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“Sine cera” — O espírito do combate à corrupção

Agenda 09/06/2018 às 19:59

O berço da palavra “sinceridade” não emergiu ao acaso; foi forjada pelo povo Romano em meio a uma história que se liga à corrupção.

NUNCA SABEMOS QUANDO SOMOS SINCEROS. TALVEZ NUNCA O SEJAMOS. E MESMO QUE SEJAMOS SINCEROS HOJE, AMANHÃ PODEMOS SÊ-LO POR COISA CONTRÁRIA.

– FERNANDO PESSOA –

“Sine cera” parece grego, malgrado seja latim, mas em português significa “sinceridade”. O berço da palavra “sinceridade” não emergiu ao acaso; foi forjada pelo povo Romano em meio a uma história que se liga à corrupção.

Em Roma, alguns ceramistas desonestos costumavam preencher as imperfeições das estátuas com cera, a fim de manter o seu alto valor de aquisição para enganar os compradores.  Com o tempo os compradores foram descobrindo tais artimanhas e as denominavam “cum cera”. Valendo-se disso, profissionais honestos faziam questão de dizer que suas esculturas eram “sine cera”, ou seja, perfeitas, puras e sem cera.

Atualmente, sinceridade exerce contexto antagônico: para o bem ou para o mal. Considere que determinado indivíduo, ao vender produto pela internet, informe para o consumidor acerca de vício existente na mercadoria. A postura do credor foi justa, não obstante possa ter influído no poder de aquisição do adquirente, aquele agiu genuinamente. Por outro lado, em um ambiente de trabalho, o excesso de sinceridade exaurida de “conveniência e oportunidade” coloca o equilíbrio da equipe em xeque. Esse seria um mal sobre o qual as organizações modernas almejam evitar, e o peso da harmonia brilha mais que valor do currículo.

POUCA SINCERIDADE É UMA COISA PERIGOSA, E MUITA SINCERIDADE É ABSOLUTAMENTE FATAL. 

– OSCAR WILDE –

Até aqui já se consegue ter uma ideia de qual sinceridade é essencial para reconstruir os valores de uma nação. A resposta é óbvia, queira-se as duas: "sinceridade justa”, e "sinceridade equilibrada”. Ambas, compondo o arcabouço de "sine cera” dão à expressão romana espírito de legitimidade. No entanto, a sinceridade equilibrada deve ser usada para afastar inconvenientes, e não no intuito de omitir fatos que a lei descreve como crime, a exemplo do falso testemunho, impresso no art. 342 do Código Penal Brasileiro.

No âmbito da corrupção, Meishu-sama acentuava que a deficiência política resulta da falta de sinceridade; e acrescentou, ipsis litteris:

Para sabermos se uma pessoa age com sinceridade ou não, temos um meio muito simples: ver se ela respeita seus compromissos. Deixar de cumprir os compromissos parece – à primeira vista e em certos casos – coisa de pouca importância. Mas, na verdade, significa enganar, e isso constitui uma espécie de pecado. Portanto, é assunto que merece a máxima atenção. (Retirado do livro ‘Alicerce do Paraíso)

Corroborando o pensamento do ilustre pensador, sobram paradigmas na história do Brasil em que a falha nos compromissos levou a uma série de acontecimentos danosos ao povo. Nesta senda, porque não citar o episódio em que D. João VI abandona o Brasil-colônia saqueando o Banco do Brasil em 1821; ou, mais recentemente, os inúmeros casos de crimes econômicos que fizeram da Operação Lava Jato um fenômeno no combate à corrupção.

Ainda no bojo desse desvirtuamento social, certo candidato à presidência da República, em 2018, concedeu entrevista a uma rádio famosa. Essa entrevista foi exibida pela internet, e tratou-se de feroz sabatina a despeito das conjunturas que assolam o país. Ocorre que, o concorrente a Chefe do Executivo, quando questionado sobre eventuais benefícios imorais que, indubitavelmente, deveriam ser extintos, não respondeu honestamente à indagação do jornalista, eis que tal privilégio atingiria a classe específica da qual ele veio. Foi a única questão da qual o aspirante a presidente se esquivou; na certa pelo temor da perda de votos.

Naquele cenário, por causa daquela única assertiva, o postulante à cadeira presidencial faltou com o compromisso por não se posicionar objetivamente, fato obscuro, porque suas promessas eleitorais costumam transcender a esfera de atuação do Executivo. Se se quer ser o caminho para desalojar a corrupção, é mister iniciar-se por si mesmo, evitando introduzir ceras nas palavras. O ato roga por reticidade e probidade: “sine cera”.

Diante de tudo que se pretendeu explicar, não restou incerta a noção de que a sinceridade é componente que necessita figurar na cultura da nação. Quem chega ao topo da cadeia política, obriga-se a observar os valores intrínsecos que o cargo merece, tais como a Lei e a Moral, ínsitos da concepção antropológica de cultura formulada por Edward. B. Tylor.

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É pesaroso reconhecer que os direitos e garantias inseridos na Carta Magna encontram imensas dificuldades para alcançar esse sentimento de pureza. Isto porque, mesmo presentes os dispositivos asseguradores, e, ainda que esses mandamentos gozem de eficácia imediata, conforme art. 5º, parágrafo primeiro, a carência de boas ações abre uma fenda na sociedade, e tal fissura inibe o potencial poder da Constituição na vida das pessoas.

O Brasil está nascendo de novo. Está se recuperando. Note, o Compliance, que já existia, mas agora veio para oferecer novo paradigma às relações empresariais; o projeto de Lei sobre a proteção de dados pessoais, há pouco aprovado pela Câmara dos deputados no Congresso; a restrição do foro privilegiado, como resposta dos tribunais superiores. São ajustes com espeque na vontade do brasileiro por mais compromisso, e são, inexoravelmente, o prelúdio da luta sincera contra a corrupção.

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Notas de agradecimento: A Gustavo Quites, por sempre ser um grande irmão; a dedicatória ainda é insuficiente para agradecer por todo o apoio que tem me dado. A Humberto Muax, pela crítica e ideia de mais exemplos. A Max Ferraz, como brilhante advogado que és, sua leitura foi uma honra.

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