4. DOS ARGUMENTOS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE E DA ANVISA PARA A RESTRIÇÃO E SUA PROVÁVEL RAZOABILIDADE.
É inegável que o Poder Público trata os HSH de uma forma totalmente discriminatória, pois o tratamento que a portaria 158/16 e a resolução 34/14 descrimina esse grupo de pessoas em um fundamento totalmente de orientação sexual. Mas cumpre aqui destacar o argumento trazido pelo Poder Público em resposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543.
O Poder Público argumenta que tal restrição se dá no sentido de que é dever do Estado proteger a população em geral de contrair algum tipo de vírus em suas transfusões sanguíneas, bem como deixar os estoques dos núcleos de hemoterapias e derivados do país livres de qualquer infecção, por meio dos princípios e diretrizes da Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados, através das “evidências epistemológicas e técnico-científicas”.
A principal fundamentação dos argumentos apresentados é, segundo o Ministério da Saúde e a ANVISA, um estudo da Organização Mundial da Saúde – OMS[14], estudo esse que havia sido publicado em outubro de 2015, onde apontam os grupos de pessoas que tem mais probabilidade de contraírem HIV, onde estariam presentes os HSH. Apresenta, também, um estudo da Cochrane Library[15] sobre os grupos que possuem mais probabilidade de contrair o HIV.
Porém, os métodos adotados pelo Poder Público são totalmente superficiais, pois o estudo em si aponta que não são as relações entre homens que tem relação sexual com homens que aumentam a infecção do vírus HIV, principal argumento utilizado, mas sim a relação sexual anal sem o uso de preservativo. Tal assunto é abordado em diversos mecânicos internacionais de saúde pelo mundo, podemos observar, em um estudo da Centers for Disease Control and Prevention[16], que a relação sexual anal desprotegida é de fato o meio sexual com maios risco, e tal relação não é só praticada pelos HSH, mas também pela população em geral.
O dispositivo da Portaria 158/16 do Ministério da Saúde e o dispositivo da Resolução 64/14 da ANVISA não mencionam, em nenhum momento, o uso de preservativo como um critério para a seleção do doador, afinal o uso de preservativo é o método com mais eficiência para a prevenção do HIV. Logo, o Poder Público não está preocupado em um comportamento de risco[17] do indivíduo e sim no grupo de risco, pois é como classifica os gays e bissexuais.
Diante dos argumentos trazidos pelo Poder Público é nítido que a principal preocupação é a transmissão do vírus HIV e das Hepatites B e C, para a população em geral, porém devemos levar em consideração que a janela imunológica para a detecção do vírus não é mais de 6 a 8 semanas, como se tinha na criação desses dispositivos. Hoje se pode detectar o vírus em apenas 10 dias para o HIV e em 12 dias para as Hepatites[18], prazo muito mais exíguo.
Por esse motivo, argumenta o Procurador Geral da República Rodrigo Janot em seu relatório encaminhado ao Ministro Edson Fachin, “que caracteriza ofensa ao princípio da proporcionalidade, na dimensão de proibição de excesso (a chamada Ubermassverbot do Direito alemão) e de medidas estatais gravosas desnecessárias”.
Por tudo aqui exposto é importante observar que a única característica presente em homens que tem relação sexuais com homens é o fato de que são homens que tem relação sexuais com homens e nada além disso. Todo o restante é simplesmente presumido e não teria qualquer embasamento científico.
Ressalto que o Ministério da Saúde e a ANVISA possuem normas de caráter genérica com o intuito de prevenir a transmissão de qualquer vírus aos bancos de sangue e hemoderivados, não havendo razão lógica para que se aplique um critério por conta da orientação sexual, sendo inegável o caráter totalmente discriminatório.
5. DA RESTRIÇÃO DE DOAÇÃO DE SANGUE PELO MUNDO – LEGISLAÇÃO COMPARADA
Em vários países do mundo existe algum tipo de restrição de doação de sangue quando o doador é um HSH. Em alguns casos há regras permanentes, como é o caso do Peru[19].
Porém existem países com regras similares às do Brasil, onde a legislação é pautada pelo estudo de grupo de risco e não no comportamento de risco ou conduta, e assim adotam a restrição de 12 meses para que os HSH doem sangue. Cito os Estado Unidos[20], onde até 2015, a sua restrição era total.
Mas esse cenário começou a mudar. Pois diversos países do mundo começaram a verificar os seus protocolos para a doação de sangue e assim possibilitarem que os homens que tem relação sexual com homens possam doar sangue sem qualquer restrição com base em sua orientação sexual. Isso ocorre por conta dos avanços tecnológicos e científicos que ocorreram na última década para a descoberta dos vírus na corrente sanguínea, indicando, assim, um maior controle da doação de sangue nos hemocentros em torno do mundo.
O Chile, através do seu Ministério da Saúde edita a norma técnica geral nº 0146/2013, visando o regulamento para o procedimento de doação de sangue, onde se utiliza de critérios totalmente técnicos e pretende aumentar seu banco de sangue:
“Dentre os objetivos sanitários pleiteados na doação de sangue, o Ministério da Saúde tem como objetivo aumentar o percentual de doadores e, além disso, diminuir o risco de transmissão os agentes infecciosos na transfusão sanguínea. Como respaldo à este último, existem evidencias internacionais acerca dos doadores, que doam várias vezes (mais de uma vez no ano), apresentam taxas mais baixas de infecções por transfusão, e, portanto, há um risco menos de contaminação para os receptores”[21].
Com essa nova resolução do Chile entra como precursor na América do Sul, após algumas décadas de proibição de doação de sangue por meio da Orientação Sexual. E com a elaboração desse documento a normatização é passa a ser baseada “comportamento de risco” do indivíduo.
A Argentina então segue o exemplo de seu vizinho o Chile, e em setembro de 2015, deixa de proibir a doação de sangue por homens bissexuais e homossexuais. Substituindo, também, o critério baseado em grupo de risco e orientação sexual, por algo mais técnico que é o “comportamento de risco”. Como se pode observar em texto disponibilizado no site oficial do Ministério da Saúde da Argentina, transcrito a seguir:
“Com o objetivo de avançar para um sistema Nacional de Sangue seguro, solidário e inclusivo, o Ministério da Saúde, através de Daniel Gollan, apresentará amanhã os novos requisitos para doar sangue como marco nas políticas sanitárias impulsionadas por esta carta e em particular pelo Plano Nacional de Sangue, com a finalidade de por fim a uma larga história de discriminação institucional à comunidade LGBT (lésbicas, gays, transexuais e bissexuais”[22].
A Espanha, por exemplo, desde 2005 através do Decreto Real 1.088/2005, leva em considerações critérios totalmente genéricos, ou seja, lá a doação de sangue é através de um questionário onde se verifica idade, peso, e etc. Não sendo proibido a recusa de doação de sangue de HSH por meio da sua orientação sexual ou por pertencerem a um grupo de risco, voltando a tona o fator “comportamento de risco”.
Partindo para o continente africano, cito a África do Sul, onde doação de sangue de qualquer indivíduo é baseado em critérios totalmente técnicos. Ou seja, os homens que tem relação sexual com homens podem doar sangue.
Chile, Argentina, Espanha, África do Sul, e até mesmo os Estados Unidos só foram alguns dos países que fizeram mudanças significativas em sua legislação para que os HSH pudessem doar sangue. À luz dessas alterações mundiais, este autor entende que o Brasil também deveria fazer a sua alteração legislativa.
6. CONCLUSÃO
Como se pode observar, as normas que o Estado impõe para a restrição de doação de sangue por homens que tem relação sexual com outro homem são baseadas em um contexto histórico totalmente desatualizado e sem fundamentos científicos plausíveis. Tendo em vista que a realidade atual aponta para um conhecimento mais amplo dos fatores que podem trazer mais segurança tanto para os que estão doando como para os que estão recebendo o sangue.
Ressalta-se que o procedimento para restringir a doação de sangue de HSH é baseado em um determinado grupo de risco, porém, como dito anteriormente, é um conceito defasado, se fazendo necessário o conceito de comportamento de risco, pois esse fato que é determinante para que uma individuo possa ou não ter uma atitude altruísta que é a doação de sangue. Desta forma, os homossexuais estariam mais introduzidos na sociedade, diminuindo, assim, parte da discriminação que sofre dentro da sociedade.
A retirada na restrição de doação de sangue representaria um aumento de 1,2% no estoque de bolsas de sangue nos hemocentros, como podemos observar em pesquisas relacionadas ao tema. Portanto, não se mostra razoável a restrição de doação de sangue desses indivíduos, pois temos estoques de sangue baixíssimos.
Com a análise da ADI 5543, que está no Supremo Tribunal Federal, esse mesmo tribunal, considerando inconstitucional as normas mencionadas no artigo, poderia esta corroborando com a sua posição protetiva de não discriminação dos homossexuais e bissexuais do sexo masculino, assim como fez em outras decisões de mesmo tema e tamanha importância.
REFERÊNCIAS
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Cf. p.22 do Manual técnico para o diagnóstico da infecção pelo HIV, elaborado pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_tecnico_diagnostico_infeccao_hiv.pdf. Acessado em 01 de maio de 2018.
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