MORAL em DURKHEIM
Muitas ideias de Kant estão presentes na teoria sociológica de Durkheim, a admiração pela filosofia kantiana deve-se, sobretudo ao fato de que o sociólogo considerava importante a tentativa de Kant de basear a possibilidade de um conhecimento inteiramente fundamentado na razão. Durkheim concebia o kantismo como a única capaz de composição com os interesses e exigências da ciência. Na visão de Durkheim, o ponto fraco da filosofia prática de Kant estaria na fundamentação da moral em um princípio absolutamente a priori, isso o afastou do campo da ciência.
É completamente contraditório e impossível que um conceito deva ser produzido a priori e se reporte a um objeto, embora não esteja incluído no conceito de experiência possível, nem se componha de elementos de uma experiência possível. Com efeito, não possuiria nesse caso conteúdo, pois não lhe corresponderia nenhuma intuição, visto que as intuições em geral, pelas quais nos podem ser dados os objetos, constituem o campo ou o objeto total da experiência possível. (KANT, 1781. p. 155.)
É possível que exista uma moral eterna, inscrita em qualquer espírito transcendente, ou imanente às coisas e com relação à qual as morais históricas não são mais do que aproximações sucessivas: trata-se de uma hipótese metafísica que não vamos discutir. Mas, em todo caso, esta moral é relativa a certo estágio da humanidade e, dado que esse estágio ainda não se realizou, não apenas não seria obrigatório para as consciências sãs, mas ainda deve ser nosso dever combatê-la (Durkheim: 1975b [1893], p. 273).
Um dos conflitos fundamentais no campo da moral está ligado à natureza ambivalente do ser humano, que tanto é ser individual quanto social. A estas duas faces do humano ligam-se duas estratégias da formação moral das quais uma privilegia o aspecto subjetivo/individual e a outra o aspecto intersubjetivo/social. Neste sentido, fica evidente que o ser humano faz o bem pra si na medida em que faz aos outros e isso acontece porque tem a convicção de que há o julgamento social, porque existe um sistema de preceitos que estipulam as obrigações comuns a todos onde os fatos são o reflexo da sociedade. Durkheim procurou as características do meio social em suas explicações e concebeu o agir em conformidade com as normas preestabelecidas, como sendo a moralidade social, na qual os interesses e objetivos sociais suplantam os desejos individuais. A moral não tem sua origem na vontade divina, ela se constitui num arquétipo de representações sociais formadas ao longo da história. Para Durkheim, a moral não pode ser mera aplicação de uma lei geral, pois a presunção de uma máxima geral, como a formulação do imperativo categórico, não resistiria à verificação empírica. A moral, portanto, constitui-se num conjunto de normas muito particulares que definem o comportamento nas diversas situações, é um dever porque é um imperativo social, no qual é a sociedade que ordena ao sujeito a agir desta ou daquela maneira, desta forma, a ação moral é superior e se volta para um fim que transcende os indivíduos.
O dissenso não se restringe quanto ao fim do dever moral, o sociólogo cita outros problemas inerentes ao entendimento kantiana de dever. Durkheim afirma que haveria uma carência na fala de Kant para o caráter obrigatório da moral, por tratar- se de explicação que não encontra respaldo nos fatos, pois para Kant, a moral limita-se ao plano da racionalidade. Durkheim concebe a moral como um conjunto de regras que predeterminam a conduta, considerando que não foi o indivíduo que criou as regras, elas aparecem como um dever e têm existência própria que se impõem à sua vontade. O indivíduo obedece porque sabe, mesmo que inconsciente, que há algo acima da regra. Trata-se da sociedade, que é a depositária de todos os bens morais e intelectuais produzidos pelo indivíduo ao longo de sua história. A moral abrange padrões frequentes de ação que se tornam comuns a toda uma sociedade. (...) e à medida que o meio em que vivemos se torna a cada dia mais complexo e mais flexível, devemos ter a iniciativa e a espontaneidade necessárias para segui-lo em todas as suas variações, para mudar conforme ele muda. (Durkheim 2003, p. 24). As palavras de Durkheim conduzem ao entendimento de que se faz necessário observar a realidade e dela inferir a moral, sobretudo porque a formação moral é um processo através do qual os sujeitos recebem da sociedade as normas vigentes, que são impostas a partir de uma autoridade superior e externa, onde o indivíduo não é livre para decidir conforme a sua consciência e vontade, estas devem conformar-se às normas e valores válidos na sociedade.
DIREITO DO CONSUMIDOR
O mercado de consumo cresce significativamente, bem como a ciência jurídica se desenvolve. Nesse sentido, faz-se necessária a implementação de medidas que visem a equilibrar as relações entre consumidor e fornecedor, na qual o respeito ao consumidor como titular de direitos é resultado de um extenso e complexo percurso histórico, e por isso compreender o direito do consumidor é empreitada que estimula uma releitura das raízes históricas da concepção dos indivíduos enquanto sujeitos que não poderiam ser tratados de maneira indigna mas sim, como indivíduos independentes e autônomos que mereciam tratamento honesto e digno, pois uma relação jurídica consumerista não se restringe à conduta da parte, ela decorre da atividade, dos vínculos entre os sujeitos, do objeto, da causa e deve ser norteada por princípios e de valores morais.
O fornecedor:É a pessoa humana, jurídica ou o ente despersonalizado que exerce atividade remunerada, diretamente ou indiretamente, típica e profissional de produção, de montagem, de criação, de construção, de transformação, de importação, de exportação, de distribuição ou de comercialização de serviços e/ou bens no mercado de consumo. (CDC, 1990. artigo 3º, caput). Logo, são aqueles que participam do ciclo produtivo, aqueles que se inserem no mercado de consumo, ideia que abarca o empresário e não se esgota nele, uma vez que há outras pessoas que desenvolvem atividades não empresárias, como as pessoas jurídicas de direito, pessoas jurídicas privadas e também os entes despersonalizados podem ser assim considerados.
Quanto ao conceito de consumidor, pode-se partir da etimologia da palavra, entendendo que o termo advindo de consumir, do latim consumere, significa acabar, portanto, aquele que está no final da cadeia econômica e faz o consumo, noção adotada pela lei quando aduz o termo destinatário final no art. 2º, caput: Como o pano de fundo desse estudo está na perspectiva filosófica, vale salientar a abordagem de consumidor enquanto “ser humano descomprometido, informado, alienado e preocupado com o superficial”. (Revista: Repensando o Direito do Consumidor III 25 anos de CDC,2015)[1]. O sentido filosófico pretende abranger a sociedade contemporânea despertando uma análise acerca dos reflexos jurídicos das características sociais. Não obstante, vale citar também o viés sociológico que concebe consumidor como indivíduo que pertence a uma classe social e a partir da maneira como desfruta de bens e/ou serviços se conhece as peculiaridades dos grupos sociais.
O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor constitui um preceito de proteção de vulneráveis. Sabe-se que é um diploma que é tido pela doutrina como uma norma principiológica, dada a sua proteção constitucional dos consumidores, que consta, especialmente, do art. 5º, XXXII, da Constituição Federal de 1988, ao enunciar que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” tem eficácia supralegal, ou seja, está em um ponto hierárquico intermediário entre a Constituição Federal de 1988 e as leis ordinárias.
No que concerne ao aspecto conceitual, vale citar a ideia de Miguel Reale: Os princípios são ‘verdades fundantes’ de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da praxis. (REALE, 1980. P.299)Um ponto sempre discutido diz respeito à vulnerabilidade dos consumidores, então surgiu a necessidade de elaboração de uma lei protetiva própria, é o caso da lei em comento.
É comum a presença de uma oposição na discussão e aplicação das regras comerciais, o que justifica a presunção de vulnerabilidade, reconhecida como uma condição jurídica, pelo tratamento legal de proteção. Assim, todo consumidor é sempre vulnerável, característica intrínseca à própria condição de destinatário final do produto ou serviço. Quando o consumidor não possui o conhecimento técnico que lhe permite mensurar a qualidade, os meios empregados e o risco dos objetos da relação consumerista, diz-se que há a vulnerabilidade técnica. A ideia de vulnerabilidade jurídica ou científica reside quando o consumidor não detém o conhecimento jurídico, contábil ou econômico do objeto da relação consumerista.
Ao contrário do que ocorre com a vulnerabilidade, a hipossuficiência é um conceito fático e não jurídico, fundado em uma disparidade ou discrepância notada no caso concreto. Assim sendo, todo consumidor é vulnerável, mas nem todo consumidor é hipossuficiente. Logicamente, o significado de hipossuficiência não pode, de maneira alguma, ser analisado de maneira restrita, dentro apenas de um conceito de discrepância econômica, financeira ou política. (TARTUCE,2014. p.44).
Nesse contexto, todo consumidor é vulnerável, mas nem todo consumidor é hipossuficiente, logo, o significado de hipossuficiência não deve ser estudado de maneira restrita, observando apenas os critérios e características de contraste econômico, pois deve ser observado contextualizando as situações fáticas.
A relação entre fornecedor e consumidor vista em aspectos históricos traz a ideia de como essa relação necessita de acolhimentos pela nossa legislação. O consumidor tende sempre a ser a parte mais vulnerável, com isso necessita de algo que dê equilíbrio e por isso foram adotados princípios e normas que têm a finalidade de harmonizar essa relação. As diversas transformações pelas quais passou a sociedade nas últimas décadas, alcançadas pelo progresso sócio-econômico-cultural e tecnológico, ensejou na renovação no direito, com vistas a atender às necessidades de defesa do indivíduo e da coletividade frente às questões trazidas por essa revolução. Parte dessa renovação se deu na preocupação em possibilitar acesso à justiça, ao direito. O Código de Defesa do Consumidor assume papel de destaque nesse cenário, já que facilita o acesso do consumidor à justiça, reconhecendo sua vulnerabilidade e definindo regras que o protegem na relação de consumo.
3.1 Quando o consumidor abusa do direito
O Código de Defesa do Consumidor espera proteger o consumidor como a parte vulnerável da relação de consumo, entretanto vemos muitas vezes um comportamento de má-fé por parte de consumidores, que, cientes e bem fundamentados no que seria seu direito, especulam oportunidades de vantagem indevida, a partir de equívocos cometidos por fornecedores durante oferta e publicidade de seus produtos. Assim, é comum perceber, por parte de consumidores, algumas condutas de má-fé, baseadas na distorção da verdade ou na manipulação do direito, entre outras. Os casos são muitos, inclusive os mais articulados, como é o do consumidor que, de caso pensado, se submete a contratos abusivos, para depois questioná-los na justiça, retardando e diminuindo o pagamento de parcelas.
Amparado por outros estatutos, como o Código de Processo Civil, e na busca pelo necessário equilíbrio na relação de consumo, o judiciário se vê forçado a formar jurisprudência em situações em que se detecta má-fé do consumidor, tendo nesses casos que assumir a proteção do fornecedor. Inúmeros são os exemplos de ações, nada indefesas, movidas por consumidores que, se valendo de interpretação deturpada, tendenciosa, oprimem fornecedores a disponibilizar produtos a preços irrisórios. A Justiça tem cada vez mais condenado consumidores a pagar multa e indenização por litigância de má-fé quanto se verifica que o autor entrou com a ação para conseguir, por exemplo, danos morais que configuram enriquecimento ilícito, prática que tornou-se comum.
A boa-fé é concebida como algo imanente a todas as relações sociais e jurídicas, é, portanto, um dos princípios que norteiam a vida em sociedade e assim, a atividade econômica. O Código de Defesa do Consumidor, ao trazer a boa-fé objetiva, recepcionou-a, em seu art. 4º:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
a) por iniciativa direta;
b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;
c) pela presença do Estado no mercado de consumo;
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. (CDC, 1990. artigo 4º.).
E, como princípio geral e, em seu art. 51, inciso IV:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;
II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código;
III - transfiram responsabilidades a terceiros;
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade. (CDC,1990. Artigo 51.).
A boa-fé é a determinação de um agir de acordo com os padrões de lealdade e honestidade, os indivíduos devem, pois, ajustar-se ao arquétipo de conduta social vigente.
REFERÊNCIAS
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Saraiva, 7o ed., 1980, pg. 299
.IMMANUEL KANT - Crítica da razão pura – Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Fundamentação Calouste; 5ª edição, 2011.
_____________ Crítica da razão prática - Tradução Afonso Bertagnoli. Versão eBooksBrasil.com Publicações Brasil Editora S.A. São Paulo: 1959; 2004.
BAUMAN ZYGMUNT . A Ética é possível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro, Zahar, 2011.
BOBBIO Norberto, 1909- A era dos direitos / Norberto Bobbio; tradução Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. — Nova ed. — Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. — 7ª reimpressão.
TARTUCE, Flávio Manual de direito do consumidor : direito material e processual / Flávio Tartuce, Daniel Amorim Assumpção Neves.– 3. ed. – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: MÉTODO, 2014.