04. Aspectos Processuais para a Concretização da Desapropriação Especial.
Não adianta a legislação prever a existência de um direito subjetivo, se o sistema não conceber a forma como concretiza-lo coercitivamente.
Tal assertiva não seria diferente no campo da aqui estudada "Desapropriação Especial", ainda mais que a mesma somente se realiza no campo do processo, motivo pelo qual entender como operacionalizá-la é importantíssimo.
Façamos a construção de como o instituto se materializaria.
04.01. Da Premissa Básica – Ajuizamento de Ação Reivindicatória.
Como é cediço, a ação reivindicatória é o meio processual, fundamentado no direito de seqüela, pelo qual o proprietário, privado do seu bem, pretende reavê-lo, em mãos de quem quer que o injustamente o detenha.
Seu ajuizamento, portanto, pressupõe a divisão da posse, em que o proprietário – possuidor indireto – não tem mais a posse direta do bem, que se encontra com terceiros, sem causa jurídica.
É justamente nessa ação – daí a menção no § 4° à expressão "imóvel reivindicado" – que se poderá concretizar tal forma de desapropriação, embora nada impeça que, atendidos outros requisitos específicos, intentem os possuidores outras pretensões possessórias, como a própria ação de usucapião.
Isso porque a prescrição aquisitiva exigiria, por sua vez, um lapso temporal maior, haja vista que se trata de uma "extensa área", sendo inaplicável o qüinqüênio da usucapião especial.
Na opinião sempre abalizada, porém, de Teori Albino Zavascki, "o conflito de interesses poderá surgir não apenas no âmbito de ações reivindicatórias, como suposto no dispositivo, mas também em interditos possessórios, não sendo plausível negar-se, nessas situações, a utilização, pelos possuidores demandados, das prerrogativas asseguradas pelo instrumento agora proposto. O que se quer, em suma, enfatizar, é que a interpretação teleológica do dispositivo haverá de presidir a sua aplicação, seja para preencher valorativamente os conceitos abertos, seja para acomodar sob seu pálio as possíveis variantes análogas que a realidade vier a apresentar no futuro" [23].
04.02. Dos Requisitos para Reconhecimento do Cabimento da Desapropriação Especial.
Para que o magistrado, titular do Juízo perante o qual corre a ação reivindicatória – a priori, uma vara civil da Justiça Estadual – possa reconhecer o cabimento da desapropriação, faz-se mister a concorrência de alguns requisitos.
Tais requisitos são, por certo, alguns dos causadores da enorme celeuma que envolve o instituto ora em análise, pois constituem – todos, sem exceção! - em conceitos jurídicos indeterminados, que somente poderão ser colmatados pela atuação do magistrado.
O primeiro requisito é se tratar de extensa área.
O que seria considerado uma área suficiente extensa para aplicação do instituto?
Embora, como todo conceito aberto, ele possa ter uma colmatação diferente, parece-nos que, de forma apriorística, podem ser afastadas as áreas de terra que ensejem a usucapião especial, tanto rural, quanto urbana.
Isso porque seria ilógico se falar em desapropriação – forma onerosa de expropriação – se a hipótese já enseja a prescrição aquisitiva, aquisição originária e gratuita de propriedade.
As expressões "posse ininterrupta e de boa fé" podem ser utilizadas, aqui, na mesma acepção das ações possessórias em geral.
"Considerável número de pessoas", por sua vez, é uma expressão imprecisa demais. Fixar um número mínimo, embora razoável quando se quer buscar segurança em relações jurídicas, soaria leviano no caso concreto, pois o importante é perceber que haja uma pluralidade de indivíduos utilizando o bem imóvel, como se seu fosse.
"Obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante" é, por fim, o último requisito e, por ironia, o mais aberto de todos.
A análise do caso concreto permitirá vislumbrar o atendimento desse requisito. O que nos parece relevante destacar, desde logo, é que, dado o sentido social da norma, o requisito deve ser melhor interpretado com a troca do conectivo "e" pelo disjuntivo "ou", qual seja, entendendo-se como "Obras ou serviços considerados pelo juiz de interesse social ou econômico relevante", pois o mais importante é demonstrar o bom uso que se está fazendo da propriedade, realizando-se justiça social com a transferência da propriedade pela atuação judicial.
04.03. Da Fixação da Indenização.
O § 5° do art. 1228, como visto, estabelece que "o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário" e que, acrescentamos nós, somente "pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores".
A situação é, realmente, heterodoxa, mas perfeitamente compreensível.
Estabelece-se a possibilidade de uma desapropriação especial, pela via judicial, com o fito de preservar um interesse social relevante, mas isso não quer dizer que o proprietário deva ficar a ver navios.
Se, por certo, reconhecida a situação fática caracterizadora da desapropriação judicial, cessará a pretensão reivindicatória, isso não quer dizer que a propriedade se transferirá ipso facto.
Não se está confiscando a propriedade alheia, mas sim desapropriando, com pagamento de justa indenização.
E somente com esse pagamento é que se legitima a transferência da titularidade do imóvel reivindicado.
E quem deve pagar este valor?
É o que veremos no próximo e derradeiro sub-tópico.
04.04. Da Responsabilidade pelo Pagamento da Indenização e da Competência para Executá-la.
Se há um direito subjetivo à percepção de uma indenização e se a hipótese legal é de desapropriação, não temos dúvida de que o responsável final pelo pagamento é a Administração Pública.
Mas qual das esferas do Estado deve ser responsabilizado no caso concreto.
Nesse ponto, temos a convição de que, para os imóveis rurais, tal indenização deve ser adimplida pela União, seja por força da regra constitucional dos arts.184 a 186, seja pela estrita observância dos critérios estabelecidos pela Lei 8.629, de 25/05/1993 (com a redação conferida pela Lei 10.279, de 12/09/2001, e Lei Complementar 75, de 06/07/1993).
Nesse caso, como a ação reivindicatória corre, normalmente, na justiça estadual, com o reconhecimento da situação fática caracterizadora da desapropriação especial, devem os autos serem remetidos à Justiça Federal para a devida execução.
E tal conclusão não é inovadora no nosso ordenamento jurídico.
Na Consolidação das Leis do Trabalho, por exemplo, estabelece o art. 486 que "No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável".
Neste caso, estabelecem os parágrafos do mencionado dispositivo:
"§ 1º - Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria.
§ 2º - Sempre que a parte interessada, firmada em documento hábil, invocar defesa baseada na disposição deste artigo e indicar qual o juiz competente, será ouvida a parte contrária, para, dentro de 3 (três) dias, falar sobre essa alegação.
§ 3º - Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum."
Todavia, embora não haja qualquer limitação formal no texto do CC-02, o fato é que, aparentemente, o novel dispositivo foi concebido para imóveis localizados em área urbana, não sendo invocável a responsabilidade da União, no particular.
Nesse ponto, concordamos inteiramente com a Juíza Mônica Castro, ao afirmar:
"Parece que o ônus será do Município em que localizada a área, haja vista que o comando do plano diretor da cidade é da competência exclusivamente municipal. Há uma co-responsabilidade na tolerâncai da ocupação de terrenos com a criação de verdadeiras favelas, nascidas de invasões pelos que não têm moradia.
Nesse sentido, a regra constitucional estampada no art. 182 que impõe ao Poder Público Municipal o dever de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
No mesmo diapasão, a norma inserida no art. 39 do Estatuto da Cidade, ao estatuir que a propriedade urbana atende à sua função social quando cumprir as exigências fundamentais da ordenação da cidade expressas no plano diretor.
Não se pode olvidar que a desapropriação administrativa prevista no art. 8º. do mesmo diploma legal é efetuada pelo Poder Público Municipal como cumprimento de seu poder-dever de realizar o adequado ordenamento da cidade" [24]
05. À guisa de conclusão.
O momento histórico vivido no Brasil, em razão do novo Código Civil é bastante singular. Comentários, resenhas, monografias, escritos os mais diversos, enfim, são produzidos e distribuídos nos quatro cantos da nação. Do ponto de vista da agilidade da informação, fica evidente que o Código de 2.002 leva uma extraordinária vantagem sobre o de 1.916, produzido numa época de comunicação incipiente, comparando-se com a atual.
Se, por um lado, a produção acadêmica é abundante, de outro, encontra-se, paradoxalmente, uma dificuldade para o leitor de conhecer os textos já elaborados. A ânsia do saber muitas vezes é incompatível com a qualidade do mesmo. A reflexão deve ser a tônica do estudo. Não a reflexão precipitada, mas aquela aprimorada pelo tempo e pela paciência.
Observa-se nos bancos acadêmicos indagações desesperadas sobre o sentido e o alcance de uma ou de outra norma mais polêmica. Verifica-se nos fóruns a curiosidade profissional e o receio que lhe é inerente, sobre a interpretação que será dada sobre um ou outro dispositivo.
Todavia, o Código Civil não tem ainda 2 anos de vigência. É, portanto, uma criança no tempo e, similar às crianças, ainda não consegue se expressar, faltando-lhe o amadurecimento, a robustez, o tempo...
Aguarda-se que, ao lado da doutrina, advenham as primeiras decisões, para que então se estabeleça a dialética interpretativa mais acurada.
Não são os juristas que têm as palavras finais sobre a norma.
Aliás, ninguém detém "palavra final" sobre a norma, pelo menos no campo da construção doutrinária.
O processo interpretativo é contínuo e, nesse particular, o Código de 2.002 foi muito feliz, transferiu aos juízes, advogados, promotores e demais operadores do direito, uma liberdade exegética não antes conhecida pelo Direito Civil brasileiro.
No caso específico do direito de propriedade - e mormente na hipótese do artigo 1.228 e seus parágrafos - sinaliza a norma para a sensibilidade do advogado, do promotor e dos representantes estatais, mas, principalmente, do juiz. A ele, a norma dirige um apelo contundente: Examinem cada caso com um olho na lei e outro na situação social e humana. Sejam juízes de direito, de fato e primordialmente, do fato.
Por tudo isso, afirma-se, sem medo de aparentar excessiva utopia, que a lei civil humanizou-se em matéria de direitos reais, criando vínculos de interesse que, outrora, primavam pela frieza puramente patrimonial. Resta aguardar que a ousadia normativa seja reproduzida pelo Judiciário.
06. Bibliografia consultada.
ARAÚJO, Fabiana Pacheco de. Desapropriação Judicial por Interesse Social – Art. 1.228, §§ 4° e 5° do Novo Código Civil in www.mundojuridico.com
BARRETO, Carla Andrade. Efeitos da Ação Reivindicatória previstos no Parágrafo 4º. do Artigo 1.228 do Novo Código Civil in www.mundojuridico.com
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ZAVASCKI, Teori Albino. "A Tutela da Posse na Constituição e no Projeto do Código Civil" in MARTINS-COSTA, Judith (organizadora). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT, 2002, p.843/861.
Notas
1 GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macísta Malheiros. Fundação Calouste Gulbenkian. 3ª edição. Lisboa. 2.001
2 Idem, ibidem.
3 Ver Código Civil Suíço – arts. 641/643; Código Civil Italiano – arts. 832/834; Código Napoleão – arts. 544/546; e Código Civil Alemão – art. 903. Não é diferente o sistema brasileiro, tanto no CC-16 ("Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua "), quanto no caput do novel CC-02 ("Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha";
4 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. Ed. Forense. Rio de Janeiro 1.956, 4ª edição atualizada por José de Aguiar Dias, págs. 111/112.
5 TEPEDINO, Gustavo. "Contornos constitucionais da propriedade privada" in DIREITO, Carlos Alberto Menezes (coordenador). Estudos em homenagem ao Professor Caio Tácito. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.321/322.
6 GOMES, Orlando, Direitos Reais, 19 ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004 (atualizada por Luiz Edson Fachin), p.128.
7 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Ed. Saraiva. 17ª edição, p. 217/226.
8 Idem, Ibidem.
9 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder, do original Der ursprung der Familie, des Privateigentaums und des Staats. Bertrand Brasil, 15ª edição.
10 Idem, ibidem.
11 Art. 1.228. "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
12 GAGLIANO, Pablo Stolze, e PAMPLONA FILHO, Rodolfo, Novo Curso de Direito Civil, vol. I, Parte Geral, 5ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p.__.
13 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Parte Geral, v. 1. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, pág. 314.
14 "XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.
XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;"
15 WALD, Arnold. Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito das Coisas. Ed. Saraiva, 11ª edição (revista, aumentada e atualizada com a colaboração dos Professores Álvaro Villaça Azevedo e Véra Fradera, pá.g. 183.
16 Ver em Código Civil Italiano, traduzido diretamente do italiano por SOUZA DINIZ, Distribuidora Récord Editora, Rio de Janeiro, 1961.
17 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, v. 3: direito das coisas, 37ª edição, revista e atualizada por Carlos Alberto Dabus Maluf, p. 86. São Paulo. Saraiva, 2003.
18 Idem, Ibidem, p. 87
19 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Ed. Saraiva. 17ª edição, p. 178.
20 Idem, ibidem, p. 178.
21 ZAVASCKI, Teori Albino. "A Tutela da Posse na Constituição e no Projeto do Código Civil" in MARTINS-COSTA, Judith (organizadora). A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT, 2002, p.853/854
22 NERY JÚNIOR, Nélson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados. Ed. RT, São Paulo, 2.002, p. 419.
23 Ob. cit., p.852.
24 CASTRO, Mônica. A Desapropriação Judicial no Novo Código Civil in www.mundojuridico.com