INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo discutir os efeitos da aplicação do princípio da juridicidade na atuação administrativa, considerando como ambiente de análise o sistema jurídico brasileiro.
Sabe-se que muito se questiona sobre qual seria a liberdade do agente público quando da tomada de decisão no exercício de sua função, ficando a discussão até hoje adstrita às noções de ato vinculante ou discricionário, discussão esta cuja a base está no conceito de legalidade administrativa, desprezando-se muitas vezes os demais princípios da Administração, estabelecidos no art. 37 da Carta Magna, quais sejam o da moralidade, da impessoalidade, da publicidade e da eficiência, quando da apreciação de atos, no caso concreto.
O mote da discussão proposta neste trabalho está em torno do próprio conceito de legalidade, que se vê ampliado à luz do princípio da juridicidade, conferindo maior liberdade de interpretação e atuação ao administrador público. Afinal, como afirma Barroso (2002, p. 149) não há mais que se falar em diferença ou hierarquia entre norma e princípio, pois:
“[...] a dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as norma-princípio e as norma-disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já às normas-princípio, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema".
A discussão a que este trabalho se propõe busca expandir a noção de liberdade interpretativa da lei e da própria atuação do administrador público para além da mera discricionariedade, isto é, seu objetivo está em responder a seguinte pergunta de pesquisa: Quais os efeitos da aplicação do princípio da juridicidade na atuação do agente público?
Para tanto, foi realizada uma pesquisa com objetivo descritivo, de natureza qualitativa, por meio de procedimento bibliográfico, em foram analisadas obras da literatura especializada, legislações e decisões judiciais a respeito da matéria, com o fito de se formar a convicção que será apresentada na conclusão deste artigo.
DESENVOLVIMENTO
A discussão acerca da liberdade decisória do agente público remonta os tempos mais remotos da civilização, seja em burocracias antigas como as dos Impérios Chinês e Egípcio, seja em contextos mais recentes, como no Império da Prússia no final do Século XVIII. Isto é o que relata o célebre sociólogo Max Weber quando dos seus escritos sobre a formação do pensamento burocrático como base sistema de gestão estatal. O autor, após longa explanação a respeito desses diversos contextos, argui que o problema central na liberdade do arbítrio do agente público é a pessoalidade das decisões e a imprevisibilidade que dela decorre, sendo os fatores que fundamentaram todo o conjunto de controles típico do sistema burocrático e, por sua vez, a base do Direito Administrativo como o conhecemos.
Weber (1978) defendia que a atuação do poder público deveria ser previsível e desvestida de pessoalidade, e, para tanto, deveria estar baseada em normas explícitas lastreadas em leis ou regulamentos, retirando-se a liberdade de decisão do agente público, eliminando-se assim o risco de favorecimentos pessoais e contrários ao interesse público. O que poderia se chamar de uma dogmática estabelecida por Weber é paradigmático e norteou o pensamento administrativo no Brasil e no Mundo por décadas, o que só mais recentemente vem se alterando, embora fosse alvo de críticas há mais tempo.
A força desta posição é demonstrada em afirmações como a do respeitado administrativista Hely Lopes Meirelles, que em sua obra Direito Administrativo Brasileiro assevera que “Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa ‘poder fazer assim’; para o administrador público significa ‘deve fazer assim’.” (MEIRELLES, 2000, p. 82). Mas, como já fora citado, já havia quem defendesse maior liberdade de atuação do agente público.
Neste contexto, ratifica Di Pietro (2010), citando o grande autor Cretella Júnior, que, nas origens do Direito Administrativo, a função deste ramo do direito era de tão somente interpretar as normas escritas, ou seja, a mera aplicação do que estava positivado, dando origem à chamada Escola legalista, exegética ou caótica do Direito Administrativo. Essa posição, embora seguida por diversos jurisconsultos, dentro e fora do Brasil, era profundamente criticada pelo mesmo autor, pois, segundo ele, se o direito privado não era capaz de prever todas as situações da vida cotidiana em sociedade, como isso seria possível ao Direito Administrativo? Para Cretella Júnior apud Di Pietro (2010, p. 41), portanto, o Direito Administrativo deve ser compreendido como o resultado do trabalho árduo de operadores do Direito e juristas, formando uma massa incremental de conhecimento, baseado em princípios que evoluem com a própria sociedade, não podendo se restringir à mera interpretação da lei.
Neste mesmo sentido, como afirma Sicca (2008), “Celso Antônio Bandeira de Mello, já na década de 1970, proporcionou grande inovação no Direito Administrativo brasileiro ao tratar o tema da discricionariedade em termos diversos daqueles apregoados até então”. Para o renomado autor, a discricionariedade do administrador não estaria adstrita aos casos em que a lei expressamente lhe autorizasse, por meio de balizas prévias, a decidir sobre o que fazer, mas também a possibilidade de um exercício hermenêutico, buscando resolver imprecisões terminológicas da lei, a partir de técnicas interpretativas fundadas em racionalidade jurídica.
Mas é no início dos anos 2000 que o princípio da juridicidade começa a tomar força no Brasil, em um movimento influenciado, principalmente, por autores portugueses como Maria João Estorninho (1999) e Diogo Freitas do Amaral (1999), os quais passaram a defender a expansão do princípio da legalidade em face da nova ordem jurídica estabelecida, mormente a partir do crescimento da corrente neoconstitucionalista, a qual passou a conferir maior importância ao trabalho interpretativo do operador do direito, para a solução das demandas colocadas nos casos práticos do cotidiano, para além da disposição abstrata da lei.
Embora possa parecer uma temática afeta ao judiciário ou aos seus tribunais superiores, a questão da aplicação do princípio da juridicidade no âmbito administrativo é hoje uma realidade, sendo inclusive para baliza para a apreciação judicial dos atos administrativos.
O que se pergunta então é quais seriam os efeitos da aplicação do princípio da juridicidade na atuação administrativa? Ele conferiria, afinal, maior liberdade de atuação ao agente público no exercício de suas funções?
Da análise dos estudos, ainda parcos, realizados sobre o tema, o que pode-se depreender é que o princípio da juridicidade passou a ser inafastável de qualquer ato administrativo e ampliou sim a liberdade de atuação e interpretação normativa do agente público em todos os níveis, extrapolando a lógica da legalidade estrita até então vigente.
Como afirmam Silva (2015) e Girão (2012) o princípio da juridicidade não veio para substituir o da legalidade, mas para complementá-lo quando da formação e do exame dos atos administrativos, destarte, o exercício da função administrativa passou a estar sujeito ao que se denominou de bloco de legalidade, que nas palavras de Estorninho (1999) deve ser compreendida como “a subordinação ao direito como um todo, implicando submissão a princípios gerais de direito, à Constituição, a normas internacionais, a disposições de caráter regulamentar, a atos constitutivos de direitos, etc”. Claro que, prima facie, pode soar como restrição administrativa, mas de mais a mais, significa notoriamente que a obediência a um sistema vai muito mais ao encontro do interesse público do que a um único regulamento, insulado, desconectado dos princípios e valores caros para a sociedade na qual está inserido.
O princípio da juridicidade é, portanto, “um novo princípio que visa nortear as ações dos gestores públicos [...] na busca da garantia objetiva dos direitos fundamentais do cidadão consumidor de serviço público assim como, dos deveres explícitos e implícitos da administração pública para com os seus administrados, ou com ela mesma em suas ações costumeiras” (FERNANDES e FERNANDES, 2013).
O princípio da juridicidade é a manifestação da própria mudança da função do Estado como promotor do bem-estar social, para além do mandamento da não-intervenção, típico do estado liberal. Destarte, não cabe ao administrador apenas aplicar a lei, mas buscar a partir dos seus atos, aplicá-la segundo os princípios erigidos pelo sistema constitucional em que o dispositivo está inserido (dignidade da pessoa humana, igualdade, cidadania, etc.) e os estatuídos em tratados internacionais e demais normas que formem o bloco constitucional do sistema normativo do país (SILVA, 2015).
Em sendo assim, o que se espera não é mais a obediência cega do administrador ao mandamento explícito da lei, mas a decisão mais adequada, segundo o caso concreto, devidamente fundamentado nos princípios constitucionais, supraconstitucionais e jurídicos do sistema, podendo, inclusive, contrariar a estrita legalidade, quando esta decisão melhor se amoldar ao direito. É o que afirma Binenbojm (2006, p. 139):
A atividade administrativa realiza-se, via de regra: (i) segundo a lei, quando esta for constitucional (atividade secundum legem), (ii) mas pode encontrar fundamento direto na Constituição, independente ou para além da lei (atividade praeter legem), ou, eventualmente, (iii) legitimar-se perante o direito, ainda que contra a lei, porém com fulcro numa ponderação da legalidade com outros princípios constitucionais (atividade contra legem, mas com fundamento numa otimizada aplicação da Constituição). (grifo da autora)
Noutra senda, há autores como Coelho (2013) e Girão (2012) chegam a aduzir um entendimento de que, ao contrário do entendimento defendido neste artigo, em vez de uma ampliação do arbítrio do agente público ou da Administração em suas decisões, a partir da observância do princípio da juridicidade, o que teria ocorrido foi a restrição da atuação administrativa, sob o argumento de que se antes o agente público estava sujeito apenas ao jugo da lei, agora também está sob as restrições do bloco de legalidade, isto é, dos princípios formadores do sistema jurídico em que o ato está inserido, ampliando, por sua vez, a possibilidade de controle do mérito administrativo pelo judiciário.
Neste ponto, ousamos discordar dos citados autores, na medida em que pelos argumentos já esposados ao longo deste texto, o fato de o administrador poder invocar princípios supra e constitucionais para agir, inclusive na lacuna da lei, demonstra o seu empoderamento e não o contrário, como defendido por eles.
Neste sentido, vale dizer que se havia alguma dúvida acerca de uma desejável liberdade de atuação por parte do agente público, no exercício do seu cargo, a publicação recente da Lei Nacional 13.655, de 25 de abril de 2018, dirime qualquer hesitação, na medida em que autoriza o agente público a decidir para além da estrita legalidade, aplicando princípios que chamou de abstratos, desde que sejam apontadas, expressamente, as consequências da decisão proferida (BRASIL, 2018).
Denota-se, portanto, que não houve restrição legal à liberdade decisória do administrador, mas tão-somente o chamamento à responsabilidade do seu ato. Como cita Oliveira Júnior (2004), os princípios inafastáveis do ato administrativo são a supremacia do interesse público e a indisponibilidade dos interesses da Administração. Destarte, depreende-se que observados estes primados, a probabilidade de acerto da decisão administrativa é muito grande, pois não há como haver interesse público sem que sejam observados os princípios constitucionais e supraconstitucionais que formam o sistema jurídico em que se insere o ato em si.
Uma questão última, e muito importante, é a possível imprevisibilidade das decisões administrativas, o que ameaçaria a segurança jurídica e a própria credibilidade da administração. Neste sentido, a lei em comento estabeleceu em suas disposições a obrigatoriedade de a Administração Pública fazer publicar súmulas, regulamentos e responder a consultas feitas pelos interessados, devendo-se ressaltar que as manifestações da Administração, em todos os casos, passam a ter caráter vinculante, de modo que qualquer alteração de entendimento só terá efeito ex nunc, evitando-se assim casuísmos que possam oportunizar o atendimento de demandas pessoais, em detrimento do interesse público.
CONCLUSÃO
Em face de todo o exposto, pode-se concluir que o princípio da juridicidade veio complementar o princípio da legalidade, de modo a tornar a atuação administrativa mais consentânea à nova ordem constitucional e jurídica pós-positivista, em que a aplicação dos princípios como fontes primevas do direito apresenta-se como mais satisfatória ao atendimento do interesse público e das demandas sociais.
Restou demonstrado que a aplicação do princípio da juridicidade à atuação administrativa ampliou a liberdade decisória do agente público, permitindo, inclusive, que ele possa decidir na lacuna da lei ou contra disposição expressa de lei, desde que sua decisão esteja lastreada no bloco de legalidade formado pelos princípios constitucionais e supraconstitucionais aplicáveis ao caso concreto. Tudo isso não eliminou a sua responsabilidade ou a possibilidade de revisão do ato pelo judiciário, o que mantém íntegro o sistema administrativo, calcado nos primados da supremacia do interesse público e na indisponibilidade dos interesses da Administração.
REFERÊNCIAS
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