RESUMO: Este artigo traz um tema considerado controverso em toda existência da humanidade: o comportamento moral. A moral se insere no comportamento humano como farol que deve direcionar sua conduta e não pode ser diferente na relação existente entre consumidor e fornecedor, que deve presumir a adoção de um comportamento leal, no qual o princípio da boa-fé seja mandamento fundamental para ambos os sujeitos, quais sejam, fornecedor e consumidor. A lei 8.078/90 constitui-se num marco na legislação brasileira, pois representa o Código de Defesa do Consumidor enquanto mecanismo eficaz na proteção dos interesses dos consumidores com disposições precisas no sentido de apresentar os elementos que compõem a relação existente entre consumidor e fornecedor. Existe um crescimento expressivo das práticas de má-fé por parte de alguns consumidores, que se aproveitam dos canais de defesa do consumidor para tirar vantagem em determinadas situações, contudo é um tema pouco explorado pela doutrina. A ideia aqui é trazer uma análise que demonstre a necessidade de se ter atenção quanto à importância de um comportamento moral, basilado no imperativo categórico, no sentido de disseminar a boa-fé como comportamento naturalizado nas relações consumeristas.
PALAVRAS-CHAVE: Imperativo categórico, Moral, Consumidor, Comportamento, Boa-fé.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Imperativo Categórico de Kant. 1.1. Boa-fé, vontade e liberdade em Kant. 2. Moral em Durkheim. 3. Direito do consumidor. 3.1. Quando o consumidor abusa do Direito. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objeto a conduta moral do consumidor que age abusando de seu direito se utilizando de prerrogativas como a fragilidade e a vulnerabilidade. O objetivo precípuo deste trabalho reside na reflexão de que é imprescindível um comportamento moral e ético por ambas as partes que se constituem os sujeitos da relação consumerista. Isto porque não é incomum saber da existência de um comportamento por parte do consumidor que se aproveita da proteção oferecida pelo Código de Defesa do Consumidor e lança mão de artifícios que conferem lesão ao fornecedor.
A construção desta análise se deu através de uma pesquisa bibliográfica descritiva na qual as leituras de doutrinas, periódicos, legislação e decisões dos Tribunais pátrios se constituíram no caminho de descobertas que ratificaram a ideia inicial, qual seja, a de que a moral deve permear a relação social de maneira a ser norteadora da conduta daqueles que consolidam a relação de consumo. Kant e Durkheim são as fontes de inspiração para este estudo, posto que suas concepções de comportamento moral refletem a conduta esperada por todos cidadãos, e nesse particular, a conduta que deve observada pelos sujeitos da relação de consumo. Somada à inspiração kantiana e durkheimiana, outra força de incentivo vem das leituras de Zygmunt Bauman, Flávio Tartuce, Norberto Bobbio, Josinaldo Leal e outros que escreveram para além da mera descrição conceitual, eles propõem uma verdadeira viagem pelos aspectos que permeiam a relação consumerista.
Em que pese a pouca literatura para abordar o comportamento moral do consumidor, foi possível perceber que este valor sempre foi e é fundamental no estabelecimento das relações humanas, por conseguinte deve ser observado na seara consumerista, que dispõe de ferramentas específicas no que diz respeito à proteção do consumidor. A elaboração da lei 8.078/90 constitui-se num marco na legislação brasileira, pois representa o Código de Defesa do Consumidor enquanto mecanismo eficaz no cuidado com os interesses dos consumidores, é um diploma que tem disposições precisas no sentido de apresentar os elementos que compõem a relação existente entre consumidor e fornecedor, relação esta que deve presumir a adoção de uma conduta moral, onde o princípio da boa-fé é mandamento de grande relevância no comportamento de ambos os sujeitos. A partir da edição desta norma o consumidor foi reconhecido como ser hipossuficiente e vulnerável, desde então, é muito comum se ver situações em que o consumidor recorre ao judiciário por ter seu direito lesado.
Contudo, há situações em que o consumidor, se utilizando dessa condição, age em desconformidade com o princípio da boa-fé. Não é rara a veiculação de notícias de consumidores mal intencionados, litigando de má-fé em busca da tutela jurisdicional com vistas a denunciar alguma prática abusiva por parte do fornecedor, e a partir daí obter vantagens econômicas.
As leituras permitiram uma reflexão acerca da importância de condutas iluminadas pelos valores de moralidade e eticidade presentes no imperativo categórico. Uma observação de que, embora não seja expresso no já citado Código, se faz necessário que o uso da boa-fé seja feito também pelo consumidor e não apenas pelo fornecedor, pois moral e ética, são valores que basilam os deveres de honestidade e lealdade necessários à convivência humana no seio social, e por isso devem estar presentes no comportamento de ambos os sujeitos que compõem a relação consumerista.
Inicialmente, uma breve reflexão acerca da moral e de como ela se insere no comportamento humano como farol que deve direcionar sua conduta. Também, em princípio, uma exposição atinente à ética enquanto essência do comportamento humano.
Por fim, uma análise do princípio da boa-fé nas relações de consumo, bem como reflexão do comportamento do consumidor que se vale da vulnerabilidade e abusa da boa-fé. Eis, também, apresentação de situações em que a jurisprudência se posiciona frente a este comportamento.
IMPERATIVO CATEGÓRICO de Kant
O filósofo alemão Immanuel Kant concebeu imperativo categórico como “o agir sempre baseado nos princípios que se desejaria ver aplicados universalmente”. É a lei suprema da moralidade, constitui o princípio particular que individualmente adotamos quando agimos, isto é, o axioma, deve poder ser aceito por todos. O imperativo categórico é um desenho a priori, puro, legítimo, é uma preferência natural e racional e diz respeito a escolhas que estão para além dos interesses individuais e da fé. O imperativo categórico convida o sujeito a sagrar a sua própria liberdade e a dos outros com a perspectiva da segurança do livre agir conforme a consciência.
Um imperativo categórico que objetiva mencionar o que é uma obrigação, pode ser assim contemplado: "age com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei moral". Nessa esteira, o sujeito deve obedecer a um parâmetro que seja aceito pelos demais, caso contrário não agirá moralmente. Vislumbra-se aqui a ideia do exemplo dado a fim de ser seguido; porém há limitações numa máxima, encontrando-se uma limitação da liberdade, isto é, a liberdade para ser liberdade tem que ter um parâmetro, não é ilimitada. A importância da liberdade constitui-se basilar para o reconhecimento da igualdade entre os sujeitos e dos direitos que decorrem dessas relações. É preciso destacar que a liberdade constitui toda a grandeza e a dignidade humana. A doutrina moral kantiana encontra-se alicerçada na liberdade. Só porque é livre o homem pode resistir a todos os estímulos sensíveis, tanto internos quanto externos; pode começar por si mesmo um evento; pode ser legislador absoluto de si mesmo; e pode ser totalmente responsável de tudo aquilo que faz ou deixa de fazer. Por isso, a liberdade caracteriza o ser humano e define sua responsabilidade: ser homem, isto é racional, equivale a ser essencialmente livre e poder agir exclusivamente debaixo da liberdade.
A liberdade é encontrada na razão prática, ou seja, na vontade. Portanto a vontade é a própria razão prática. Isso implica afirmar que a liberdade pode ser explicitada a partir do conceito de vontade.
Para Kant, o homem encontra-se subordinado às leis da natureza, de onde advém o determinismo e, concomitantemente, as leis da liberdade que originam a moral. Esse argumento redunda no fato de o homem possuir condições de autolegislar-se, bem como de que ele é quem motiva os fenômenos existentes no mundo. Dotado de razão, capta que essa moral, é livre e determinante, e é isso que o diferencia dos animais. É justamente no âmbito da razão que podemos perceber que a liberdade prática ou a independência da vontade pode ser vista quando a razão nos propicia regramentos. E aí vem à tona o que devemos ou não fazer. Essa experiência interior remonta à ideia de liberdade independente da vontade de motivos empíricos, como causa da razão capaz de determinar a vontade de agir ou não através de impulsos, sensíveis isto é, eivados de interesses. A independência da vontade de motivos empíricos está integralmente relacionada com a fundamentação da moralidade kantiana, em razão da moralidade implicar o conceito de autonomia, pois para Kant todo homem é autônomo. Isso resulta na existência de uma vontade livre de motivos sensíveis. E a partir de então, relaciona-se a ideia de liberdade com a de autonomia. Essa relação é percebida como liberdade referente a direcionamentos desconhecidos pelo homem e como liberdade da faculdade da vontade capaz de permitir a autolegislação.
Entre os deveres do Estado, está a preservação desses direitos ainda que isto possa ensejar em certa contenção da liberdade individual. O dever é um imperativo categórico, uma lei moral interior, que revela-se num mandamento universal na medida em que o ato moral é aquele que constitui como acordo entre a vontade e as leis universais que ela dá a si mesma. Desta ideia, surge a fórmula que permite Kant deduzir as três máximas morais que revelam a incondicionalidade dos atos realizados por dever. Quais sejam:
1. Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza;
2. Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio;
3. Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais.
A vontade ética se constitui em obediência à lei moral e no respeito pelo dever e pelos outros. A ética está ligada ao ser, à prática do bem, da boa vontade. As leis morais levam a fazer o bem, em detrimento dos seus interesses individuais, o valor moral não está no efeito que dele se espera, mas sim na ação que leva a agir com boa-fé que representa um princípio geral de Direito, um arquétipo segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança, fidelidade e respeito, um valor que protege a solidariedade e a lealdade nas relações humanas. Kant afirma que a vontade não presume apenas uma regra, mas sobretudo um fim. Não há um conceito de liberdade sem relação com a moral, o indivíduo não poderá se deixar cair em tentações externas e consequentemente desviar para o caminho errado, deverá lutar sempre a favor do ritmo para alcançar seu objetivo.
A razão é imprescindível para a representação de leis, a vontade nada mais é do que razão prática. A liberdade requer uma determinada conduta com regras, e o ser simplesmente as seguirá, todo princípio da moral reside em nossa razão autônoma e toda a subjetividade da moral do ser humano é independente das morais externas. Contrariando as definições emitidas por Aristóteles, Kant afirma que o objetivo das categorias não pode ser dado através da experiência, e que a razão está contida no âmbito das ideias. Ninguém melhor, de acordo com a justiça, delineou a paz eterna e uma sociedade das nações do que Immanuel Kant, ele reitera que uma vontade boa é boa sem limitações, pois está fundamentada no princípio da razão, que é incondicionado e, por conseguinte, é composto apenas pela forma do querer abstraído de toda a matéria de seus objetos. O homem é um ser composto por razão e sensibilidade, de modo que a vontade humana pode ser determinada ou por estímulos empíricos baseados na sensibilidade ou por um elemento puro fundado na razão. A autonomia é o princípio da dignidade da natureza humana e de toda a natureza raciocinante.
Cada ser humano tem em sua consciência a responsabilidade, que estabelece a faculdade de fazer o bem ou não. Kant assegurou ao máximo o distanciamento da moralidade aos elementos empíricos, pois estes alteram a essência dos costumes. Pode-se entender que, o caminho do objetivo, da intenção, está rodeado de obstáculos, os quais atrapalham de grande maneira. Porém, para ser efetiva, a intenção não deverá ser suplantada, pois os objetos adversos são apenas condicionais, dependentes, poderão ser ultrapassados sem que sejam utilizados de forma a desqualificar o princípio. A ciência filosófica deverá ser idealista, tomar como origem de conhecimento as ideias, e não realista, partindo das coisas, todos os indivíduos devem ser tratados igualitariamente, e seus caminhos, os mais variados que sejam, para objetivar suas intenções, merecem todo o respeito.
A ética kantiana que compreende o homem como um valor em si e, portanto, porta uma dignidade que não admite um estabelecimento de um preço, converte-se antes em seu contrário, o homem passa a ser um meio e adquirir um preço, na medida em que em uma sociedade utilitarista, burguesa-liberal, os homens têm vontades e interesses distintos, entrando em um estado hobbesiano permanente, de todos contra todos, para fazer valer a sua vontade e convertê-la em legislação universal. A ética e os princípios morais kantianos estão, portanto, na base da concepção individualista da sociedade contemporânea, em que se fez crer que os indivíduos de forma mútua e em comum acordo decidiram por tal ordem social, e não que ela foi imposta historicamente, por vontades e interesses que acabaram por se converterem em legislação universal.
Kant cria uma ética, que é saudada por Bobbio como positiva e faz um elogio e convite constante a ela, onde tudo converge para a constituição política, garantidora do exercício das vontades individuais. A partir da complexa teia de argumentos construídos por Bobbio pode-se observar que em uma sociedade pluralista como a contemporânea, só se pode haver uma convivência pacífica entre maioria e minoria, através da constituição, primeiro de uma sociedade civil, depois de uma comunidade política que a garanta, através do contrato, valendo-se do monopólio da força se necessário.
1.1Boa-fé, vontade e liberdade em Kant
Kant privilegia o alcance da autonomia, independência e liberdade internas para tomar decisões racionais, conscientes e responsáveis. Cada ser deve ter a possibilidade de diferenciar-se dos outros seguindo sua própria lei, seus valores, sua liberdade. A falta de coragem e a preguiça eram vistas por Kant como características da menoridade. Essa forma é imperativa. O imperativo vale incondicionalmente e sem exceções para todas as situações de todas as ações morais. Em função disso, o dever é um imperativo categórico que ordena incondicionalmente, constituindo uma lei moral interior.
Com base no pensamento kantiano, uma ação praticada precisamente por dever terá seu valor verificado na máxima que a determina, e não no propósito que se deseja alcançar com ela. O intuito de Kant é investigar e esclarecer o conceito moral de obrigação e desenvolver a doutrina do imperativo categórico, como critério da moralidade, e da autonomia da vontade como princípio supremo da moralidade. Segundo Kant, o homem habita dois mundos distintos, a saber: o da natureza, isto é, do determinismo; e, o da moralidade, isto é, da liberdade. Desse modo, se o homem pode e deve agir é porque possui autonomia para agir.
O ponto central da tese kantiana para o qual eu gostaria de chamar a atenção é que tal disposição moral se manifesta na afirmação do direito — um direito natural — que tem um povo a não ser impedido por outras forças de se dar a Constituição civil que creia ser boa. Para Kant, essa Constituição só pode ser republicana, ou seja, uma Constituição cuja bondade consiste em ser ela a única capaz de evitar por princípio a guerra. Para Kant, a força e a moralidade da Revolução residem na afirmação desse direito do povo a se dar livremente uma Constituição em harmonia com os direitos naturais dos indivíduos singulares, de modo tal que aqueles que obedecem às leis devem também se reunir para legislar. O conceito mesmo de honra, próprio da antiga nobreza guerreira, esvai-se diante das armas dos que tinham em vista o direito do povo a que pertenciam. (BOBBIO, 2004, p. 58-9).
Para Kant é possível agir por dever, respeitando a lei prática. Agir conforme o dever denota que a ação praticada é correta, uma vez que, aparentemente, ela está em conformidade com as regras práticas do dever, todavia não é executada por dever. Já, agir por dever significa que a ação é praticada exclusivamente por respeito à lei. O dever enquanto obrigação significa a exigência posta pela vontade para se deixar determinar, racional e livremente, pela lei moral. O respeito é entendido como a consciência dessa exigência, em outras palavras, é a consciência da subordinação da vontade a uma lei. O dever não constitui uma lista daquilo que se deve ou não fazer, ao contrário, constitui uma forma que deve valer para todas as ações morais. O critério ético deve ser universalizado, assim, não pode resultar da experiência. O critério último deve ser dado a priori na razão. Nesse passo, Kant institui a razão pura. Na visão de Kant, a vontade deve vir da razão e, a razão pura não tira da experiência a sua fundamentação, mas tira de si própria, não havendo, desse modo, uma heteronomia, mas sim uma verdadeira e real autonomia pois, o indivíduo dá a lei a si mesmo.