3. DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CRIMES DE PECULATO NA VISÃO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Inúmeras são as divergências entre o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal quanto à aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra a administração pública. Contudo, como já fora aqui explicitado, o Excelso Tribunal fixou entendimento que se fazem necessários quatro requisitos para a aplicação do princípio da insignificância, a saber: mínima ofensividade na conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Cabe ressaltar que tais requisitos, tidos como objetivos, não possuem respostas claras, parecendo abstratos, de modo que a análise da aplicação do princípio em questão torna-se aberta a inúmeras discussões. Não há aqui a necessidade de se defender a utilização indiscriminada do princípio, no entanto, faz-se imperativa a existência de condições lógicas e claras, as quais definam, de fato, o que é ou não insignificante. Podendo, desse modo, afastar o uso de conceitos abertos ou vagos, que venham a resultar em incongruências interpretativas e eventuais prejuízos ao réu.
O início das discussões quanto à aplicabilidade do princípio da insignificância nos crimes contra a administração pública, em especial, o crime de peculato, se deu com a consolidação dos requisitos necessários. As diferentes aplicações dos tribunais superiores se dão no sentido de que o Superior Tribunal de Justiça, majoritariamente, compreende o princípio da insignificância como inaplicável a tais crimes, pois, nesses casos, existiria grave ofensa à moralidade administrativa, o que faria com que o requisito do reduzidíssimo grau de reprovabilidade na conduta do comportamento do agente não fosse atingido. Podemos verificar tal entendimento no AgRg no AREsp n.614524/MG.
Entretanto, o STJ, aplica ocasionalmente o princípio da insignificância aos crimes de peculato, como se vê no presente habeas corpus n° 246.885/SP, onde a Corte entendeu, por decisão dividida, pela aplicação do princípio em um caso de peculato-furto referente a um vale-alimentação no valor de R$ 15,00 (quinze reais).
Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal tem entendimento consolidado de que o princípio da insignificância pode ser cabível nos crimes de peculato. Ao analisar o julgamento do habeas corpus 112.388/SP, da Segunda Turma do STF, o qual teve como relator, o Ministro Ricardo Lewandowski, tem-se que o mesmo pertente a uma corrente minoritária, seguida pelo STJ. Conforme essa corrente, não cabe a aplicação do Princípio da Insignificância ao crime de peculato, pela impossibilidade de mensuração da extensão do dano, uma vez que o dano maior insere-se na moralidade pública.
O Ministro Ricardo Lewandoski leciona que, para a aplicação de tal princípio é preciso que estejam presentes todos os requisitos objetivos, o que até então não diverge dos demais Ministros. Contudo, ele explica ainda que é no requisito da inexpressividade da lesão, que se encontra a impossibilidade do reconhecimento do princípio no delito, ou seja, na quantificação da lesão ao bem jurídico tutelado. Conforme descreve, o bem jurídico tutelado pelo tipo penal em questão, além do patrimônio público, tem uma tutela especial à probidade e moralidade administrativa, razão para não ter como quantificar o prejuízo sofrido. Afirma o Ministro que o prejuízo material causado pelo agente é ínfimo perto da lesão causada ao ente estatal.
Vale frisar, que esse não é o entendimento majoritário do STF, pois a maioria dos Ministros vem reconhecendo e aplicando o referido princípio ao delito capitulado no art. 312. No julgado supracitado, diferentemente do Ministro Ricardo Lewandowski, os Ministros Gilmar Mendes e Cezar Peluzo, concederam a ordem, reconhecendo no caso concreto a insignificância da lesão, e, absolvendo o réu. O Ministro Cezar Peluso se utilizou da analogia ao crime de descaminho. E o Ministro Gilmar Mendes, reconheceu a insignificância, assegurando ser o valor tão diminuto que não justifica a penalização.
4 O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO MECANISMO DE POLÍTICA CRIMINAL
4.1 Do conceito de política criminal
O termo “política criminal” não possui um conceito uniforme ou genérico na doutrina penal. Contudo, entende-se como sendo um conjunto de princípios, convicções ideológicas, os quais formam entendimentos peculiares no sentido de combater ou lutar contra o crime em si.
Antônio Carlos Santoro Filho (2012, p.37) afirma que Basileu Garcia define a política criminal como sendo a ciência e a arte dos meios preventivos e repressivos, com os quais o Estado dispõe para atingir o fim da luta contra o crime. Examina o direito em vigor, e, tem-se como resultado da apreciação de sua idoneidade na proteção contra os agentes delituosos, ou seja, trata de aperfeiçoar as técnicas de defesa jurídico-penais contra a delinquência.
Consistindo na própria crítica ao Direito Penal, a política criminal, tem como seu principal meio de ação a legislação penal, sendo fundada em princípios ou argumentos ideológicos e jurídicos (ou em ambos), objetivando modificar, manter ou reformar os institutos do Direito Penal vigentes.
Tem-se por política criminal (ZAFFARONI, 1999:132): "a Política Criminal é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos”.
Entende-se como sendo o caráter da Política Criminal, ou seja, a ação, para efetivar a tutela dos bens jurídicos, e critica, como forma de aprimoramento de tal tutela. Busca fornecer orientação aos legisladores para que o combate à criminalidade se faça racionalmente, com o emprego de meios adequados.
4.2 A bagatela x a teoria das janelas quebradas
A teoria das janelas quebradas (broken windows theory) representa uma tese de estudo editada nos Estados Unidos da América pelo psicólogo criminologista George Kelling e pelo cientista político James Wilson, ambos pesquisadores da Universidade de Haward, sendo publicado em na revista The Atlantic Monthly no ano de 1982.
O estudo pretendia demonstrar a relação de causalidade entre a desordem e a criminalidade, defendendo uma relação proporcional entre elas. A teoria levou essa nomenclatura devido aos autores terem utilizado janelas quebradas para esclarecer como a desordem enseja a prática de crimes cada vez mais graves.
Kelling e Wilson, em seu estudo, utilizam o exemplo: caso uma janela de uma fábrica, escritório ou qualquer prédio em geral fosse quebrada e não fosse imediatamente consertada, as pessoas que a avistasse pensariam que naquele lugar não havia ninguém se importando ou zelando pelo patrimônio. Em seguida, outra pessoa iria quebrar mais uma janela, até que todas estivessem quebradas, demonstrando que ninguém realmente dá importância aquele patrimônio. Tal fato poderia levar vândalos a invadirem o local e lá estabelecerem moradia ou depredá-lo ainda mais. Poderiam ainda, indivíduos com tendências criminosas se estabelecerem no local, percebendo que ninguém naquela rua se preocupava com a criminalidade, levando-os a permanecerem naquele local e afungentarem as pessoas de bem. Na sequência haveria a destruição de mais prédios ao lado, e, em sequência, por toda a rua, e depois, por toda a comunidade. Esse descaso gera um efeito cascata, segundo os autores, levando as pessoas do bairro a se mudarem, sendo este, então, habitado tão somente por pessoas desordeiras, gerando inúmeros crimes.
Tendo como principal suporte experimental o feito do psicólogo americano Philip Zimbardo, o qual resolveu deixar um carro em um bairro de classe alta e outro em um bairro de classe baixa da Califórnia. Durante a experiência, o carro o qual fora deixado no bairro de classe baixa foi imediatamente danificado. No entanto, o carro abandonado no de classe alta, durante a primeira semana, permaneceu ileso, não sendo nem um pouco danificado ou deteriorado por absolutamente ninguém. Porém, após quebrarem uma janela do carro, esse passou a ser intensamente danificado e vandalizado pela população do local.
Diante disso, conclui-se que não a pobreza não é a única causa do aumento da criminalidade, tendo também o fato do descaso aos atos de desordem e vandalismo. Sendo possível verificar que todas as normas sociais de convívio são totalmente ignoradas no momento o qual as pessoas percebem que ninguém se importa com os atos de vandalismo. Bastando quebrar uma janela do carro, para que os indivíduos percebessem que ninguém se importou e imediatamente todos passarem a danificar o restante do carro.
Em suma, a teoria das janelas quebradas expressa que: caso a população e as autoridades públicas não se preocupem com os atos de marginalidade de menor potencial ofensivo, tal qual o ato de quebrar a janela de um prédio, induziria as pessoas a acreditarem que naquele local ninguém se importa com a ordem pública, o que levaria a constante prática de delitos cada vez mais graves naquele mesmo local.
Isso posto, a teoria esclarece um modo de combater os altos índices de criminalidade em um local: o Estado deve passar a repreender e conter os pequenos atos de criminalidade e vandalismo, através do intenso policiamento comunitário.
Com base na referida teoria, o prefeito de Nova Iorque, Rudolph Giuliani adotou uma nova política denominada “Tolerância Zero” que consistia numa medida para frear o avanço da criminalidade, vandalismo, mendicância e desordem que existia na cidade desde as décadas de 70 e 80.
Isso se deu, em parte, porque as pichações e os pequenos gestos de criminalidade não eram devidamente reprimidos, fazendo com que, surgissem cada vez mais delitos graves. O problema era bem maior nos metrôs da cidade, pois sendo um local fechado, escuro e deserto durante a noite, praticamente não havia punições para os desordeiros.
Assim sendo, a solução para os problemas de criminalidade na região passou a ser tema de campanha política. Em 1990, o policial Willian Bratton, que havia realizado brilhante trabalho na polícia de Boston, fora contratado com o dever de ajudar resolver o problema da criminalidade naquela cidade. Contando com o apoio de Kelling (co-autor da teoria da janela quebrada) para implantação de medidas de combate a criminalidade.
Sabe-se que imediatamente foram identificados os principais problemas existentes nos metrôs da cidade: o fato dos passageiros pularem as catracas para furtarem-se do pagamento, a própria desordem e a crescente criminalidade.
Nesse contexto, começaram a serem presos aqueles que pulavam as catracas do metrô para evitarem o pagamento. Os policiais esperavam o momento em que o desordeiro pulasse a catraca e procediam com a prisão, o que fez com o nível de pessoas que pulavam as catracas reduzisse consideravelmente. Ocorreu ainda que muitas das pessoas presas por esse ato de desordem eram foragidas da polícia ou estavam portando armas.
Ademais, passou-se a reprimir todo e qualquer ato de desordem e vandalismo, desde o ato de urinar em praça pública, até o ato de pilotar motocicleta sem capacete. Implantou-se, ainda, forte policiamento comunitário, com a intenção de aproximar a população da polícia.
O resultado foi à redução dos índices de criminalidade na cidade de Nova Iorque nos últimos anos, que, continuam diminuindo ainda hoje. A cidade, que nos últimos trinta anos estava atingindo níveis intoleráveis de criminalidade, parece ter se tornado uma cidade um pouco mais tranquila e menos violenta. É importante expor que não se deve atribuir a redução da violência em Nova Iorque unicamente a aplicação dos fundamentos da teoria da perda de uma chance. Outros fatores têm de ser considerados, como a recuperação da economia mundial que proporcionou o aumento de vagas de emprego, afastando a população do crime e o aumento do turismo na região.
O sucesso da política de “Tolerância Zero” levou com que outros estudiosos se posicionassem quanto à questão e esses concluíram que os índices de violência em Nova Iorque não foram diminuídos em razão do encarceramento excessivo, mas sim pelo aumento do investimento público em policiamento. Nesse diapasão, percebe-se que o número de encarcerados resultou em maior segregação racial, na medida em que o índice de negros presos aumentou drasticamente, devido também a consequente redução dos investimentos em políticas sociais e educação no mesmo período.
O contraponto entre a teoria das janelas quebradas e o princípio da insignificância se dá na medida em que ambos possuem natureza, origem, aplicação e conceito antagônicos, como mostrado anteriormente. O uso indiscriminado de ambos reflete numa completa irresponsabilidade do Estado. Portanto, os atos de desordem e a prática de delitos menores não devem ser completamente ignorados apenas porque não causaram lesão ao bem jurídico, é preciso adotar políticas de repressão aos delitos menores. Contudo, a aplicação de penas privativas de liberdade para repreender esses tipos de crimes é uma atitude completamente insensata, principalmente no Brasil, pois além de violar os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, há no país um sério problema quanto à população carcerária.
4.3 A criminologia sociológica e o artigo “White Collar Crime” de John Braithwaite.
Inicialmente, cabe destacar que essa é uma análise que foge a linha da criminologia geralmente estudada, pois, em nosso país, a maioria dos estudos nessa área se baseiam em teorias com fortes características marxistas, que tendem a cair no reducionismo econômico.
Ciente dessa problemática, a dissertação aqui caberá sobre os crimes de colarinho branco partindo de uma visão sociológica, mais preocupada com a classificação segundo a pessoa do autor do que o tipo penal. Dessa forma, faz-se necessário compreender a expressão “White Collar Crime”, título do artigo de John Braithwaite, o qual toma por base os estudos de Edwin Sutherland, criador do termo, também idealizador da teoria da associação diferencial, classificada, de acordo com os criminológos, como uma das teorias da aprendizagem.
Quanto a teoria da associação diferencial e o conceito de white collar crime, tem-se que Sutherland visa superar o conceito de organização social como único fator criminógeno e propõe em seu lugar inserir o conceito de organização social diferencial (ALLER, 2005, p. 12-35).
O artigo teve como principal intenção apresentar evidências de que os indíviduos de classes econômicas mais altas cometem muitos delitos, e que tais delitos devem ser incluídos nos estudos sobre as teorias gerais sobre a criminalidade. Além disso, apresenta hipóteses as quais podem vir a explicar tais condutas delitivas, resultando assim, no desenvolvimento da teoria da associação diferenciada.
É possível, ainda, extrair do artigo que o criminoso não é necessariamente um ser antissocial, tendo em vista que os crimes de colarinho branco são cometidos por pessoas que estão completamente inseridas na sociedade.
Tais crimes são definidos como aqueles praticados por pessoas de alto nível social e portadoras de respeitabilidade, no curso de sua profissão. Sutherland, em nota de rodapé (SUTHERLAND, 2009, p. 9), diz que a expressão colarinho branco é utilizada para empresários e executivos.
Muito embora haja, na obra, menção a diversas espécies de crimes, essas alusões não deixam de serem apenas exemplos de atos decorrentes do tipo de autor objeto de seu estudo. É óbvio que não era a intenção estudar todo ou qualquer ato praticado por pessoas de colarinho branco, mas somente aqueles os quais configurassem crimes ou desvios.
Os elementos que compõem um conceito atual dos crimes de colarinho branco são: pessoa pertencente a uma estrutura organizada, pessoa detentora de poder, quebra de confiança e dano social, não confundindo o termo estrutura organizada com crime organizado ou criminalidade organizada. Exige-se que tal organização esteja de acordo com o Direito e a expressão “poder” supracitada deve significar a própria capacidade de interferir na esfera individual de um número indeterminado de pessoas. Exige-se, ainda, a quebra da confiança que é a ele conferida em razão de sua profissão. Pressupõe também significativo dano à sociedade.
4.4 A bagatela como instrumento de política criminal no peculato
Os princípios jurídicos são, notadamente, os mandamentos nucleares do ordenamento jurídico, compondo o espírito das normas e servindo como critério para sua exata compreensão quando da aplicação ao caso concreto. A interpretação atual da Constituição revela princípios implícitos latentes para a composição dos novos problemas concretos.
Diante disso, surge o princípio da insignificância, com origem que remonta ao Direito Romano e ao período do Renascimento, estando inserido atualmente numa política de Direito Penal mínimo, sendo vertente majoritária na doutrina nacional.
O autor Luiz Flávio Gomes (1992, p. 91) afirma que as atuais teorias de política criminal e controle social tratam de modo diferenciado a pequena criminalidade da média criminalidade, tendo em vista a lesividade social. Recomenda que os delitos de bagatela sejam interpretados como aqueles que produzem lesão ou perigo de escassa repercussão social, pelo que não se justifica reação jurídica grave.
Mesmo com opiniões contrárias, o princípio da insignificância no que tange aos crimes contra a Administração Pública, mais especificamente, ao crime de peculato, demonstra adequação e bons resultados, e, ainda, sob o prisma da política criminal, tendo em vista que a sua aplicação em conjunto para enfrentar a problemática penal, com a ampliação de políticas sociais de inserção e descaracterização de condutas, evita a desproporcionalidade real entre a sanção e a conduta cometida pelo agente, respeitando assim os preceitos constitucionais da igualdade, liberdade, razoabilidade e proporcionalidade.