar que tanto o ICTY, quanto o ICTR de fato cumpriram os seus papéis de levar a julgamento aqueles que de alguma forma transgrediram a ordem internacional, muito embora possam ter tido problemas em estruturais, financeiros e principalmente políticos durante a sua existência. Promoveram, sobretudo, a cooperação internacional que até então residia inerte desde a Segunda Guerra Mundial e fizeram o papel de mostrar à sociedade internacional as chagas deixadas pela irracionalidade humana, cujo preço, em matéria de Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário, é imensurável.

Resta claro que ambos os tribunais criados pelo Conselho de Segurança afastaram o rótulo de “tribunal dos vencedores” deixado pelos Tribunais Militares, porém levanta a questão da legitimidade – ou não – do referido órgão das Nações Unidas de criar uma corte internacional. A tese levantada para defender a legalidade dos tribunais encontra respaldo no artigo 41 da Carta das Nações Unidas[43], segundo o qual o Conselho detém autonomia de decidir quais medidas – que não envolvam o uso de forças armadas – deverão ser empregadas para preservar a paz e a segurança.

Em conclusão, considerando o conjunto de críticas dirigidas a todos os tribunais estabelecidos desde Nuremberg até Ruanda, a sociedade internacional reputou necessária a criação de um Tribunal Penal Internacional permanente que extinguisse por completo a imparcialidade dos tribunais de exceção, alocado em algum país neutro. Por essa razão, uma vez gradativamente consolidada a responsabilidade criminal do indivíduo no plano internacional por meio dos tribunais ad hoc do século XX, estabeleceu-se o International Criminal Tribunal (ICC), em Haia, na Holanda, que carrega em si todos os pontos positivos de cada Estatuto dos tribunais pretéritos e abandona todos – ou quase todos – os pontos negativos de cada um, em busca do aperfeiçoamento do jus puniendi internacional e a consequente manutenção da paz.

Sobre os autores
Renan de Marco D'Andréa Maia

Advogado. Mestrando em Direito e Desenvolvimento [FDRP-USP]. Especialista em Direito Internacional pela Faculdade Padre Arnaldo Janssen.

Yuri Valladão Carvalho

Pós-graduando em Direito e Processo Civil pela Faculdade Legale. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Moura Lacerda – Ribeirão Preto/SP. Atua como advogado autônomo nas áreas de Direito de Família e Cível. (OAB/SP n° 414.821).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA, Renan Marco D'Andréa; VALLADÃO, Yuri Carvalho. A construção da responsabilidade penal do indivíduo no plano internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6230, 22 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66770. Acesso em: 22 dez. 2024.

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