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Cargos em comissão e funções de confiança no Ministério Público:

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Agenda 25/09/2018 às 15:38

1DO ALCANCE HERMENÊUTICO DA EXCEÇÃO CONSTITUCIONAL CONCERNENTE AOS CARGOS EM COMISSÃO E DOS LIMITES À LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR E À DISCRICIONARIEDADE DO ADMINISTRADOR

Quando voltamos nosso olhar para o passado, vemos que, de fato, significativos foram os avanços que a Constituição de 1988 e a EC 19/1998 trouxeram em matéria de regulação do acesso aos cargos e funções públicas, especialmente ao reafirmar, como regra geral de investidura, método imparcial e objetivo: o concurso público, representativo dos valores democráticos por ela consagrados; e também, ao estabelecer, por circunstâncias necessárias, exceção à referida regra, concernente aos cargos em comissão, declarados em lei de livre nomeação e exoneração.

Ao olharmos para o presente, porém, é impossível não observar que, na maioria das vezes, tais normas não têm alcançado a correta compreensão e aplicação nas mãos do intérprete, uma vez que a referida exceção, embora de inegável importância, tem sido concebida, por vezes, como disposição estanque, fora do contexto do próprio sistema constitucional em que se encontra inserida, desprestigiando a interpretação sistemática e teleológica em favor de uma intepretação meramente gramatical, longe, ainda, da visão restritiva que como norma de exceção deveria se submeter.

Além disso, ao mirarmos nosso olhar para o futuro, é fácil ver que tais normas precisam passar por constantes releituras, à medida que aumenta o patamar democrático alcançado pela sociedade, o qual vem exigindo uma Administração cada vez mais gerencial e não patrimonialista dos bens e interesses públicos.

E, mais, é necessário conciliar o exercício de interpretação da regra e da exceção em voga com a própria evolução hermenêutica que traz o dever de respeito não somente à legalidade (em sentido amplo), mas à juridicidade, erigidos que foram os princípios ao patamar de normas, os quais, para além de irradiarem-se como vetores no processo interpretativo das demais normas, também possuem caráter imperativo (dever ser).

Nesse sentido, adverte Emerson Garcia:

Rompendo com os alicerces estruturais do positivismo clássico, a doutrina contemporânea não mais tem visto os princípios como meros instrumentos de interpretação e integração das regras, que esgotariam o conteúdo das normas, identificando-se com elas. Atualmente, os princípios deixaram de ser estudados como complementos das regras, sendo concebidos como formas de expressão da própria norma, que é subdividida em regras e princípios. (...). Por ser cogente a observância dos princípios, qualquer ato que deles destoe será inválido, consequência esta que apresenta a sanção para a inobservância de um padrão normativo cuja reverência é obrigatória.[1]

Nesse cenário, faz-se cediço, pois, que o legislador, ao exercer seu papel de conformação das normas constitucionais, denominada, em doutrina, de ‘liberdade de conformação legislativa’, deve obediência não apenas aos limites postos no comando específico objeto de regulamentação, como a todo o sistema constitucional, com seus valores e princípios, num exercício de interpretação que começa, então, na própria seara legislativa, o qual poderá ser de maior ou menor amplitude conforme varie o grau de abstração do comando constitucional. Nesse sentido:

O legislador, na tarefa de concretizar o que está disposto na norma constitucional, não perde a liberdade de conformação, a autonomia de determinação. Mas essa liberdade não é plena, não pode prescindir dos limites decorrentes das normas constitucionais. Assim, as determinantes negativas expressas nas normas constitucionais, com os vetos que encerram, desempenham uma função de limite para o legislador ordinário. As determinantes positivas, de seu turno, regulam parcialmente o conteúdo das normas infraconstitucionais, predefinindo o que o legislador deverá adotar como disciplina normativa, dirigindo a opção dos poderes públicos, ainda que não o fazendo de modo exaustivo.[2]

O administrador, por sua vez, adstrito que está à legalidade, resta cumprir o comando legal resultado dessa conformação legislativa, mas não se exime, contudo, em caso em que a norma ainda deixe certa margem de discricionariedade, do dever de interpretá-la de modo também consentâneo com os valores que decorrem do sistema constitucional, numa interpretação um tanto mais contida, porém não menos importante. Nesse sentido:

Não satisfaz a atuação administrativa compatível apenas com a ordem legal. O Estado Democrático de Direito exige muito mais. Exige que a administração da coisa pública atenda a uma série de valores e princípios abraçados pelo texto constitucional.[3]

Daí decorrer que discricionariedade, no Estado de Direito, não se dá de maneira ilimitada, senão também consentânea com os valores e princípios que informam a ordem jurídica. Nesse sentido, são as preciosas lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Com a ampliação do princípio da legalidade, a consequência inevitável foi a redução da discricionariedade administrativa. Se esta envolve certa margem de apreciação nos limites da lei e se o conceito de lei (e de legalidade) foi se ampliando com a evolução do Estado de Direito, o resultado foi a redução do âmbito de discricionariedade da Administração Pública, seguida da ampliação do controle judicial.

A discricionariedade administrativa – como poder jurídico que é – não é limitada só pela lei, em sentido formal, mas pela ideia de justiça, com todos os valores que lhes são inerentes, declarados a partir do preâmbulo da Constituição”.[4]

Logo, conquanto não se olvide a importância da previsão da possibilidade de criação de cargos em comissão e de certa liberdade no provimento dos respectivos cargos, faz-se obrigatório ao intérprete, quer no momento da atividade legislativa de conformação dos conceitos e criação dos respectivos cargos, quer na seara administrativa por ocasião de seu provimento, ter em conta todo o sistema em que a norma se encontra inserida, com todos os valores que a informam. Fala-se, então, em interpretação sistemática, a qual, nas palavras do grande exegeta Carlos Maximiliano, consiste,

em comparar o dispositivo sujeito à exegese com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto. [...] do exame das regras em conjunto deduz-se o sentido de cada uma. (...) o direito objetivo não é um conglomerado caótico de normas, mas um conjunto harmônico de normas coordenadas.[5]

É essa, aliás, “a tônica do princípio da unidade da Constituição: que não se considere uma norma constitucional fora do sistema em que se integra; dessa forma evita-se contradições entre as normas constitucionais”[6].

Não é por outra razão que, segundo enfatizado pela Suprema Corte,

O provimento de cargos de livre nomeação e exoneração devem obedecer aos requisitos encartados na Constituição Federal, vale dizer:

a) devem ser destinados às funções de direção, chefia e assessoramento;

b) devem ser observados os princípios que regem a Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, entre outros.[7] (Grifo nosso)

Deve o intérprete, portanto, na hipótese versada, manter-se adstrito às motivações pela qual o Constituinte erigiu o concurso público como regra de acesso aos cargos públicos e a livre nomeação como exceção, delimitando-se esta de acordo com os valores que animaram a própria regra.

Há de se considerar, nesse caso, que a previsão de um instrumento impessoal e objetivo para acesso aos cargos públicos, nada mais representa do que a própria evolução do Estado de Direito, que, ao culminar em Estado Democrático, traz como consectário a obrigatoriedade da observância não apenas do princípio da legalidade, como também da isonomia, impessoalidade e moralidade, como já asseverado no Capítulo 1.

Deve o intérprete estar ciente, pois, que, no fim das contas, o que está em jogo na previsão das referidas normas, não é nada menos do que a consagração do princípio democrático, postulado base do regime republicano em que se assenta a Constituição, de forma que violar suas disposições, interpretando-as fora de seu contexto, importa violar a própria diretriz fundamental do sistema.

Nesse sentido, asseverou Celso de Mello em brilhante explanação:

O respeito efetivo à exigência de prévia aprovação em concurso público qualifica-se, constitucionalmente, como paradigma de legitimação ético-jurídica da investidura de qualquer cidadão em cargos funções e empregos públicos, ressalvadas as hipóteses de nomeação para cargos em comissão. A razão subjacente ao postulado do concurso público traduz-se na necessidade essencial de o Estado conferir efetividade ao princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, vedando-se, desse modo, a prática inaceitável de o Poder Público conceder privilégios a alguns ou de dispensar tratamento discriminatório e arbitrário a outros”.[8]

No mesmo sentido:

A Constituição de 1988 estabeleceu que a investidura em cargo depende da aprovação em concurso público. Essa regra garante o respeito a vários princípios constitucionais de direito administrativo, entre eles, o da impessoalidade e o da isonomia. (RE 319156, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 25/10/2005, DJ 25-11-2005 PP-00034 EMENT VOL-02215-03 PP-00576 LEXSTF v. 28, n. 325, 2006, p. 282-285)

Daí se considerar, a contrario sensu, conforme lembra Marçal Justen Filho, que “a restrição à competência de livre nomeação e exoneração, mesmo para cargos em comissão, retrata conquista política, e deriva da incorporação ao sistema jurídico de princípios mais elevados acerca da Administração estatal”[9]. E, como tal, “reflete a evolução que impregna o próprio conceito jurídico de discricionariedade”[10], não podendo ser praticada em contrariedade aos princípios que decorrem do regime em que a norma se encontra inserida.

Ao verificar essas relevantes premissas, não é possível ao intérprete chegar a outra conclusão senão, como bem ressalta Marçal Justen Filho, a de que,

A vontade constitucional é que os cargos em comissão sejam uma exceção. A Constituição pretende que os titulares de cargos públicos sejam, como regra providos mediante um processo de seleção norteado por critérios objetivos e sejam investidos de garantias que lhe assegurem isenção no desempenho de suas funções. Ou seja, não é compatível com a Constituição que a generalidade dos cargos públicos seja de “livre” provimento e demissão.[11]

E, em assim sendo, é preciso atentar-se para outra relevante regra de hermenêutica que, conquanto básica, é constantemente desconsiderada, qual seja, a de que as regras de exceção se interpretam restritivamente, como se infere da obra de Carlos Maximiliano:

As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente.[12]

Pela própria lógica de se tratarem de normas que criam situações fora da regra geral, as normas de exceção devem ser interpretadas com cautela, sob pena de se converter a exceção em regra.

Destarte, a par da interpretação sistemática, a excepcionalidade da norma constitucional apresenta-se também como condicionante da atuação do legislador na conformação dos conceitos constitucionais correlatos, como deve ocorrer com a delimitação do que sejam cargos de Direção, Chefia e Assessoramento, bem como na criação dos respectivos cargos, enfeixando-os nos limites dessa delimitação.

Assim também, o entendimento da excepcionalidade da norma deve pautar a atuação do administrador no momento do provimento do cargo, sob pena de interpretando-se a exceção extensivamente, expandir seus contornos para além dos limites pela qual foi instituída, em descompasso com o sistema constitucional.

Logo, numa análise preliminar, não se pode conceber atos legislativos que, por exemplo, à vista de concretizar os conceitos de direção, chefia e assessoramento, façam-no de forma demasiadamente alargada, a ponto de tornar regra a escolha subjetiva dos ocupantes dos cargos públicos em contraposição ao verdadeiro mandamento nela concebido e em violação flagrante ao princípio democrático e aos seus corolários de isonomia, impessoalidade e proporcionalidade.

Nesse sentido, corrobora Fabrício Motta:

(...) os cargos em comissão, por serem situações de exceção ao concurso público devem ser criados com parcimônia e cautela. A criação indiscriminada de cargos em comissão (...) atinge o princípio da igualdade.[13]

Da mesma forma, não se concebe atos administrativos de provimento dos respectivos cargos que, mediante critério puramente subjetivo e desarrazoado, nomeie para o posto público parente próximo ou alguém que não detenha qualificação mínima para o exercício das funções, fugindo, pois, também do escopo que animou a criação da hipótese excepcional.

Nesse sentido, assevera Justen Filho:

A proposta de ampla e ilimitada autonomia para provimento e demissão dos cargos em comissão é uma concepção originada dos primórdios do constitucionalismo, impregnada de uma ideologia imperial. A instauração de regime jurídico fundado no instituto da função, na vinculação de todas as competências à realização do interesse público e a proscrição de decisões derivadas de puro subjetivismo impedem a manutenção da ideia de que a investidura ou a exoneração em cargo em comissão possa ser objeto de uma decisão livre – não, pelo menos, se livre significar arbitrária.[14]

Nesse sentido, é evidente que o interprete não pode olvidar, ainda, a relevância e imperatividade que os princípios da razoabilidade e proporcionalidade exercem na formação da norma jurídica, seja ela geral e abstrata, seja a produzida no caso concreto.

Luís Roberto Barroso, ao dispor sobre a utilização do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade na atividade legislativa explica que a fórmula utilizada para sua aplicação foi a importação de figura tradicional originária do direito administrativo francês, identificada como détournement de pouvir, isto é, o desvio ou excesso de poder. “Convencionalmente aplicada no controle dos atos administrativos, o conceito teve seu alcance estendido para abrigar certos casos envolvendo atos legislativos”[15].

Correlacionando, então, o tema à seara administrativa, Celso Antônio Bandeira de Mello lembra que os poderes administrativos são meramente instrumentais, daí serem chamados de deveres-poderes, os quais, conforme ensina o autor, “só existirão e, portanto, só poderão ser validamente exercidos – na extensão e intensidade proporcionais ao que seja irrecusavelmente requerido para o atendimento do escopo legal a que estão vinculados”[16].

Vale dizer, portanto, que, embora a Constituição Federal de 1988 tenha excepcionado os cargos em comissão da regra do concurso público, dizendo-os de livre nomeação e exoneração a denotar certa margem de liberdade, ao usar o termo “livre” não deu guarida irrestrita quer para a criação, quer para o respectivo provimento, senão, - parafraseando Bandeira de Mello -, instrumento a ser utilizado na extensão e intensidade ao que seja estritamente necessário à finalidade para os quais foram contemplados.

Com efeito, é de concluir que, no Estado Democrático de Direito, não se admite que a liberdade de conformação do legislador na criação dos cargos em comissão e a discricionariedade do administrador no provimento dos referidos cargos se faça em contraposição aos fins que animaram a formação da norma, decorrentes dos próprios fundamentos que norteiam o regime e o sistema em que se baseia a Constituição.

Como assevera Carmem Lúcia Antunes Rocha[17]:

A expressão livre nomeação e exoneração empregada na Constituição (art. 37, II) (...) não significa senão que o ato de nomeação, praticado para o provimento do cargo destinado juridicamente a se exercer como um comissionamento, não vincula a autoridade competente indefinidamente, sequer ficando ele restrito ao nome eleito em determinada ocasião. Não se tem, contudo, por força dessa discricionariedade incidente quanto à escolha do agente, competência tão ampla e descomprometida.

Assim, assevera a ilustre Ministra:

(...) Não se interprete o comissionamento como um arbítrio administrativo deixado ao cuidado do administrador público. Arbitrariedade administrativa é incompatível com o Estado de Direito. Assim, não há comissionamento conferido sem limites a quem quer que seja. Principalmente, não há como interpretar norma que configure como cargo de provimento comissionado sem atentar para as normas que estabelecem os fundamentos constitucionais da Administração Pública[18].

Com efeito, como também ressalta Adilson Abreu Dallari,

é evidente que se a administração puder criar todos os cargos com provimento em comissão, estará aniquilada a regra do concurso público. Da mesma forma, a criação de um único cargo em comissão, sem que isso se justifique, significa burla à referida regra.[19]

Por isso, conclui Lúcia Valle Figueiredo: “É preciso cuidado muito grande para saber o real limite da possibilidade legal de criar cargos em comissão”[20].

Nesse contexto, necessário se faz averiguar e discutir os parâmetros constitucionais para a criação e provimento dos referidos cargos, a fim de entender o real limite da exceção constitucional e evitar a violação não apenas da regra imposta na Constituição referente ao concurso público (artigo 37, I,), como, igualmente, dos postulados que lhe dão sustentação.

1.1Dos Requisitos Necessários para a Criação e Provimento dos Cargos em Comissão

A Constituição Federal, quer por meio de regras, quer mediante normas decorrentes dos princípios por ela positivados, estabelece limites à criação e ao provimento dos cargos em comissão.

Em breve análise, verifica-se que o primeiro limite previsto na Lei Magna é a forma de criação dos referidos cargos, que, como visto, deve se dar por meio de lei formal, conforme prescreve o artigo 48, X.

Outra limitação imposta pelo Constituinte é referente ao tipo de atividade tais cargos podem abarcar, quais sejam: apenas atribuições de direção, chefia e assessoramento, a teor do artigo 37, V.

Ainda, a fim de que se possa averiguar se as funções do cargo realmente correspondem às atividades acima, é evidente que deve o legislador, no ato da criação do cargo, descrever suas funções de forma clara, em exercício do que exige o princípio da publicidade, possibilitando, pois, o controle social.

Além disso, doutrina e jurisprudência, apreciando o tema, acrescentam que somente se admitem sejam criados cargos em comissão para atribuições em que o elemento confiança seja indispensável, sob pena de violação do princípio da impessoalidade e da regra do concurso público que a esse visa atender. Nesse sentido:

A criação de cargos em comissão referentes a funções para cujo desempenho não é necessária a confiança pessoal viola o disposto no art. 37, inciso II, da Constituição Federal. (RE 1010804 AgR, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 30/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-176 DIVULG 09-08-2017 PUBLIC 10-08-2017)

Por tratar-se de exceção, outro limite se impõe à sua existência: a proporcionalidade quanto aos cargos efetivos, devendo constituir minoria em relação àqueles, como já se manifestou o Supremo Tribunal Federal.

Ainda, como já antes observado, além da limitação natural decorrente da própria natureza das atividades do cargo, outra foi inserida pela Emenda Constitucional 19/1998: a fixação de percentual mínimo dos cargos em comissão a ser preenchido por servidores de carreira.

Não se pode descurar, por fim, do limite imposto pela Súmula Vinculante nº 13 do Supremo Tribunal Federal ao provimento dos respectivos cargos, qual seja, a vedação do nepotismo, a qual vem salvaguardar também os postulados da impessoalidade e da moralidade.

Com base nessas premissas, podemos sistematizar sete requisitos de observância obrigatória para a criação e provimento dos cargos em comissão:

1 – Criação do cargo por lei;

2 – Correspondência com as atividades de direção, chefia e assessoramento;

3 – Indispensabilidade, para o adequado exercício das funções do cargo, de relação de confiança entre a autoridade nomeante e a pessoa nomeada;

4 – Descrição das funções do cargo na lei.

5 – Proporcionalidade em relação aos cargos efetivos

6 – Percentual destinado aos servidores de carreira.

7 – Vedação ao nepotismo.

Passemos, pois, a análise de cada um dos requisitos, com ênfase para aqueles que exigem maiores considerações dada a extensão e complexidade.

1.1.1Da Criação do Cargo Por Lei

Como visto em linhas antecedentes, dispõe a Constituição Federal no artigo 48, X, que a criação dos cargos públicos deve se dar, em regra, por meio de lei formal, não se fazendo diferente em relação aos cargos em comissão, pelo que não se admite sejam criados por expedientes subalternos tais como decretos e portarias, sob pena de violação à reserva legal.

Nesse sentido, já decidiu a Suprema Corte:

A delegação de poderes ao Governador para, mediante decreto, dispor sobre ‘as competências, as atribuições, as denominações das unidades setoriais e as especificações dos cargos, bem como a organização e reorganização administrativa do Estado’, é inconstitucional porque permite, em última análise, sejam criados novos cargos sem a aprovação de lei. (ADI 4.125, Rel. Min. Cármen Lúcia, Plenário, DJe 15/2/2011).

Segundo prescreve Marçal Justen Filho:

A criação e a disciplina do cargo público fazem-se necessariamente por lei no sentido de que a lei deverá contemplar a disciplina essencial e indispensável. Isso significa estabelecer o núcleo de competências, dos poderes, dos deveres, dos direitos, do modo de investidura e das condições de exercício das atividades.”[21].

1.1.2Da Correspondência com as Atividades de Direção, Chefia e Assessoramento

No artigo 37, inciso V, a Constituição prevê que os cargos em comissão se destinam apenas para as funções de direção, chefia e assessoramento.

V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento; (Grifo nosso)

Muito se afirma, pois, especialmente na jurisprudência dos Tribunais Superiores, que “a criação de cargos em comissão tem como limite o exercício das funções de direção, chefia e assessoramento, nos termos do artigo 37, inciso V, da Carta da República”[22] ou que “é inconstitucional a criação de cargos em comissão que não possuem caráter de assessoramento, chefia ou direção”[23].

Contudo, conquanto o Constituinte tenha previsto as referidas balizas, não conceituou tais termos. Tampouco há lei de caráter geral prevendo o conteúdo das atividades[24].

Além disso, como afirma Fabrício Motta, “a peculiaridade verificada na redação do inciso é que os termos utilizados possuem significados aproximados, talvez complementares, o que impede uma conceituação precisa”[25].

Na prática, portanto, como destaca o autor, a questão que ganha relevância não é se o cargo encerra ou não uma das três atividades previstas na Constituição, mas “a precisão do conteúdo dos termos utilizados no texto”[26].

A delimitação dos conceitos de chefia, direção e assessoramento apresenta-se de suma importância, tendo em vista que dela depende o próprio legislador ordinário no momento de criação dos respectivos cargos, o administrador na tarefa de provê-los e, por vezes, o Judiciário, no exercício da verificação de conformidade dos referidos atos legislativos e administrativos com as hipóteses que lhe legitimam.

Com efeito, muito embora as palavras utilizadas no texto pareçam simples ou de uso comum, é cediço que, muitas vezes, o simples texto, por si só, não corresponde à norma que o permeia.

Segundo explica Paulo Gustavo Gonet Branco[27], ao tratar da interpretação constitucional:

Interpreta-se um preceito para dele se extrair uma norma (uma proibição, uma faculdade ou um dever). (...) A norma, portanto, não se confunde com o texto, isto é, com seu enunciado, com o conjunto de símbolos linguísticos que forma o preceito. Para encontrarmos a norma, para que possamos afirmar o que o direito permite, impõe ou proíbe, é preciso descobrir o significado dos termos que compõem o texto e decifrar, assim, o seu sentido linguístico. A disposição, preceito ou enunciado linguístico – esclarecem Canotilho e Vital Moreira – é o objeto de interpretação; a norma é o produto da interpretação. Daí se extrair que a norma constitucional é formada por “uma medida de ordenação expressa através de enunciados linguísticos (programa normativo) e por uma constelação de dados reais (setor ou domínio normativo).

Conforme dispõe o autor, a interpretação orientada à aplicação não se torna completa se o intérprete se bastar com a análise sintática do texto. De tal modo, para que possa ser aplicada, a norma constitucional deve ter o seu conteúdo semântico averiguado, em coordenação com o exame das singularidades da situação real que a norma pretende reger.

Na conceituação geral, extraída do dicionário[28], tem-se que direção é ato ou efeito de dirigir:

A chefia, a seu turno, significa

Já o assessoramento, conceitua o dicionário Houaiss, é : aquele que é adjunto a alguém, que exerce uma atividade ou cargo para ajudá-lo em suas funções e, eventualmente, substituí-lo nos impedimentos transitórios”[30].

José Marinho Pinheiro Madeira[31] ensina que direção significa poder de comando, uma posição no topo dentro de uma hierarquia. Pressupõe-se, segundo explica o autor, que uma direção abarque um departamento inteiro.

Chefia, a seu turno, consoante informa o autor, embora também pressuponha poder de decisão e autoridade, abarca um ângulo de atuação menor que o da direção:

Diz-se que determinado servidor é chefe de uma seção, que é mais restrita que um departamento. O chefe é o superior mais imediato dos servidores, ao passo que o diretor é mais mediato que este. Todavia ambos sustentam o caráter de hierarquia dentro de uma instituição pública, e ambos são cargos de comando.

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Assessoria, por sua vez, corresponderia, segundo exprime o autor, à prestação de um auxílio à determinada autoridade, ou, em outras palavras, o assessor dá um suporte, seja de índole técnica ou empírica, a um superior.

Tem-se aí, contudo, apenas uma parte da interpretação, qual seja, o sentido básico e geral dos referidos termos, sendo necessário, em composição ao entendimento anotado, que se descubra o conteúdo semântico do texto em coordenação com o exame das singularidades da situação real a ser regida, ou seja, é preciso, sem se descurar do contexto, buscar a norma que se extrai do texto: o que, de fato, o direito permite, impõe ou proíbe.

Nesse exercício de concretização da norma, não se pode esquecer da diretriz exposta por Carlos Maximiliano, de que as regras de exceção se interpretam restritivamente.

Nesse sentido, adverte também Fabrício Motta:

(...) os institutos versados consubstanciam exceções à regra do concurso público, e como tais devem ser interpretados.[32]

Conforme destaca Carlos Maximiliano, “a atribuição de efeito amplo ou restrito a um preceito orienta-se pelo fator teleológico, pois a adoção de um ou de outro tipo de exegese se inspira na ratio legis, atentando-se para o bem que o texto deve proporcionar e para os males que deve evitar”[33].

Com efeito, é necessário, pois, que, ao delimitar o conceito normativo dos termos direção, chefia e assessoramento, se busque uma delimitação mais consentânea com a motivação constitucional que justificou a necessidade da previsão dos cargos em comissão como hipóteses de livre provimento capaz de suplantar a regra democrática do concurso público, sob pena de fulminar o próprio objetivo que se tinha em mente com a criação da exceção e, de consequência, a própria regra constitucional.

Exatamente por isso, o tema será tratado em conjunto com o terceiro requisito, qual seja, o critério confiança, ratio legis da exceção constitucional.

1.1.3Da Indispensável Relação de Confiança e da Delimitação Normativa dos Termos Direção, Chefia e Assessoramento.

Conforme destacam a doutrina e o Supremo Tribunal Federal, ao estabelecer a possibilidade de contratação direta dos cargos comissionados, a norma constitucional não teve outra finalidade senão a de contemplar certas atividades que, pela sua própria natureza, exigem sejam realizadas dentro de uma relação de estrita confiança e, portanto, devem compor certa margem de liberdade à autoridade na escolha do profissional adequado às respectivas funções.

Nesse sentido, explica Lúcia Valle Figueiredo:

Não é possível a lei erigir cargos em comissão que não tenham compatibilidade com a função desempenhada. É dizer: o texto constitucional, ao falar em cargo em comissão “declarado em lei de livre provimento e exoneração” está a pressupor a existência de necessidade administrativa de tal cargo. Realmente, o cargo pode ser em comissão quando sua vocação for para tal efeito, ou seja: o elemento que se vai investir no cargo deve gozar da mais absoluta confiança daquele com quem vai trabalhar. (...) Não há a possibilidade de qualquer cargo ser em comissão, mesmo que a lei disponha dessa forma.[34]

No mesmo sentido, Carvalho Filho:

Seus titulares são nomeados em função da relação de confiança que existe entre eles e a autoridade nomeante. Por isso é que, na prática, alguns os denominam de cargos de confiança.[35] 

Também assim, a Suprema Corte:

A criação de cargos em comissão referentes a funções para cujo desempenho não é necessária a confiança pessoal viola o disposto no art. 37, inciso II, da Constituição Federal. (RE 1010804 AgR, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 30/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-176 DIVULG 09-08-2017 PUBLIC 10-08-2017)

Daí que não basta se encontre a atividade inserida no conceito amplo de direção, chefia e assessoramento, sendo necessário delimitar o conteúdo dos referidos termos com a ratio legis que inspirou a exceção, isto é, se a atividade, embora correspondente a um desses três nichos de atribuição, demanda indispensável relação de confiança, como assevera Fabrício Motta:

Percebe-se que as duas características anotadas – natureza das atribuições e vínculo de confiança – são cumulativas próprias à natureza de cargos em comissão (...).[36]

Confiram-se, a propósito, outros arestos do Supremo Tribunal Federal:

(...) É inconstitucional a criação de cargos em comissão que não possuem caráter de assessoramento, chefia ou direção e que não demandam relação de confiança entre o servidor nomeado e o seu superior hierárquico (...). Ofensa ao artigo 37, II e V, da Constituição Federal.[37] (Grifo nosso)

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.[38]

O Plenário do Supremo, no julgamento da ADI 3.602, Rel. Ministro Joaquim Barbosa, assentou a inconstitucionalidade da norma municipal por incorrer em criação de cargos de direção, chefia e assessoramento desprovidos da necessária e característica relação de confiança. No mesmo sentido: ADI 1141, Rel. Ministra Ellen Gracie, Dj 29/08/03, ADI/MC 1269, Rel. Ministro Carlos Velloso, Dj 02/06/95, dentre outros.[39]

Trata-se de um requisito implícito na Constituição que, tendo em conta a noção de função e finalidade da Administração Pública, visa a um melhor desenvolvimento da atividade administrativa em si considerada, com vistas à consecução do interesse público, e não à satisfação da conveniência privada do administrador.

Nesse sentido, destaca Fabrício Motta:

É evidente que o vínculo de confiança serve à finalidade pública almejada pelo ordenamento, e não para deleites ou privilégios.[40]

Em percuciente manifestação, a Ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha ensina que:

(...) o elo de vinculação pessoal identifica o agente que é indicado para o exercício da função e denota a sua ligação com a política ou com as diretrizes administrativas estabelecidas. Cuida-se de situação excepcional, que precisa ser considerada e compatibilizada com a impessoalidade, posta como princípio constitucional intransponível e incontornável. A confiança haverá de ser considerada em relação às condições de qualificação pessoal e à vinculação do agente escolhido com a função a ser desempenhada[41].

Em outras palavras, a análise sobre se o caso encerra a possibilidade ou não da contratação em comissão, ou mais especificamente, se demanda relação de confiança, deve partir da necessidade do cargo em si considerado e não do interesse do agente público sob o qual o cargo encontra-se subordinado.

A relação de confiança deve servir, portanto, ao bom desempenho das funções do respectivo cargo e não à conveniência da autoridade em ter, na posição, alguém que lhe satisfaça mais os gostos, preferências ou interesses pessoais, ainda que isso possa, ao fim e ao cabo, gerar benefícios indiretos à atuação do agente.

Além disso, é preciso ressaltar que não se trata de uma confiança comum, que se tem por exemplo nos demais servidores submetidos a concurso público, mas um tipo especial de confiança, para a qual o concurso público não seja suficiente a estabelecer.

É que, pela própria lógica, somente se flexibiliza uma regra quando estritamente necessário, sob pena de deslegitima-la e torna-la inócua. Daí se infere que, ao estabelecer exceção ao concurso público e, de consequência, ao princípio democrático e à impessoalidade, o Constituinte somente poderia fazê-lo onde fosse estritamente necessário, isto é, indispensável. Caso contrário estaria a subverter a regra e o próprio sistema na qual ela encontra inserida, numa espécie de esquizofrenia jurídica.

É evidente, portanto, que, ao prever a possibilidade de contratação direta para os cargos em comissão e estabelecer que se destinam a atividade de direção, chefia e assessoramento, o Constituinte não está a tratar de quaisquer atribuições de chefia, direção e assessoramento, senão aquelas que demandam uma relação de confiança qualificada, específica, característica de certas atividades, tal que suplante a confiança comum ou geral que se tem com a submissão e aprovação dos candidatos em concurso público.

Tratasse de confiança comum, só haveria duas conclusões possíveis: a exceção é desnecessária ou, a contrario sensu, os servidores submetidos ao concurso público, tais como um médico e um engenheiro, não gozam da confiança da autoridade e, daí se teria que dizer que a regra é que é desnecessária.

Obviamente que médicos e engenheiros, que, dentro de seus espectros de atividade também prestam um serviço de assessoria à administração, quando elaboram um laudo ou calculam e desenham a planta de um prédio gozam sim da confiança do administrador e, ademais, o método escolhido pela Constituição procura exatamente selecionar pessoas competentes para o exercício das funções públicas estabelecendo uma confiança de que pessoa selecionada será capaz de, com qualificação técnica e boa reputação, exercer com aptidão e eficiência as atividades públicas.

Daí se entender, permita-nos repetir, que, ao prever a possibilidade de contratação direta para os cargos em comissão, prevendo que se destinam a atividade de direção, chefia e assessoramento, o Constituinte está a tratar apenas de atribuições de chefia, direção e assessoramento que demandem uma relação de confiança capaz de suplantar a mera capacidade técnica ou reputação ilibada, que, de resto, há que se ter no ocupante de todo e qualquer cargo público.

Nesse sentido, expõe Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pagani de Souza:

Esta exceção à regra geral do concurso público não é infundada ou despropositada; ela expressa, justamente, o necessário reconhecimento de que, para o acesso a esses postos, a exigência de concurso pode se revelar impertinente. Duas razões essenciais militam neste sentido.

A primeira é a de que é justamente a partir destes postos mais altos, de comando da Administração Pública, que se imprime o norte, o rumo, a direção da atuação administrativa (observadas, evidentemente, as balizas legais); em razão disso, faz-se necessário, em muitos casos, que sejam ocupados por pessoas que estejam alinhadas com o plano de governo da chefia do Executivo democraticamente eleita. Não fosse assim, os ocupantes dos postos mais altos da máquina administrativa, todos concursados, poderiam colocar-se em desalinho com o plano a ser implementado, anulando os efeitos benéficos da saudável alternância do exercício do poder, própria do regime democrático.

A segunda razão é a de que, se fosse necessário o concurso para acesso a estes postos mais altos, poderia ser comprometida a especial relação de confiança que deve existir entre os seus ocupantes. A direção, a chefia e o assessoramento superior só podem ser adequadamente exercidos se houver este especial vínculo de confiança. Aqui vale uma explicação mais detalhada.

Dissemos especial relação porque, é claro, a relação de confiança é útil a qualquer trabalho em equipe, ainda que não desempenhado pelos chamados escalões superiores. Confiança - seja permitido realçarmos o óbvio - é chama que, bem alimentada, move ao sucesso as equipes de trabalho seja qual for o patamar hierárquico que ocupem numa organização; mas também é fato que, embora útil em toda parte, a sua presença se faz absolutamente indispensável em meio aos escalões superiores das organizações; nestes, uma vez minada a confiança entre os seus ocupantes, toda a organização pode restar comprometida. Afinal, é natural que as decisões emanadas dos postos de comando tenham maiores e mais graves repercussões do que as outras. Manter a relação de confiança entre os seus ocupantes é, por isso, uma forma de proteger e preservar a própria instituição - e, no caso da Administração Pública, de assegurar, indiretamente, a continuidade do serviço por ela prestado à população.[42]

Pode-se dizer, então, que a Constituição previu, implicitamente, em correspondência ao tipo de confiança exigido, dois tipos de atividades: atividades que exigem confiança objetiva ou técnica, consistente na habilidade técnico-profissional e na reputação social do indivíduo, as quais podem ser avaliadas num certame público; e, para além desta, atividades que exigem confiança subjetiva ou qualificada, de viés político-administrativo, entendida como uma especial relação de fidúcia própria de certas atividades, cujo exercício exija, necessariamente, capacidade ou habilidade especial do sujeito para adequar-se a exigências específicas de determinada função ou circunstância, ou, como dito pela Ministra Carmem Lúcia: “o elo de vinculação pessoal que denota a ligação do agente com a política ou com as diretrizes administrativas estabelecidas”[43].

Por isso mesmo é que ensina Márcio Camarosano[44]:

Não é qualquer plexo unitário que reclama tal tipo de provimento, mas apenas aqueles que, dada a natureza das atribuições a serem exercidas por seus titulares, justificam exigir-se deles não apenas o dever elementar de lealdade às instituições constitucionais e administrativas a que servirem, comum a todos os funcionários, como também um comprometimento político, uma fidelidade às diretrizes estabelecidas pelos agentes políticos, uma lealdade pessoal à autoridade superior.

Tratam-se, pois, de atividades estritamente vinculadas ao estabelecimento e à execução de diretrizes institucionais, que contenham, pela própria lógica de se exigir tal fidelidade, um mínimo de autonomia e poder de decisão.

Pode-se dizer, assim, que a Constituição estabeleceu uma gradação analógica entre as hipóteses direção, chefia e assessoramento, de forma que tais atividades, embora não se sobreponham, guardam íntima relação de afinidade quanto à respectiva finalidade: promover os rumos da administração superior.

Bem por isso, Márcio Camarosano refere-se à: “direção, chefia e assessoramento Superior”, evidenciando não se tratar de qualquer função ou de qualquer assessoramento senão aquele que contemple tais características:

Admite-se que a lei declare de livre provimento e exoneração cargos de diretoria, de chefia e de assessoria superior (...).[45]

No mesmo sentido, Diógenes Gasparini:

Os cargos em comissão são próprios para direção, comando ou chefia de certos órgãos, para os quais se necessita de um agente que sobre ser de confiança da autoridade nomeante se disponha a seguir sua orientação, ajudando-a a promover a direção superior da Administração. (...) Por essas razões, percebe-se o quão necessária é essa fragilidade do liame[46]. (Grifo nosso)

Reconhecendo, pois, a excepcionalidade do termo confiança dentro da estrutura funcional, prescreve Marçal Justen Filho:

Até se pode admitir que inúmeras funções supõem a confiança do governante, especialmente no tocante aos seus auxiliares diretos e imediatos. Mas não é possível generalizar a concepção de que todos os possíveis cargos em comissão deveriam ser investidos segundo um critério de simpatia pessoal do novo governante.

Como expõe Regis Fernandes de Oliveira, “É necessário, pois, que tais cargos guardem compatibilidade lógica com os objetivos da confiança inerente a eles”[47].

É exatamente por isso que, consoante explica Pinheiro Madeira:

não se vislumbra a criação por lei de cargos em comissão para atribuições meramente burocráticas, que podem perfeitamente ser exercidas por pessoas sem qualquer qualificação em especial, tampouco desnecessária a típica confiança e o comprometimento que se requer para os cargos em comissão.[48]

Márcio Camarosano exemplifica:

(...) não há razão lógica que justifique serem declarados de livre provimento e exoneração cargos como o de auxiliar administrativo, fiscal de obras, enfermeiro, médico, desenhista, engenheiro, procurador, e outros mais, de cujos titulares nada mais se possa exigir senão o escorreito exercício de suas atribuições, em caráter estritamente profissional, técnico, livre de quaisquer preocupações ou considerações de outra natureza.[49]

No mesmo sentido, Diógenes Gasparini:

(...) os cargos que não apresentam aquelas características ou alguma particularidade entre seu rol de atribuições, como seu titular privar da intimidade administrativa da autoridade nomeante (motorista, copeiro), devem ser de provimento efetivo, pois de outro modo haverá desvio de finalidade na sua criação e, portanto, possibilidade de anulação[50].

Também assim, as decisões da Suprema Corte:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 37, II E V. CRIAÇÃO DE CARGO EM COMISSÃO. LEI 15.224/2005 DO ESTADO DE GOIÁS. INCONSTITUCIONALIDADE.

É inconstitucional a criação de cargos em comissão que não possuem caráter de assessoramento, chefia ou direção e que não demandam relação de confiança entre o servidor nomeado e o seu superior hierárquico, tais como os cargos de Perito Médico-Psiquiátrico, Perito Médico-Clínico, Auditor de Controle Interno, Produtor Jornalístico, Repórter Fotográfico, Perito Psicológico, Enfermeiro e Motorista de Representação. Ofensa ao artigo 37, II e V da Constituição federal. Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos incisos XI, XII, XIII, XVIII, XIX, XX, XXIV e XXV do art. 16-A da lei 15.224/2005 do Estado de Goiás, bem como do Anexo I da mesma lei, na parte em que cria os cargos em comissão mencionados.

(ADI 3602, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 14/04/2011, DJe-108 DIVULG 06-06-2011 PUBLIC 07-06-2011 EMENT VOL-02538-01 PP-00027 RTJ VOL-00222-01 PP-00083 RIP v. 13, n. 68, 2011, p. 425-427)

Como bem expressa Regis Fernandes de Oliveira, “de fato o interprete não pode deixar de considerar o móvel determinante do provimento dos cargos, abstraindo, inicialmente, o rótulo a eles emprestado”.[51]

É certo que, em se tratando de cargos de direção, ao menos prima facie, haverá uma maior sintonia com a relação de confiança ora mencionada, tendo em vista constituir uma delegação de parcela da autoridade do administrador, uma espécie de longa manus, de quem poderá vir a emergir decisões conducentes dos rumos fundamentais de determinado Órgão e Instituição.

Em se tratando dos cargos de chefia, entretanto, essa sintonia apresenta-se um pouco menor, tendo em vista que poderá haver cargos de chefia que não necessariamente expressem a indispensabilidade desse comprometimento com as diretrizes políticas da autoridade, senão mera organização de serviços burocráticos, o que se teria, por exemplo, em um cargo de Chefe de Biblioteca, Chefe do Almoxarifado, etc.

A propósito, tratando especificamente sobre o termo ‘chefia’, não foi outro o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em acórdão referendado pelo Supremo Tribunal Federal:

Analisando os cargos impugnados na Lei em apreço, resta patente que foram nomeados servidores para o exercício de atribuições predominantemente técnicas e burocráticas, em descompasso com as determinações constitucionais. Evidente que não se desconhece a necessidade dos órgãos públicos terem suas respectivas chefias. O que se está a sustentar aqui, todavia, é que nem todas as chefias podem ser providas pela via do cargo em comissão, pois estes se destinam, apenas, ao preenchimento de vagas na administração superior do ente municipal, onde o comprometimento com as diretrizes políticas do Chefe do Executivo são efetivamente indispensáveis. As chefias secundárias, entretanto, porque submetidas às superiores, não demandam esta especial confiança, podendo ser providas por servidores concursados, agraciados, em razão da maior responsabilidade a eles atribuída, com funções gratificadas” (fls. 256-256v, grifos meus).

Verifica-se, portanto, que o acórdão recorrido não dissentiu do entendimento firmado por esta Corte no sentido de que é inconstitucional a criação de cargos em comissão que não tenham caráter de assessoramento, chefia ou direção e que não demandem relação de confiança entre o servidor nomeado e o seu superior hierárquico.

(ARE 753415 AgR, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 29/10/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-224 DIVULG 12-11-2013 PUBLIC 13-11-2013) (Grifos do autor)

Se assim é com a hipótese de chefia, que dirá do termo assessoramento, cuja amplitude conceitual permite seja nele inserido, inadvertidamente, qualquer tipo de prestação de auxílio, assistência e ajuda.

Como bem descreve Pinheiro Madeira,

as características do cargo de assessor se assemelham às de um funcionário comum, pois que não raro qualquer um destes terá qualificações técnicas, que serão adquiridas por meios de cursos, ou empíricas, se se considerar um período expressivo tanto dentro do serviço público quanto da iniciativa privada.[52]

Haveria, pois, prima facie, uma certa tensão entre a amplitude do termo assessoramento e a própria excepcionalidade da hipótese concernente aos cargos em comissão, a qual, no mínimo, leva à necessidade de uma análise mais detida.

Uma coisa é certa:

Rememorando a lição de Canotilho e Vital Moreira citada por Paulo Gonet de que a norma não se confunde com o texto[53], bem como a lição do grande exegeta Carlos Maximiliano, de que as regras de exceção se interpretam restritivamente[54] , é preciso delimitar a expressão assessoramento, a fim de compatibilizá-la com a hipótese versada, conferindo-lhe, então, exegese restritiva.

Ao tratar do tema, Carlos Maximiliano dispõe que na interpretação restritiva parte-se do pressuposto de que o legislador escreveu mais do que realmente pretendia (plus scripsit quam voluit), sendo necessário, portanto, diminuir o alcance da lei. O intérprete elimina a amplitude das palavras. Isso ocorre por exemplo com uma norma que diz “descendente”, quando na realidade queria dizer “filho”[55].

Por assessoramento, no contexto excepcional dos cargos em comissão, deve-se entender, portanto, tão somente aqueles tipos de assessoria que, dado o estabelecimento de um grau mínimo de autonomia, exigirem aquele comprometimento político, uma fidelidade às diretrizes estabelecidas pela autoridade, uma lealdade pessoal à autoridade superior.

A relação de fidúcia para o seu exercício deve superar, portanto, a mera confiança objetiva ou técnica ou – parafraseando Márcio Cammarosano - o simples dever elementar de lealdade às instituições constitucionais e administrativas a que servirem, comum a todos os funcionários. Em outras palavras, um cargo denominado “assessor”, ainda que possua descrição de funções atinentes a assessoramento, pode vir a não se enquadrar na exigência constitucional, por não exigir mais do que capacidade técnica e boa reputação.

Nesse alinhamento e em razão do tema do presente trabalho, é necessário que, no momento da interpretação da norma Constitucional - seja por ocasião da criação dos respectivos cargos, seja no ensejo de seu provimento -, se perquira, inclusive, se todos os casos de assessoria jurídica permitem-se ser providos por comissão, ou seja, se exigem esse grau de fidúcia qualificado, esse comprometimento político, essa fidelidade às diretrizes estabelecidas pela autoridade, essa lealdade pessoal apta a dispensar a regra do concurso público e flexibilizar o princípio da impessoalidade, ou se, em determinados casos, dada a falta de um mínimo de autonomia, constituiria apenas serviço técnico, burocrático e corriqueiro da instituição.

É imprescindível, pois, que se faça uma análise percuciente da compatibilidade das funções com a exigência desse grau qualificado de confiança, aferido – repita-se – considerando-se a indispensabilidade para o exercício das funções e não para a satisfação de conveniências pessoais da autoridade.

É preciso ter cuidado para evitar se consagre o conteúdo pelo simples rótulo, ou a norma pelo simples designativo do texto, numa ligação direta que afirma: a Constituição permitiu que se crie cargos em comissão para assessoramento; assessor jurídico presta assessoramento; logo, assessor jurídico se enquadra na exceção; negligenciando-se, assim, o escopo, a ratio legis, do estabelecimento da exceção.

1.1.4Da Descrição das Atividades na Lei

Ciente dessas premissas, ao criar cargos em comissão é imprescindível que o legislador defina as respectivas atribuições, demonstrando, de forma efetiva, que se harmonizam com o princípio da livre nomeação e exoneração, isto é, não apenas que se encaixem no caráter de direção, chefia e assessoramento, mas que efetivamente exigem serem providos pelo critério de confiança qualificada acima exposto.

Nesse sentido, ensina José dos Santos Carvalho Filho:

O cargo, ao ser criado, já pressupõe as funções que lhe são atribuídas. Não pode ser instituído cargo com funções aleatórias ou indefinidas: é a prévia indicação das funções que confere garantia ao servidor e ao Poder Público.[56]

Sobre a necessidade de demonstração na lei da indispensável relação de confiança, ressalta Regis Fernandes de Oliveira[57]:

(...) a lei que cria os cargos em comissão deverá relacioná-los com o pressuposto de que sejam providos em decorrência do vínculo de fidúcia.

Como afirma o autor:

A lei deve guardar absoluta sintonia com a Constituição da República, de vez que o fato de havê-lo criado (o cargo em comissão) não o transforma naquilo que não é. Ou seja: não é o rótulo que dá essência às coisas, mas a pertinência lógica com as distinções efetuadas pela Lei Maior.

Apesar de as leis, muitas vezes, trazerem as denominações dos cargos, como por exemplo, “Chefe” e “Assessor”, é preciso ter em mente que o rótulo é irrelevante. É o conjunto de funções que substanciam as atividades que dirá se as atribuições são próprias daquela direção, chefia ou assessoramento a que a se refere a Constituição, isto é, se exigem esse grau de confiança a ponto de flexibilizar o princípio da impessoalidade.

Assim, apenas a definição legal de atribuições e responsabilidades do cargo é apta a comprovar se é mesmo jurídica e administrativamente apropriado para provimento em comissão, como exceção à regra do concurso público[58]. Daí a indispensabilidade de que as funções do cargo estejam descritas na própria lei e não em documentos esparsos, como Portarias, regulamentos ou outros expedientes subalternos.

Nesse sentido, são as decisões do Supremo Tribunal Federal:

O Supremo Tribunal Federal tem interpretado a norma constitucional do artigo 37, II, como exigência de que a exceção à regra do provimento de cargos por concurso público só se justifica concretamente com a demonstração – e a devida regulamentação por lei – de que as atribuições de determinado cargo sejam mais bem atendidas por meio do provimento em comissão, no qual se exige relação de confiança entre a autoridade competente para efetuar a nomeação e o servidor nomeado.

ADI 3602, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 14/04/2011, DJe-108 DIVULG 06-06-2011 PUBLIC 07-06-2011 EMENT VOL-02538-01 PP-00027 RTJ VOL-00222-01 PP-00083 RIP v. 13, n. 68, 2011, p. 425-427)

Não é porque consta na descrição do elenco das atribuições de um determinado cargo o verbo coordenar ou assessorar, por exemplo, que quer dizer que ele deva ser provido em comissão; a análise do conjunto de funções que aquele servidor irá executar é que dirá se são próprias de direção’.

ARE 686953, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 04/06/2012, publicado em DJe-112 DIVULG 08/06/2012 PUBLIC 11/06/2012

Ofende o disposto no art. 37, II, da Constituição Federal norma que cria cargos em comissão cujas atribuições não se harmonizam com o princípio da livre nomeação e exoneração, que informa a investidura em comissão. Necessidade de demonstração efetiva, pelo legislador estadual, da adequação da norma aos fins pretendidos, de modo a justificar a exceção à regra do concurso público para a investidura em cargo público. Precedentes. Ação julgada procedente”

ADI 3.233, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Plenário, DJe 14.9.2007ARE 686953, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 04/06/2012, publicado em DJe-112 DIVULG 08/06/2012 PUBLIC 11/06/2012

1.1.5Da Observância à Proporcionalidade em Relação aos Cargos de Provimento Efetivo

Como já antes asseverado, e utilizando-se agora das palavras de Celso de Mello -, o princípio da proporcionalidade acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais” que, enquanto vocacionados a um fim, a ele devem estar plenamente adstritos.

Trazendo a lição para o tema em análise, perquire-se, pois, a proporção ideal de cargos em comissão dentro do universo total dos cargos públicos de uma instituição. Nesse aspecto, como afirma Regis Fernandes de Oliveira[59], “a dúvida que assalta o observador é se há um limite para a criação dos cargos em comissão, de vez que seu número máximo permitido não pode ser extraído do sistema positivo”.

Segundo afirma o autor, “não há uma fórmula precisa capaz de determinar uma proporção ideal entre a máquina administrativa e a real necessidade da Administração. O Legislativo na prática, apenas referenda a discricionariedade do administrador”.

Conclui, então, o autor: “A razoabilidade e a proporcionalidade são a métrica de sua necessidade”. Mas questiona: “(...) como medi-la?”

Marçal Justen Filho[60] nos dá uma resposta inicial:

A vontade constitucional é que os cargos em comissão sejam uma exceção. A Constituição pretende que os titulares de cargos públicos sejam, como regra providos mediante um processo de seleção norteado por critérios objetivos e sejam investidos de garantias que lhe assegurem isenção no desempenho de suas funções.

Daí que, como afirma o autor, pode-se, de plano, concluir “não ser compatível com as Constituição que a generalidade dos cargos públicos seja de “livre” provimento e demissão”.

Ainda assim poderia remanescer a dúvida do percentual de cargos comissionados que um Órgão ou Instituição poderia albergar. Se não todos, quantos seriam?

Sobre o assunto, tramita no Senado Federal proposta de Emenda à Constituição (PEC 110/2015), em cujo texto se defende que os cargos em comissão, como exceção à admissão impessoal no Estado Democrático de Direito, deveriam representar, no máximo, 10% dos cargos efetivos de cada órgão, como se infere da respectiva Ementa:

PEC 110/2015

Ementa:Altera o art. 37 da Constituição Federal, para restringir a quantidade de cargos em comissão na administração pública e estabelecer processo seletivo público.

Explicação da Ementa:

Altera a Constituição Federal, para estabelecer que os cargos em comissão não poderão superar 1/10 dos cargos efetivos de cada órgão e que pelo menos a metade dos cargos em comissão caberá a ocupantes de cargo efetivo, ressalvado em ambos os casos o assessoramento direto a detentores de mandato eletivo, Ministros de Estado, Secretários de Estado e Secretários Municipais. O provimento dos cargos em comissão e funções de confiança será precedido de processo seletivo público. (Grifo nosso)

De toda forma, trata-se, ainda, de um projeto, sem, portanto, efetividade normativa para regular a conduta dos gestores públicos, de forma que remanesceria a necessidade de perquirir um percentual minimamente adequado.

Nesse caso, é preciso lançar mão da lógica.

Pela própria lógica, somente se flexibiliza uma regra quando estritamente necessário, sob pena de deslegitimá-la. Em consequência, uma exceção não pode superar a regra, sob pena de desconstituí-la. Logo, num universo da totalidade de hipóteses, tem-se que a regra deve representar a maior parte das hipóteses, isto é, no mínimo, metade mais um dos casos.

Por questão de lógica, portanto, como bem assevera Fabrício Motta:

(...) em razão de sua natureza excepcional, não se pode admitir a predominância numérica dos cargos em comissão em detrimento dos cargos efetivos. Em cada estrutura da administração, é imperioso que existam mais cargos efetivos do que cargos comissionados, sob pena de se consagrar a exceção em detrimento da regra. O abuso na criação e persistência de cargos em comissão, resquício de nossa lamentável tradição patrimonialista, deve ser coibido por meio do controle de constitucionalidade das leis respectivas.[61] (Grifo nosso)

Assim também são as lições de Carvalho Filho:

(...) afigura-se flagrantemente inconstitucional a criação de cargos em comissão em número excessivo e desproporcional ao quantitativo dos cargos efetivos.[62]

Portanto, os cargos em comissão devem representar minoria em face dos cargos de provimento efetivo, isto é, sua quantidade deve representar menos da metade dos cargos públicos existentes na unidade, sob pena de inverter a regra estabelecida na Constituição.

Como adverte Emerson Garcia:

Havendo nítido desequilíbrio entre o número de cargos em comissão e as atividades a serem desempenhadas, ou mesmo, superioridade em relação aos cargos de provimento efetivo, ter-se-á a inconstitucionalidade da norma que os instituiu, restando violados os princípios da proporcionalidade e moralidade.[63]

Como já explanado, o princípio da proporcionalidade, segundo as precisas lições de Bandeira de Mello, “enuncia a ideia – singela, aliás, conquanto frequentemente desconsiderada – de que as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade correspondentes ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas”[64].

Segue-se, portanto, segundo adverte o autor, que “os atos cujos conteúdos ultrapassem o necessário para alcançar o objetivo que justifica o uso da competência ficam maculados de ilegitimidade, porquanto desbordam do âmbito de competência; ou seja, superam os limites que naquele caso lhe corresponderiam”[65].

Pressupõe-se, assim, como afirma Regis Fernandes de Oliveira, que tais cargos, quando criados, sejam necessários à Administração, daí porque, adverte o autor:

Caso haja criação indiscriminada de cargos, pode a lei ser impugnada em Juizo, por inconstitucionalidade. Estará o vício na ausência de necessidade do cargo, no ludibrio jurídico para provimento (...)[66].

Bem por isso, Emerson Garcia também ressalta que, havendo superioridade dos cargos em comissão em relação aos cargos de provimento efetivo, só se pode concluir que, na hipótese, “a norma não é adequada à consecução do interesse público; é desnecessária, ante a dispensabilidade dos cargos para o regular funcionamento do serviço público”[67].

O Supremo Tribunal Federal já apreciou, em mais de uma oportunidade, a questão sob o prisma da proporcionalidade, como adiante se infere:

(...) cabe ao Poder Judiciário verificar a regularidade dos atos normativos e de administração do Poder Público em relação às causas, aos motivos e à finalidade que os ensejam. Pelo princípio da proporcionalidade, há que ser guardada correlação entre o número de cargos efetivos e em comissão, de maneira que exista estrutura para atuação do Poder Legislativo local”.[68] (Grifo nosso)

O número de cargos efetivos (providos e vagos) existentes nos quadros do Poder Executivo tocantinense e o de cargos de provimento em comissão criados pela Lei n. 1.950/2008 evidencia a inobservância do princípio da proporcionalidade. (...) A não submissão ao concurso público fez-se regra no Estado do Tocantins: afronta ao art. 37, inc. II, da Constituição da República. Precedentes.[69] (Grifo nosso)

1.1.6Da Fixação e Observância de Percentual a ser Reservado para os Servidores de Carreira

Consoante destaca Lucia Valle Figueiredo, “a própria Constituição dá preferência aos servidores de carreira para o provimento de cargos em comissão” ao prever no artigo 37, inciso V, com redação conferida pela EC 19/1998, que “.[70]

A fixação de percentual de cargos comissionados por servidores efetivos trata-se de relevante instrumento que visa a garantir a eficiência e a efetividade das atividades dos órgãos e instituições, especialmente dos projetos e planos estratégicos de longo prazo, porquanto preserva a memória de trabalho, evitando a descontinuidade da máquina administrativa, bem como a perda de investimentos em capacitação.

Fazendo um breve histórico do dispositivo, Carvalho Filho[71] esclarece que:

O texto constitucional anterior estabelecia que os cargos em comissão e as funções de confiança deveriam ser exercidos preferencialmente por servidores ocupantes de cargos de carreira técnica ou profissional.

A EC nº 19/1998, da reforma do Estado, todavia, alterando o inciso V do art. 37, restringiu essa investidura, limitando o exercício de funções de confiança a servidores ocupantes de cargo efetivo e a investidura em cargos em comissão a servidores de carreira, nos casos, condições e percentuais previstos em lei (...). (Grifo nosso)

Referindo-se à redação anterior à Emenda 19/98, Lucia Valle Figueiredo lembra que o Professor Adilson Dallari comentava a precariedade do dispositivo, visto que, da forma como posta, a norma estaria apenas a estabelecer apenas uma recomendação[72]. Veja-se o dispositivo na origem:

V - os cargos em comissão e as funções de confiança serão exercidos, preferencialmente, por servidores ocupantes de cargo de carreira técnica ou profissional, nos casos e condições previstos em lei;

Todavia, com a mudança de redação dada pela referida Emenda Constitucional, a norma deixou de ter caráter preferencial e, assim, restou estabelecida:

V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento; (Grifo nosso)

Determinou-se, a partir de então, que um percentual mínimo de cargos em comissão seja, necessariamente, ocupado por servidores efetivos.

Como explica Fabrício Motta[73], essa previsão, a um só tempo, “reconhece a relevância das atividades desempenhadas pelos comissionados e a importância da participação do servidor permanente nessas atividades”. Porém, como adverte o autor, a norma não é auto executável.

Com efeito, tratando da eficácia da norma constitucional em referência, Lucia Valle Figueiredo, já ao tempo da redação original, anterior à EC 19/98, discordava da afirmação de Dallari de que a norma seria mera recomendação:

Não nos parece exista a possibilidade de qualquer dispositivo constitucional ter serventia apenas de mera recomendação moral. Todas as disposições constitucionais contem sim, mito mais do que recomendação: são dotadas de eficácia. Tem-se é de procurar o limite máximo de eficácia para sua aplicabilidade.[74]

No mesmo sentido, José Afonso da Silva[75], em sua obra Aplicabilidade das Normas Constitucionais, afirma que “não há norma constitucional alguma destituída de eficácia. Todas elas irradiam efeitos jurídicos”.

O que se pode admitir, segundo preceitua o mestre, é que a eficácia de determinadas normas não se manifesta na plenitude pretendida pelo Constituinte enquanto não se emitir uma normação jurídica ordinária ou complementar executória, prevista ou requerida.

Se todas tem eficácia, conclui que se diferenciam tão só quanto ao grau de seus efeitos jurídicos, podendo constituir norma de eficácia plena (apta a produzir efeitos imediatos), norma de eficácia contida (embora apta a produzir efeitos imediatos, passível de ter sua eficácia reduzida pelo legislador) ou norma de eficácia limitada (sem aptidão para produzir todos os seus efeitos essenciais enquanto não estabelecida normatividade que regulamente sua incidência

Daí se discutir, dentro da concepção consagrada pelo ilustre professor, se o artigo 37, inciso V, na parte em que deixa a critério do legislador prever os casos, condições e percentuais mínimos de ocupação dos cargos em comissão por servidores de carreira, se trataria de norma constitucional de eficácia limitada ou de eficácia contida[76], dada a condicionante futura.

Com efeito, nos termos da classificação proposta por José Afonso, há quem entenda tratar-se de norma de eficácia limitada, afirmando tratar-se de norma que carece de um desenvolvimento normativo a cargo do legislador[77], e outros que preferem dizê-la de eficácia contida, sob a afirmação que embora auto executável e apta para produzir plenos efeitos, permite ser restringida na sua abrangência.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a questão em mais de uma oportunidade.

No Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 24287/DF, a Segunda Turma afirmou tratar-se de norma de eficácia contida:

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. COLÉGIO PEDRO II. NOMEAÇÃO DO DIRETOR-GERAL. GESTÃO DEMOCRÁTICA NO ENSINO PÚBLICO. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 20 DA LEI 5758/71. CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ARTIGO 37, INCISO V: REGRA NÃO AUTO-APLICÁVEL. RECONDUÇÃO AO CARGO POR UMA VEZ. DIREITO ADQUIRIDO: INEXISTÊNCIA. 1. A Constituição Federal, ao preconizar a gestão democrática no ensino público, remeteu à lei ordinária a forma, as condições e os limites acerca do seu cumprimento. 2. A Congregação tem o dever de sugerir ao Presidente da República seis candidatos ao cargo de Diretor-Geral do Colégio Pedro II, não estando o Chefe do Poder Executivo adstrito à lista sêxtupla. Inteligência da expressão "de preferência" contida no § 1º do artigo 20 da Lei 5758/71. 3. Cargos em comissão a serem preenchidos por servidores efetivos. A norma inscrita no artigo 37, V, da Carta da República é de eficácia contida, pendente de regulamentação por lei ordinária. 4. Compatibilidade do ato impugnado com o § 2º do artigo 20 da Lei 5758/71, que veda a recondução sucessiva e não a manutenção do Diretor-Geral no cargo por mais uma vez. Segurança denegada.

(RMS 24287, Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 26/11/2002, DJ 01-08-2003 PP-00142 EMENT VOL-02117-40 PP-08641) (Grifo nosso)

Não obstante, como é possível observar do trecho da decisão, embora tenha afirmado tratar-se de norma de eficácia contida, ao conceituar tal eficácia fê-lo segundo o conceito proposto por José Afonso para as normas de eficácia limitada, o que denota ter havido certo equívoco na decisão:

Também não assiste razão ao recorrente quando afirma que foi contrariado o inciso V do artigo 37 da Constituição. Essa norma não é autoaplicável, contudo a lei ordinária que lhe dará eficácia apenas estabelecerá as hipóteses, as condições e os percentuais mínimos segundo os quais as funções de confiança e os cargos em comissão destinados à chefia, direção e assessoramento serão preenchidos por servidores efetivos. (...) a lei prevista ainda não foi editada e, dessa forma, o inciso V do artigo 37 não é bastante em si. (Grifo nosso)

Ademais, na ADI 3706/MS, ao discutir matéria correlata, o Ministro Ayres Brito afirmou tratar-se de norma de eficácia limitada, como se infere do voto do Relator:

O inciso V do artigo 37 contém vários núcleos semânticos, cada qual deles com um tipo particularizado de eficácia. Por exemplo: quando a Constituição se refere aos cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, essa parte ‘nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei’, é de clara natureza limitada ou parcial porque depende da edição de lei. (Grifo nosso)

Parece haver assim, uma tendência a afirmar ser a norma de eficácia limitada, entendimento do qual também partilhamos, por entender que o Constituinte, ao referir-se a casos, condições e percentuais, acabou por deixar toda a normatividade da matéria a cargo do legislador, de forma que não se pode dizer que se trata de norma de eficácia plena, tampouco contida, visto não se fazer apta a produzir de imediato todos os seus efeitos.

Todavia, é preciso destacar, de início, que o fato de ser norma de eficácia limitada e programática[78], não significa a incapacidade total de produção de efeitos, como já antes asseverado. Consoante ensina José Afonso, haveria também para essas normas uma eficácia mínima, de forma a irradiar, ainda que não em sua plenitude, certos efeitos:

Sendo também dotadas, ao menos, de um mínimo de eficácia, regem, até onde possam (por si, ou em coordenação com outras normas constitucionais), situações comportamentos e atividades na esfera de alcance do princípio ou esquema que contêm, especialmente condicionando à atividade dos órgãos do Poder Público e criando situações jurídicas de vantagens ou de vínculo (...)[79].

Em conclusão, afirma o ilustre professor, que as normas programáticas têm eficácia jurídica imediata, direta e vinculante nos casos seguintes:

I-Estabelecem um dever para o legislador ordinário;

II-Condicionam a legislação futura, com a consequência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem;

III-Informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica, mediante a atribuição de fins sociais, proteção dos valores da justiça social e revelação dos componentes do bem comum;

IV-Constituem sentido teleológico para interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas;

V- Condicionam a atividade discricionária da administração e do Judiciário;

VI-Criam situações jurídicas subjetivas, de vantagem ou de desvantagem, (...)”.[80]

Com efeito, como norma de eficácia limitada e programática, ao afirmar a obrigatoriedade de que parte dos cargos em comissão sejam providos por servidores de carreira nos casos, condições e percentual previstos em lei, pode-se afirmar que o artigo 37, inciso V, segunda parte, irradia, ao menos, os seguintes efeitos:

Embora o mandamento tenha decorrido da Emenda 19, integrando o sistema constitucional desde 1998, não houve edição de lei geral prevendo os respectivos percentuais, certamente pelo fato de, em matéria de cargos e funções públicas, ter o Constituinte repartido a competência entre cada Poder e instituição, de modo que não integrando competência privativa da União, não lhe coube expedir norma central. Caberia, assim, a cada Poder e/ou instituição, em exercício de sua competência específica de criar seus próprios cargos, prever o percentual correspondente.

Não obstante, como se infere de notícia veiculada no site do Supremo Tribunal Federal em 11 de dezembro de 2017[81], o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 44), em razão da falta de regulamentação do artigo 37, inciso V, da Constituição Federal.

Segundo se extrai da notícia,

a OAB argumenta que a Constituição veda a possibilidade de ocupação desses cargos indistintamente por particulares, com base nos princípios do concurso público, da moralidade administrativa, da isonomia, do interesse público, da proporcionalidade e republicano e acrescenta que passados quase 20 anos da promulgação da Emenda Constitucional n. 19/1998 – que atribuiu a atual redação ao inciso V do artigo 37 – ainda não há lei ordinária para regulamentar o dispositivo.

O Conselho Federal da OAB relata, ainda, segundo a notícia em voga, que

tal regulamentação já foi objeto de várias leis estaduais, muitas delas julgadas inconstitucionais pelo STF e salienta que a jurisprudência do Tribunal entende que a exigência de concurso público seja implementada com maior rigor, de forma a restringir a ocupação de tais cargos por não concursados. Além disso, informa que no Senado tramita desde 2015 a Proposta de Emenda Constitucional n. 110, que pretende restringir a quantidade de cargos em comissão na Administração Pública, mas, segundo a OAB, a matéria não foi votada. O texto da PEC determina que tais cargos não poderão superar 1/10 dos cargos efetivos de cada órgão, sendo que a metade deles deve ser reservada aos servidores de carreira, restando aos demais o ingresso por meio de processo seletivo. Além da PEC 110, há outro projeto de lei sobre o tema.

O relator da ação é o ministro Gilmar Mendes que, diante da relevância da matéria adotou o rito abreviado previsto no artigo 12 da Lei 9.868/1999, para levar a ação diretamente ao Plenário para julgamento de mérito, dispensando a análise de liminar.

Em leitura do Projeto de Lei mencionado - Projeto 257/2014 -, verifica-se se que o relator justifica a legitimidade da regulamentação geral da matéria, afirmando não se tratar de usurpação da competência dos entes políticos, senão de estabelecer as linhas mestras do comando constitucional. Veja-se:

Destaque-se que o projeto não se refere ao tema regime jurídico de servidores públicos, cuja iniciativa é reservada ao Executivo (art. 61, § 1º, II, c, CF/88).

Trata-se, na verdade, de critérios e condições para se chegar à investidura em cargo em comissão, que é momento anterior ao do início do vínculo jurídico do servidor com o Estado.

Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF), o qual declarou, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2672/ES, que a matéria sobre concursos públicos não se insere no âmbito daquelas de iniciativa privativa do Poder Executivo, por se tratar de assunto relativo à condição para se chegar à investidura em cargo público, que é momento anterior ao da caracterização do candidato como servidor. Esse mesmo raciocínio da Suprema Corte, estabelecido para o acesso aos cargos efetivos, pode ser também aplicado, por evidente analogia, ao acesso aos cargos em comissão.

Enquanto não se dá o julgamento da ADI proposta pela OAB e a votação do referido projeto de lei, ou mesmo da PEC 110/2015 de mesma temática, é certo que remanesce a capacidade legislativa dos Chefes do Executivo de cada Poder, sendo que eventual omissão, como antes anotado, eventualmente poderá implicar, em sede própria, novas Ações Diretas de Inconstitucionalidade por omissão ou mesmo Mandados de Injunção individuais ou coletivos, a depender do caso.

Nesse sentido, Fabrício Motta cita importante iniciativa do Ministério Público de Goiás:

Em importante iniciativa, o Ministério Público do Estado de Goiás ajuizou mandado de injunção diante da omissão do Município de Itumbiara na edição da lei regulamentadora do quantitativo mínimo de cargos comissionados a ser ocupado por servidores efetivos, nos termos do artigo 37, V. A sentença que julgou a pretensão parcialmente procedente, declarou a mora do Poder Público municipal; ficou o prazo de 8 (oito) meses para que se ultime o processo legislativo da lei reclamada e autorizou, caso persista a mora legislativa, a instauração de liquidação por artigos na qual, em sede de cognição ampla, seja definidos os percentuais mínimos e condições para a destinação de cargos comissionados ao servidores efetivos (Autos 200802081589, 2ª Vara Cível, Juiz Fernando de Mello Xavier).[82]

Não se pode olvidar, ademais, que ao se desincumbir de seu dever de prever os casos, condições e percentuais mínimos em que se dará a ocupação dos cargos em comissão por servidores de carreira, deve o legislador também fazê-lo de modo consentâneo com a proporcionalidade e razoabilidade, não podendo, portanto, estabelecer regulamentação apenas de fachada, isto é, que não imprima, de fato, máxima efetividade ao comando constitucional.

Nesse sentido, Hely Lopes Meireles:

a lei ali referida (...) especialmente na fixação dos percentuais mínimos, deverá observar o princípio da razoabilidade, sob pena de fraudar a determinação constitucional.[83]

Sendo assim, é de concluir que não satisfaz o comando constitucional a previsão de percentual irrisório de ocupação dos referidos cargos por servidores de carreira, uma vez que tal percentual não atenderia à finalidade proposta pelo Constituinte e, uma vez desatendida esta, haveria, por certo, violação à máxima efetividade das normas constitucionais e à força normativa da Constituição, como também desvio de finalidade, a invalidar tanto a lei como o ato que a desatenda.

Resta saber, entretanto, qual seria o percentual mais adequado e razoável para atender, com máxima efetividade, o comando constitucional.

Pelo que se depreende dos Projetos de Emenda Constitucional 110/2015 e de Lei Ordinária 257/2014, ambos em trâmite no Senado Federal, o percentual indicado seria o de 50%, como adiante dispõe as respectivas ementas:

PEC 110/2015

Ementa:

Altera o art. 37 da Constituição Federal, para restringir a quantidade de cargos em comissão na administração pública e estabelecer processo seletivo público.

Explicação da Ementa:

Altera a Constituição Federal, para estabelecer que os cargos em comissão não poderão superar 1/10 dos cargos efetivos de cada órgão e que pelo menos a metade dos cargos em comissão caberá a ocupantes de cargo efetivo, ressalvado em ambos os casos o assessoramento direto a detentores de mandato eletivo, Ministros de Estado, Secretários de Estado e Secretários Municipais. O provimento dos cargos em comissão e funções de confiança será precedido de processo seletivo público.

Projeto de Lei 257/2014

Ementa:

Regulamenta o inciso V do art. 37 da Constituição, para prever os casos, condições e percentuais mínimos de preenchimento, por servidores de carreira, dos cargos em comissão na administração pública federal.

Explicação da Ementa:

Regulamenta o inciso V do art. 37 da Constituição, para disciplinar os casos e as condições de preenchimento de cargos em comissão por servidores de carreira na administração pública federal e estabelecer que, no mínimo, 50% dos cargos em comissão de cada Poder ou órgão independente serão preenchidos por servidores de carreira do respectivo quadro de pessoal. (Grifos nossos)

Da mesma forma, em análise das normas em vigor, verifica-se que o percentual de 50% tem sido o utilizado por diversos órgãos e instituições.

Com efeito, o Decreto 9.021, de 31 de março de 2017, do Executivo Federal, prevê que:

Art. 1º Serão ocupados exclusivamente por servidores de carreira os seguintes cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS da administração pública federal direta, autárquica e fundacional:

I - cinquenta por cento do total de cargos em comissão DAS, níveis 1, 2, 3 e 4;

II - sessenta por cento do total de cargos em comissão DAS, níveis 5 e 6.

No mesmo sentido, o Conselho Nacional de Justiça determinou na Resolução 88/2009, que:

§2º Para os Estados que ainda não regulamentaram os incisos IV e V do art. 37 da Constituição Federal, pelo menos 50% (cinquenta por cento) dos cargos em comissão deverão ser destinados a servidores das carreiras judiciárias, cabendo aos Tribunais de Justiça encaminharem projetos de lei de regulamentação da matéria, com observância desse percentual.

Em igual senda, ao dispor sobre a carreira dos servidores do Ministério Público da União, a Lei 13.316/2016 definiu que:

Art. 4º  (...)

§ 1o  Cada ramo do Ministério Público da União destinará, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) dos cargos em comissão aos integrantes das carreiras do Ministério Público da União, observados os requisitos de qualificação e de experiência previstos em regulamento.

Ainda na mesma linha, o Projeto de Lei Complementar 71/2006 proposto pelo Ministério Público de São Paulo, que embora tenha previsto incialmente percentual de 20%, sofreu emenda para acrescer tal percentual para 50%, sobre os seguintes fundamentos:

EMENDA Nº  1, ao  Projeto de lei Complementar 71, DE 2006

SL Nº 521, de 2006

Dê-se a seguinte nova redação ao “caput” do artigo 3º do projeto:

Artigo 3º - Os cargos em comissão existentes no Quadro do Ministério Público do Estado serão preenchidos na proporção mínima de 50% (cinqüenta por cento) por servidores ocupantes de cargo efetivos do Quadro do Ministério Público do Estado e 30% (trinta por cento) por servidores ocupantes de cargos efetivos de outros órgãos da administração, podendo os cargos em comissão eventualmente remanescentes ser preenchidos por livre nomeação.

JUSTIFICATIVA

Não obstante reconheçamos os louváveis propósitos que nortearam a instituição na elaboração da proposição, entendemos que seu texto deve ser aperfeiçoado, para que seja possível uma melhor aplicação dos princípios da administração, notadamente o princípio da eficiência, impessoalidade e moralidade, garantindo um quadro de funcionários mais estável e qualificado, ocupado preferencialmente por servidores aprovados previamente em concurso público.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, a propósito, ao julgar ações diretas de inconstitucionalidade interpostas pelo Ministério Público, tem declarado a inconstitucionalidade de leis com percentuais irrisórios, como se infere do seguinte aresto:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÃO Nº 07/2011, DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO SEBASTIÃO, QUE “DISPÕE SOBRE A ESTRUTURA ADMINISTRATIVA (...) ATRIBUIÇÃO DE PERCENTUAL MÍNIMO DE 5% DOS CARGOS EM COMISSÃO A SEREM PREENCHIDOS POR SERVIDORES OCUPANTES DE CARGOS DE PROVIMENTO EFETIVO. O ARTIGO 115, INCISO V, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL DEIXA À DISCRICIONARIEDADE DO LEGISLADOR O ESTABELECIMENTO DO PERCENTUAL DOS CARGOS MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA SUBPROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA JURÍDICA EM COMISSÃO A SEREM PREENCHIDOS POR SERVIDORES OCUPANTES DE CARGOS DE PROVIMENTO EFETIVO, SEM QUALQUER LIMITAÇÃO PRÉVIA. TODAVIA, ESSA DISCRICIONARIEDADE NÃO PODE FRUSTRAR A EXCEPCIONALIDADE DAS REGRAS PREVISTAS NOS ARTIGOS 111 E 115, V, DA CARTA BANDEIRANTE. INCONSTITUCIONALIDADE CONFIGURADA. A Constituição Estadual deixou ao critério discricionário do legislador a fixação de percentual mínimo de cargos em comissão a serem preenchidos por servidores efetivos, de modo que, em princípio, não será o baixo percentual de servidores efetivos que atrairá inconstitucionalidade da lei. Mas quando esse percentual é adotado em uma Cidade do porte de São Sebastião, a reserva de 95% dos cargos comissionados na Câmara Municipal a pessoas estranhas ao quadro de pessoal, resta configurada a inconstitucionalidade por afronta à razoabilidade, à proporcionalidade e à moralidade. Por isso, a norma que o fixa em percentual de 5% na Câmara Municipal de São Sebastião está eivada de inconstitucionalidade, por afronta aos artigos 111 e 115, V, da Carta Bandeirante.

(Ação direta de inconstitucionalidade nº 2095094-82.2016.8.26.0000 (julgada em 21-09-2016). (Grifo nosso)

E, em diversas situações, tem afirmado o percentual de 50% como o mais adequado à exigência constitucional:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO PERCENTUAL DOS CARGOS DE PROVIMENTO EM COMISSÃO A SEREM PREENCHIDOS POR SERVIDORES EFETIVOS - EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE FIXAÇÃO POR LEI - Mora verificada Inconstitucionalidade por omissão reconhecida, com fixação de prazo de 180 (cento e oitenta) dias para tomada das providências necessárias, após o que, em caso de persistência da mora, 50% dos cargos em questão deverão ser preenchidos por servidores efetivos. Ação procedente, com determinação.

 (TJSP, ADI nº 2069053-15.2015.8.26.0000, Órgão Especial, Rel. Des. Moacir Peres, j. em 16.08.15 v.u – g.n.). (Grifo nosso)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO. Ausência de edição de lei específica que estabeleça percentual mínimo dos cargos de provimento em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira, na estrutura administrativa do Município de Valparaíso, conforme preconiza o artigo 115, V, da Constituição Estadual. Inconstitucionalidade latente. Mora legislativa configurada. Ação procedente com fixação do prazo de 180 (cento e oitenta) dias para que a omissão seja suprida, bem como determinar que, enquanto persistir a omissão legislativa, ao menos 50% (cinquenta por cento) dos cargos em comissão sejam preenchidos por servidores efetivos.”

(TJSP, ADI nº 2010554-38.2015.8.26.0000, Órgão Especial, Rel. Des. Péricles Piza, j. em 10.06.15 v.u – g.n.). (Grifo nosso)

Com efeito, a previsão do percentual de 50% por projetos em trâmite no Congresso Nacional e pelas normas vigentes de Poderes e órgãos de natureza diversa e de carreiras de considerável amplitude revela não se tratar de uma mera coincidência, senão ser este, dentro de critérios de razoabilidade, o percentual mais adequado à satisfação da efetividade do comando constitucional.

A previsão de que metade dos cargos em comissão sejam exercidos por servidores de carreira intenta evitar, primordialmente, a descontinuidade da máquina administrativa, pois considerado o vínculo mais perene dos referidos servidores com a Instituição, permite-se que ações e projetos e custos com capacitação não se vejam frustrados nas sucessivas nomeações e exonerações que poderiam decorrer do vínculo precário com pessoas externas aos quadros do Poder Público, além de garantir que uma boa parte dessas atividades de grande relevo sejam exercidas por pessoas com já atestada capacidade técnica, evitando-se a execução da atividade por meros apadrinhamentos e conferindo-se, assim, também nesse aspecto, observância ao princípio da impessoalidade.

Tal previsão, ademais, longe de representar engessamento do gestor público, indica apenas uma redução, decorrente da própria norma constitucional, do universo de opções de escolha, mas não retira a escolha propriamente dita, vez que, mesmo na metade que deverá ser ocupada por servidores efetivos, remanesce ao gestor a conveniência de escolher aquele servidor que melhor se adeque ao exercício da atividade.

1.1.7Da Vedação ao Nepotismo

Uma vez criado o cargo, segue-se o seu provimento. Todavia, como já antes anotado, o fato de estar criado o cargo não confere carta branca ao administrador para nomear quem bem entender. Nesse sentido, ensina Carvalho Filho:

A escolha do administrador alvitrando a nomeação de servidor para ocupar cargo ou emprego em comissão (ou de confiança, em geral) não é inteiramente livre.[84]

De fato, não se deve entender que a escolha conducente a concretizar a relação de confiança própria do cargo em comissão seja de todo livre, por uma razão muito simples: em toda a sua atuação o administrador deve estar adstrito à lei e aos princípios que regem a Administração Pública, dentre eles a legalidade, a impessoalidade, a moralidade e a eficiência.

O administrador deve, portanto, pautar a nomeação ao cargo em comissão por critérios racionais que atendam não só aos requisitos impostos na lei para o exercício da atividade, como também às exigências éticas para o exercício de função pública. Vale dizer: não é dado ao administrador, por exemplo, contratar um analfabeto para uma função que exija conhecimentos técnico-científicos, tampouco alguém de quem se saiba dilapidador do patrimônio público para atuar como Diretor do Departamento Financeiro, por exemplo.

Segundo adverte Marçal Justen Filho, “a aplicação de teses mais recentes acerca da discricionariedade conduz à reprovação de atos de investidura em cargos em comissão fundados em pura e simples preferência subjetiva do governante”.[85]

Com efeito, não é por outra razão, que, em tempo ainda recente, se estabeleceu vedação à nomeação, para o exercício dos cargos em comissão e função de confiança, de pessoas com grau de parentesco próximo com a autoridade nomeante, proibição que veio a ser primeiro implementada em Resolução do Conselho Nacional de Justiça (Resolução 7, de 18 de outubro de 2005).

Posteriormente, verificando-se constituir derivação direta do princípio da moralidade, o Supremo Tribunal Federal dissipou as inúmeras controvérsias ao declarar a constitucionalidade da citada Resolução:

EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE, AJUIZADA EM PROL DA RESOLUÇÃO Nº 07, de 18.10.05, DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. ATO NORMATIVO QUE "DISCIPLINA O EXERCÍCIO DE CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES POR PARENTES, CÔNJUGES E COMPANHEIROS DE MAGISTRADOS E DE SERVIDORES INVESTIDOS EM CARGOS DE DIREÇÃO E ASSESSORAMENTO, NO ÂMBITO DOS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIÁRIO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS". PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

1. Os condicionamentos impostos pela Resolução nº 07/05, do CNJ, não atentam contra a liberdade de prover e desprover cargos em comissão e funções de confiança. As restrições constantes do ato resolutivo são, no rigor dos termos, as mesmas já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade.

2. Improcedência das alegações de desrespeito ao princípio da separação dos Poderes e ao princípio federativo. O CNJ não é órgão estranho ao Poder Judiciário (art. 92, CF) e não está a submeter esse Poder à autoridade de nenhum dos outros dois. O Poder Judiciário tem uma singular compostura de âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada com o caráter estadualizado de uma parte dele. Ademais, o art. 125 da Lei Magna defere aos Estados a competência de organizar a sua própria Justiça, mas não é menos certo que esse mesmo art. 125, caput, junge essa organização aos princípios "estabelecidos" por ela, Carta Maior, neles incluídos os constantes do art. 37, cabeça.

3. Ação julgada procedente para: a) emprestar interpretação conforme à Constituição para deduzir a função de chefia do substantivo "direção" nos incisos II, III, IV, V do artigo 2° do ato normativo em foco; b) declarar a constitucionalidade da Resolução nº 07/2005, do Conselho Nacional de Justiça.

(ADC 12, Relator(a):  Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2008, DJe-237 DIVULG 17-12-2009 PUBLIC 18-12-2009 EMENT VOL-02387-01 PP-00001 RTJ VOL-00215-01 PP-00011 RT v. 99, n. 893, 2010, p. 133-149)

E, por fim, de modo a uniformizar o entendimento, sedimentou a proibição mediante a edição da Súmula Vinculante nº 13, a qual contempla, inclusive, a hipótese de nepotismo cruzado, isto é, a nomeação de parentes mediante ajuste e designações recíprocas:

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.

Conforme explicitado pela própria Corte:

Ao editar a Súmula Vinculante nº 13, embora não se tenha pretendido esgotar todas as possibilidades de configuração de nepotismo na Administração Pública, foram erigidos critérios objetivos de conformação, a saber: i) nomeação de cônjuge ou companheiro da autoridade nomeante para cargo em comissão ou função comissionada; ii) relação de parentesco, até o terceiro grau, entre a pessoa nomeada para cargo em comissão ou função comissionada e a autoridade nomeante; iii) relação de parentesco, até o terceiro grau, entre a pessoa nomeada para cargo em comissão ou função comissionada e o ocupante de cargo de direção, chefia ou assessoramento a quem estiver subordinada; iv) relação de parentesco, até o terceiro grau, entre a pessoa nomeada para cargo em comissão ou função comissionada e a autoridade que exerce ascendência hierárquica ou funcional sobre a autoridade nomeante; e v) ajuste mediante designações recíprocas, quando inexistente a relação de parentesco entre a autoridade nomeante e o ocupante do cargo de provimento em comissão, função comissionada ou cargo político.

(Rcl 27944 AgR, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 07/11/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-261 DIVULG 16-11-2017 PUBLIC 17-11-2017)

Nos termos da referida decisão, tem que

a desconstituição de ato de nomeação para cargos políticos com fundamento na vedação da prática de nepotismo deve ser tomada no caso concreto, perante autoridade competente para proceder à análise das circunstâncias fáticas referentes à aptidão técnica do agente político, com a instauração do devido processo legal e a observância dos postulados da ampla defesa e do contraditório.

Analisando hipótese de nepotismo cruzado, assim se manifestou o Supremo Tribunal Federal:

Ementa: MANDADO DE SEGURANÇA. (...) NEPOSTISMO CRUZADO. (...) No mérito, configurada a prática de nepotismo cruzado, tendo em vista que a assessora nomeada pelo impetrante para exercer cargo em comissão no Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região, sediado em Vitória-ES, é nora do magistrado que nomeou a esposa do impetrante para cargo em comissão no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, sediado no Rio de Janeiro-RJ. (...)

(MS 24020, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-114 DIVULG 12-06-2012 PUBLIC 13-06-2012)

1.2Das Sanções Decorrentes da Incompatibilidade da Lei ou do Ato aos Requisitos Constitucionais e Legais

Analisados os critérios a serem observados na criação e provimento dos cargos em comissão, tem-se que a inobservância de qualquer deles, implica - como sói ocorrer no Estado de Direito -, na aplicação de determinadas sanções.

De início, verifica-se que a própria Constituição Federal prevê duas sanções específicas aos atos que infrinjam o comando contido no artigo 37, II, isto é, que impliquem em inobservância da regra do concurso público:

Art. 37. (...)

§ 2º A não observância do disposto nos incisos II e III implicará a nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, nos termos da lei.

Como decorre do dispositivo, a dispensa indevida do concurso, mediante, por exemplo, a criação e provimento de cargos em comissão fora das hipóteses constitucionais, implicará na invalidação do ato e na punição da autoridade responsável.

Ter-se-á, no caso, abuso de poder na modalidade de desvio de finalidade, o qual, como anteriormente anotado, pode se dar tanto no exercício da atividade legislativa, como no ato administrativo. Nesse sentido, afirma Regis Fernandes de Oliveira:

Haverá desvio de finalidade no caso de, diante do postulado de exigência do concurso público para nomeação de tais servidores, a criação de novos cargos de confiança e as nomeações para os existentes tiverem outro fundamento subjacente, como o apadrinhamento político”.[86]

Em se tratando, todavia, de descompasso da lei com os ditames constitucionais, é evidente que o abuso de poder, se houver, será aferido no ato legislativo. Será o caso de apurar a inconstitucionalidade da lei, declarando, pois, sua nulidade, diante da qual também serão, por consequência, nulos os atos administrativos que nela tiverem amparo.

Se, entretanto, o desvio de finalidade for apenas decorrente do ato administrativo, haverá a invalidação tão somente deste.

Como ensina Regis Fernandes, sob o escólio de Celso Antônio Bandeira de Melo, o abuso de poder é um vício objetivo, ocorrente face a discrepância existente entre a finalidade a que o ato serviu e a finalidade legal que por ele deveria ser satisfeita[87]. Nas palavras de Celso Antônio:

(...) é, pois, um desacordo entre a norma abstrata (lei) e a norma individual (ato). Como a norma abstrata é a fonte de validade individual, se esta (ato) não expressa, in concreto, a finalidade daquela (lei) terá desbordado de sua fonte de validade. Daí ser inválida.[88]

Contudo, como vício objetivo, não exige para a invalidação do ato, a comprovação da intenção do agente em lesionar o preceito, bastando que o desatenda. Nesse sentido:

(...) mesmo nos casos em que o agente atuou sem a reta intenção de desatender à lei, seu comportamento é fulminável, não porque teve o intuito de desatender a lei, mas porque a desatendeu. Donde, não é má-fé, nos casos em que haja existido (desvio de poder alheio a qualquer interesse público), nem o intuito de alcançar um fim lícito, por meio impróprio, quando haja sido este o caso (desvio de fim específico), aquilo que macula o ato, e sim a circunstância de este não realizar a finalidade para a qual a lei o preordenara. É que, no direito público, a satisfação do escopo sobreleva a boa ou má intenção do sujeito que pratica o ato.[89]

O mesmo não ocorre com a punição da autoridade responsável, a qual exige, necessariamente, a comprovação do elemento subjetivo e poderá se dar tanto na seara penal, quanto nas esferas administrativa e civil.

Com efeito, o Decreto-Lei 201/1967, prevê que:

Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

XIII - Nomear, admitir ou designar servidor, contra expressa disposição de lei;

Emerson Garcia, em sua obra Improbidade Administrativa, ao tratar da hipótese de admissão sem concurso público, afirma que o preceito constitucional constante do artigo 37, § 2º, deve ser integrado com a Lei 8.429/1992, sujeitando o agente, da Administração Direta e Indireta, à tipologia estatuída no art. 11, caput, deste diploma legal, sempre que realizar contratações para o preenchimento de cargos que exigem a aprovação prévia em concurso público, sem a sua realização.[90]

Segundo informa o autor, “a responsabilidade do agente, nesse caso, por força do art. 21, I, da Lei n. 8.429/1992, não está associada à ocorrência de dano patrimonial, mas, sim, à violação aos princípios regentes da atividade estatal”[91].

Uma vez comprovado o crime e/ou improbidade, certamente haverá o enquadramento da conduta também como falta funcional, a qual, entretanto, poderá ocorrer também de forma autônoma, isto é, independente da responsabilização do agente nas instâncias penal e cível.

Sobre as diversas sanções decorrentes da inobservância da norma constitucional, assim tem se manifestado a Suprema Corte:

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. LEI MUNICIPAL. CRIAÇÃO DE CARGOS EM COMISSÃO. AUSÊNCIA DE CARÁTER DE ASSESSORAMENTO, CHEFIA OU DIREÇÃO. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONFIANÇA ENTRE SERVIDOR NOMEADO E SUPERIOR HIERÁRQUICO. IMPOSSIBILIDADE.

(...). Esta Corte entende que é inconstitucional a criação de cargos em comissão que não possuam caráter de assessoramento, chefia ou direção e que não demandem relação de confiança entre o servidor nomeado e o seu superior hierárquico. Precedentes. (...).

(RE 735788 AgR, Relator(a):  Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 12/08/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-167 DIVULG 28-08-2014 PUBLIC 29-08-2014) (Grifo nosso)

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. NOMEAÇÃO DE APADRINHADOS EM CARGOS DE CONFIANÇA. DESVIO DE FINALIDADE. VIOLAÇÃO À MORALIDADE ADMINISTRATIVA. PROVIMENTO MOTIVADO PARA ATINGIR INTERESSES PESSOAIS. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SÚMULA 279 DO STF.

1. O provimento de cargos de livre nomeação e exoneração devem obedecer aos requisitos encartados na Constituição Federal, vale dizer a) devem ser destinados às funções de direção, chefia e assessoramento; b) devem ser observados os princípios que regem a Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, entre outros.

2. In casu, o Tribunal a quo entendeu que a criação e o provimento de 27 (vinte e sete) cargos em comissão se deu exclusivamente para atender a interesses particulares dos ora agravantes, servindo de “recompensa” política aos contemplados, de forma que restaria configurado a improbidade administrativa nos termos da Lei infraconstitucional de regência – Lei 8.429/92 - desvio de finalidade e violação ao princípio da moralidade administrativa. (...)

(AI 842925 AgR, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-176 DIVULG 13-09-2011 PUBLIC 14-09-2011 EMENT VOL-02586-05 PP-00785) (Grifo nosso)

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. (...) NEPOSTISMO CRUZADO. ORDEM DENEGADA. (...) A nomeação para o cargo de assessor do impetrante é ato formalmente lícito. Contudo, no momento em que é apurada a finalidade contrária ao interesse público, qual seja, uma troca de favores entre membros do Judiciário, o ato deve ser invalidado, por violação ao princípio da moralidade administrativa e por estar caracterizada a sua ilegalidade, por desvio de finalidade. Ordem denegada. Decisão unânime.

(MS 24020, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-114 DIVULG 12-06-2012 PUBLIC 13-06-2012) (Grifo nosso)

Sobre a autora
Fernanda Moreira da Costa Bretones

Analista Jurídico. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO. Pós graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera - Uniderp/LFG. Pós graduada em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRETONES, Fernanda Moreira Costa. Cargos em comissão e funções de confiança no Ministério Público:: compatibilidade com as normas constitucionais e abrangência do controle pelo CNMP - Parte 1. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5564, 25 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68976. Acesso em: 22 nov. 2024.

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