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Deve existir direito de arrependimento na compra de passagens aéreas?

Agenda 05/09/2018 às 13:58

O artigo 49 do CDC prevê o direito de arrependimento para compras feitas fora do estabelecimento. No entanto, há controvérsias jurisprudenciais se essa previsão também deve ser estendida ao serviço de transporte aéreo deviso às peculiaridade do setor.

O direito de arrependimento consiste na faculdade dada ao consumidor que efetuar compra fora do estabelecimento comercial (internet, por exemplo) de desistir dela por qualquer motivo no prazo de até sete dias corridos após o recebimento do produto ou serviço. Tal previsão se encontra contida no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, o qual dispõe o seguinte:

O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.

No entanto, Até alguns anos, parte da jurisprudência entendia que essa disposição do CDC não se estendia a todo tipo de contratação fora do espaço físico da empresa, entendendo que a regra não seria aplicável à compra de passagens aéreas realizadas pela internet por esse serviço ser disciplinado por normas específicas.

Durante muito tempo, a Agencia Nacional de Aviacao Civil(ANAC) fez vistas grossas para o assunto. Contudo, devido aos constantes conflitos entre consumidor e fornecedor referentes ao tema, em 14 de março de 2017 essa agência abandonou sua neutralidade e editou a resolução 400/16, que regulamenta o direito de arrependimento nesse setor nos seguintes termos:

O usuário poderá desistir da passagem aérea adquirida, sem qualquer ônus, desde que o faça no prazo de até 24 (vinte e quatro) horas, a contar do recebimento do seu comprovante.

Parágrafo único. A regra descrita no caput deste artigo somente se aplica às compras feitas com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias em relação à data de embarque.

Mesmo admitindo direito de arrependimento nesse serviço, a ANAC estipulou alguns prerrequisitos diversos dos previstos no CDC para que ele seja exercido. Parece que apesar da colher de chá, a agência muito provavelmente entende que existem peculiaridades nesse mercado que impedem a aplicação do direito de arrependimento nos mesmos moldes estabelecidos na lei do consumidor.

Mas entre o CDC e a ANAC, qual norma deverá prevalecer?

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Pra dirimir essa celeuma, deverá ser utilizada a moderna técnica para a solução de conflitos entre normas denominada diálogo entre fontes, a qual preceitua que o desfecho de toda antinomia entre regras deve ser buscado na Constituição. A Carta Magna estabelece em seu artigo XXXII, a proteção ao consumidor como um direito fundamental. Então dar prevalência às normas específicas que regulam o setor em detrimento do CDC, significa retirar da CF sua força normativa, destituindo-a do seu status de Lei Maior.

Há alguns anos, havia uma tendência na jurisprudência de não aplicar o CDCaos contratos de transporte aéreo como bem pode se observar nessa decisão proferida em 2014 pelo Tribunal de Justiça dos Distrito Federal e Territórios:

1.Assiste ao consumidor o direito de arrependimento, no prazo de sete dias, a contar da assinatura do contrato, ou do recebimento do produto ou serviço, sempre a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial (art. 49 do CDC).

2. Essa proteção não ampara a compra de passagem aérea feita pela internet, por se tratar de contrato de transporte, regulado por normais especiais, sobretudo porque todas informações referentes ao serviço são disponibilizadas para o consumidor, em especial, a política de preços relativa à passagem que será adquirida que prevê regras para o cancelamento e reembolso de valores pagos em caso de desistência.

Nos últimos anos isso vem mudando. Muitos juízes e tribunais já estão aplicando a regra contida no artigo 49 da lei do consumidor aos contratos de serviços de transporte aéreos, embora as divergências em torno da matéria ainda estejam bem longe de acabar.

O Bom senso como parâmetro norteador à boa aplicação do Direito

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Como a questão ainda não é um ponto pacífico entre os aplicadores do direito, gostaríamos de deixar registrado nosso humilde posicionamento acerca da matéria. Entre o que prevê o CDC e a resolução 400/16 da ANAC, acreditamos que a norma da segunda esteja mais alinhada ao bom senso do que a do primeiro e explicamos o motivo: Partimos do princípio de que toda norma jurídica deve trazer em seu bojo uma razão de ser para que realmente possa disciplinar um determinado tema com justiça e assim satisfazer o bem comum e não somente o bem de alguns.

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Ora, deixemos o corporativismo de lado e raciocinemos: deve ser dado ao consumidor um prazo de reflexão para compras feitas fora do estabelecimento porque o comprador não tem, nessa situação, a oportunidade de tocar o produto nem observá-lo em suas dimensões e extensões. É óbvio que essa barreira sensorial típica desse negócio pode impedir uma boa avaliação da mercadoria, o que pode levar o consumidor a erro no momento de tomar sua decisão de adquiri-la.

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Por isso deve ser dado a ele, e com toda razão, um prazo para reflexão caso o produto entregue não atenda às suas expectativas. No que tange à aquisição de passagens aéreas, a descrição do serviço já está feita no próprio site.

Aliás, nessa situação, o serviço tem dia e hora para ser executado, não havendo motivo razoável para o cliente querer se desfazer dele antes de sua execução, já que não tem como avaliar sua qualidade porque a prestação ainda nem se iniciou. Por isso, no caso em análise, entendemos não ser justo permitir que o consumidor se arrependa do negócio, na forma prevista no CDC, apenas porque foi incapaz de organizar sua agenda ou antever contratempos.

Ademais, se essa desistência for feita apenas algumas horas antes do embarque, isso implicará prejuízos à empresa aérea que precisa obter lucros para continuar operando no mercado, correndo, inclusive, risco de não conseguir vender o assento a outro passageiro. Aplicar a regra do artigo 49 do CDC a um serviço com tantas idiossincrasias implica, em contrapartida, violar ou mitigar sem razão alguma o Princípio da Boa-fé Objetiva, que determina que os contratantes se portem com ética e respeito reciprocamente.

atentando-se para o que princípio preconiza, nota-se que não seria razoável estender a disposição do referido artigo a esse setor sob pena de impor a uma das partes o ônus de arcar com desvantagem econômica provocada injustamente pela outra. Isso claramente não se coaduna com os fins a que se presta a boa-fé objetiva, que é elemento intrínseco aos contratos em geral e se encontra prevista no próprio CDC em seu artigo ,III, o qual discorrendo sobre o padrão da relação de consumo, dispõe que ela deve atender ao seguinte princípio:

harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores

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Sabe-se que as empresas, por ser de sua natureza perseguir o lucro, não suportam o ônus dos seus serviços sozinhas. Quando elas estipulam o valor de uma mercadoria, ali estão embutidos os riscos e prejuízos que poderão vir a tomar no exercício da atividade.

Provavelmente se o cancelamento de passagens nos moldes do artigo 49 se tornar uma prática, o setor se verá compelido a diluir esse prejuízo no valor do produto. Resultado: o serviço poderá se tornar mais caro e quem novamente perdeu? o consumidor.

Acreditamos que a nossa legislação consumerista deveria proteger o consumo e não apenas o consumidor porque muitas vezes o que faz alguém passar de hipossuficiente a tirano é só o contexto.

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Sobre a autora
Fabíola Ferreira de Oliveira

Advogada e autora do Blog voltado para o público leigo Cade Meu Direito? (www.cademeudireito.com).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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