Fomos brindados nos últimos dias com um vídeo, onde três autoridades da nação, ao lado de outras “meninas poderosas”, estão dançando e cantando o samba Não deixe o samba morrer, de autoria de Edson Conceição e Aloísio Silva. As autoridades são: a ministra Carmem Lucia, então ainda presidente do STF, a ministra Laurita Vaz, presidente do STJ até o próximo dia 29, e a procuradora geral da República, Raquel Dodge. O fato em si, de mulheres, fora de seu expediente de trabalho, se divertindo, não teria nada de mais se não fosse por um pequeno detalhe: com elas está a empresária Luiza Helena Trajano, dona do Magazine Luíza, fazendo parte da farra, ou fazendo lobby, quem sabe?
Se levarmos em consideração que apenas na 1a e 2a Instâncias do Tribunal de Justiça de São Paulo, a empresa da sra. Trajano tem tantos processos que o sistema pede que se refine a busca, pois impossível seria apresentar todos e que, como tem lojas nos outros estados, a situação neles não deve ser muito diferente... veremos o quão grave é essa comemoração. Principalmente se considerarmos que, no STJ, onde a ministra Laurita Vaz exerce a presidência, o Magazine Luiza apresenta em oito registros, o total de 490 processos em que é réu! A coisa começa a ficar meio desconfortável, não é mesmo? Exemplos? Citarei apenas dois, para não encher esta página: o Aresp 1338321/RS que entrou no gabinete da presidência em 21 de Agosto. Ou o Aresp 1322084, cuja relatoria é da presidente do STJ e foi autuado no dia 13/7/2018. Mas há dezenas deles.
E a coisa não para por aí... No STF a empresa Magazine Luiza S.A. aparece como ré em 22 anotações que englobam 56 processos! E repete-se o perigo. O ARE 1136508, que foi enviado dia 25/6/18 para a presidência para conclusos, faz companhia ao ARE 1066675 que teve um andamento à jato na Suprema Corte, tendo entrado em 14/8/17, indo parar nas mãos da presidente, que é a relatora do processo, no dia 18/8/17 e já tendo sido julgada a lide, foi devolvido ao TJRS em 22/8/2017, através da guia 24677/2017, onde só chegou dia 05/07/2018. Portanto, foram 8 dias da entrada até a saída do referido processo no STF e depois 339 dias para que ele conseguisse retornar à Vara de origem! Parece brincadeira.
Antes que você tire qualquer conclusão precipitada, gostaria de deixar aqui algumas palavras de Alexandre Borges, analista político, escritor, palestrante e diretor do Instituto Liberal, que analisou a música escolhida pelas “garotas poderosas” e chegou à seguinte conclusão: “Antes de dizer que samba e política não se misturam, faço um convite: preste atenção na letra de ‘Não deixe o samba morrer’, de Edson Conceição e Aloísio Silva, um dos clássicos do gênero. Você pode se surpreender.”.
Prestei atenção! “Não deixe o samba morrer” é um hino conservador por homenagear a contribuição das gerações anteriores e por estabelecer a meritocracia como critério para que a cultura não “morra”. Segundo Borges, “é uma música que reconhece a cultura como definidora de uma sociedade e não a raça, os recursos minerais ou a economia”. Eis sua análise, à qual acrescentarei um comparativo com nossas cortes e a farra das garotas.
A letra começa assim:
“Não deixa o samba morrer
Não deixa o samba acabar
O morro foi feito de samba
De samba para gente sambar”.
Ao dizer que “o morro foi feito de samba”, os autores reconhecem que o local físico (“o morro”) não é nada perto dos bens imateriais que caracterizam e definem sua gente (tipo lisura, ética, honestidade e outras coisinhas desse tipo). “O que importa, o que ‘faz’ o ‘morro’, é o samba, é a cultura que precisa ser preservada. É o argumento conservador na essência, daqueles que Edmund Burke ou Roger Scruton aplaudiriam de pé.”.
O tema central, que dá nome à música, é que a cultura que define o morro pode “morrer”. E vai morrer se você deixar! Assim como morreu no país a decência no trato da coisa pública, a probidade administrativa, o cuidado no exercício da função.
Os compositores reconhecem que uma cultura não tem vida eterna, ela “morre” se você não cuidar dela, se não proteger, defender e transmitir esta cultura para as próximas gerações. Se você transmitir honestidade, vai ter cidadãos honestos. Se transmitir picaretagem, vai ter gente picareta!
“A ideia central é coerente com o que Reagan se referia quando dizia: ‘a liberdade está sempre a uma geração da extinção’. A democracia liberal, um valor ocidental, pode morrer assim como o samba, basta ser atacada nas universidades, nos meios de comunicação, sem qualquer defesa.”.
Culturas não passam para as próximas gerações a não ser através do ensino e do legado familiar e comunitário. O conservador preserva o que funcionou, o que deu certo ao longo do tempo, e está aberto a mudanças desde que benéficas.
Cantar que uma cultura pode “morrer” serve de alerta aos que querem, por exemplo, repetir a fracassada experiência recente da Europa de abrir as porteiras indiscriminadamente para imigração em massa, mas que fornece mão de obra barata. Como acontece no Acre e em Roraima agora.
“E quando eu não puder pisar mais na avenida
Quando as minhas pernas não puderem aguentar
Levar meu corpo, junto com meu samba
O meu anel de bamba, entrego a quem mereça usar
Eu Vou ficar
No meio do povo
Espiando
Minha escola perdendo ou ganhando
Mais um carnaval”.
Neste belo trecho, a música canta nada menos que a meritocracia, de novo! Os compositores mais antigos, ao sentirem que não possuem mais condições de saúde para continuar carregando e celebrando a tradição, passam “a quem mereça usar”. Não a qualquer um. “O anel é entregue a quem for digno de usar. Ênfase em ‘merece’.”.
O rito de passagem do “anel de bamba” pressupõe responsabilidade, talento, comprometimento e dedicação. É como a cerimônia de coroação de um rei. Como deveria acontecer nas Supremas Cortes, diante de concurso público que premiasse quem merecesse usar o “anel de bamba”. E não diante de uma pífia indicação de um apadrinhado qualquer e de uma sabatina no Senado, que por pouco não é chamado de “chá de senhoras”, de tão fraca que é. Qual é a legitimidade de uma sabatina com leigos? Jogo de cartas marcadas, sem meritocracia, sem anel de bamba. Só com a bênção do padrinho já vai! E vai decidir os balizadores que vão nortear o país e seu povo.
“Antes de me despedir
Deixo ao sambista mais novo
O meu pedido final
Não deixa o samba morrer
Não deixa o samba acabar”.
A letra termina com um reforço do pedido ao aprendiz, é seu “pedido final”. O novo sambista deve inovar, mas ele precisa conhecer a tradição para transcender, ele não pode destruir o passado e deixar o próprio “morro” perecer.
Concordo em número, gênero e grau com Alexandre Borges. A música, para as poderosas que deveriam ser guardiãs de nossa Justiça, é perfeita! Só acho que não é conservadora a postura de nossas “garotas poderosas”, comemorando, cantando e dançando, lado a lado, ré e julgadora, o que nos leva a um descompasso e a um ponto de interrogação: o que estariam comemorando as “garotas poderosas”? Mais uma vitória num processo? A dúvida há sempre que aparecer toda vez que juntas estiverem quem devia estar distante da outra. É aí que o samba morre, levando com ele tudo que achávamos que era íntegro, que era justo, que era reto e, principalmente, imortal como deveria ser a música e a Justiça. E pode liberar o odor fétido da corrupção, dos arranjos a meia voz, das malas guardadas às dezenas em apartamentos, da morte do samba como música e sua ressurreição nos bolsos do povo, que por tudo de errado, torto e imoral paga! E sambando tristemente para consegui-lo!