É cediço que o ato de prostituir-se, isoladamente considerado, por maiores de idade, não é conduta típica, não acarretando qualquer implicação penal. Lado outro, configura crime a manutenção de estabelecimento em que ocorra a exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro e mediação direta do proprietário ou gerente.
A Lei 12.015/2009 retirou as elementares “casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso” do tipo penal, substituindo-as por “estabelecimento em que ocorra a exploração sexual”.
Assim, passou a ser atípica a conduta de manter “lugar destinado a encontros para fins libidinosos”, prevista na lei anterior. Fato é que a tipicidade da conduta já vinha sendo afastada pela jurisprudência nas hipóteses de motéis e hotéis de alta rotatividade, saunas, casas de banho e de massagens, e outros locais comumente utilizados para encontros com fins libidinosos, vez que se destinavam a toda espécie de hóspedes e frequentadores, isto é, encontros libidinosos de casais em geral. Destarte, a alteração promovida pela Lei 12.015/2009 pôs fim nessa discussão, sendo que, atualmente, somente se configura o crime se nesses ou em outros locais ocorrer a exploração sexual.
Assim, doutrina e jurisprudência firmaram entendimento de que para a caracterização do delito previsto no artigo 229 do CP, era imprescindível que restasse inequívoca a finalidade exclusiva e específica do local para a exploração sexual. Em sentido contrário, Renato Marcão e Plínio Gentil defendem que “ao contrário do que se tem proclamado amiúde, não é necessário que o estabelecimento seja destinado exclusivamente à exploração sexual”, eis que “o artigo 229 se contenta apenas com a existência de estabelecimento em que ocorra exploração sexual...”.
Ocorre que a dicção da lei resultou fluida e imprecisa, desafiando a argúcia dos estudiosos do direito sobre qual o sentido o legislador quis imprimir quando empregou a expressão “exploração sexual” na redação do indigitado dispositivo.
Como bem observa Luiz Flávio Gomes, o comércio que tem como objeto o sexo privado (entre maiores), que conta com conotação positiva (em razão da segurança da higiene etc.), não é a mesma coisa que exploração sexual (que tem conotação negativa e aproveitamento, fruição de uma debilidade etc.).
A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, no Resp 1.683.375, enfrentou, mais uma vez, a questão, consignando que não se trata de atipicidade da conduta (conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, no HC 104.467), porém, que o crime de casa de prostituição somente se configura quando a pessoa é mantida em condição de explorada, obrigada, coagida, não raro em más condições, com tolhimento de sua liberdade e em violação de sua dignidade sexual.
Desta forma, configura-se o crime quando ocorre a prática de sexo sem liberdade de escolha, e ainda, sob ameaça ou violência, em nítida violação a dignidade sexual da pessoa (sujeito passivo do delito). O fato é típico, por exemplo, quando determinada pessoa é submetida a tratamento humilhante, degradante, ou mesmo em condição análoga à de escravidão, como quando o proprietário ou gerente cria a obrigação de pagamentos de “multas” para realização de atividades fora da casa ou “metas” de realização de programas sexuais, ou ainda, estabelece dias/horários predeterminados para as saídas do local (muitas vezes, em verdadeiro cárcere privado).
Em seu voto, a Ministra Maria Thereza de Assis Loura leciona ser imprescindível o tolhimento à liberdade da pessoa, salvo quando o caso envolver menores de idade, que não tem condição de exercer livremente o seu direito de escolha. Pontifica que a lei nunca puniu a prostituição em si, devendo ser punido apenas o proxeneta, o rufião, afirmando ainda que impedir que maiores de idade disponham de um lugar para o exercício voluntário dessa atividade sexual, poder-se-ia culminar em lançar tais pessoas às mais diversas situações de risco e vulnerabilidade, expondo-as aos perigos da rua.
Outros pontos merecem destaque. E quando há percepção dos lucros auferidos da atividade sexual pelos proprietários, estaria caracterizada a exploração sexual nos moldes do artigo 229 do Código Penal? E na hipótese em que os proprietários alugam quartos e comercializam bebidas no local, auferindo vantagens indiretas mediante a mercancia carnal?
Se o acordo de compartilhamento de lucros partiu da livre manifestação de vontade das partes envolvidas, sem qualquer tipo de ameaça, violência, coação ou tolhimento da liberdade sexual, não sendo o caso de envolvimento de menores de idade, a priori, não há exploração sexual de modo a caracterizar o delito previsto no artigo 229 do Código Penal.
Ademais, a conduta do rufião já se encontra descrita no artigo 330 do Código Penal, isto é, quando o agente tira proveito da prostituição ou porque participa dos lucros, ou porque se faz sustentar, por quem a exerce.
Destarte, se há liberdade em realizar ou não os programas sexuais, não se pode falar em exploração sexual, logo, não há fato típico a ser punido na seara penal.
Nesse contexto, não se pode olvidar que a proibição da chamada “casa de prostituição” não promove o controle ou prevenção da mercancia sexual, que diga-se de passagem, acompanha a história da humanidade e é citada até mesmo em passagens bíblicas, mas simplesmente remete os profissionais do sexo para a clandestinidade e os perigos da rua, marginalizando ainda mais aqueles que já são tão comumente expurgados do meio social por praticarem uma atividade “supostamente reprovável”.
Nota-se que a sociedade não só tolera tais práticas, como também critica a criminalização de tais condutas, em evidente antinomia com o conjunto do ordenamento jurídico pátrio. Em última análise, como pontuou Rogério Greco, isso resulta na desmoralização da Justiça Penal (isto é, de todos os órgãos envolvidos na repressão penal), conquanto tais estabelecimentos são abertos a todo tempo com alvarás de bares e hotéis, funcionando às escâncaras e à luz do dia, com ampla divulgação de propagandas na internet, jornais, revistas, outdoor e televisão.
Destarte, não ocorrendo a exploração sexual, aqui entendida em stricto sensu, ou em seu sentido negativo, de tolhimento da liberdade sexual e ofensa à dignidade da pessoa, a conduta não encontrará subsunção ao tipo de injusto, não possuindo o desvalor que motiva a formulação de tipos penais pelo legislador. Assim, esta é a interpretação que mais se coaduna com a realidade e os anseios sociais, pois fatos socialmente aceitos não merecem a intervenção do Estado, que não deve ficar ditando regras para pessoas adultas dentro de sua vida privada.
Impende ressaltar que, desde 2002, a prostituição é uma profissão reconhecida pelo Ministério do Trabalho e permitida para pessoas a partir dos 18 (dezoito) anos, que podem inclusive recolher contribuições previdenciárias e garantir direitos comuns a todos os trabalhadores, como aposentadoria e auxílio-doença. Logo, como pode o ordenamento jurídico reconhecer uma profissão e ao mesmo tempo punir aquele que administra o local de trabalho desses profissionais, se não há tolhimento da liberdade sexual das pessoas?
O festejado julgado do Tribunal da Cidadania (Resp 1.683.375) não descriminalizou a conduta, mas atenuou o seu rigor, na medida em que registrou que só se configura o delito se há exploração sexual, ou seja, se a pessoa é mantida em condição de explorada, sacrificada, obrigada, coagida, não raro em más condições, com tolhimento de sua liberdade e em violação clara de sua dignidade sexual.
Desse modo, conclui-se que, não obstante entenda-se que não há razão para o tipo penal do artigo 229 subsistir, mesmo porque as formas típicas de exploração sexual já possuem tipos próprios para a responsabilização criminal do agente, não sendo o caso de atipicidade da conduta, visto que a descriminalização é tarefa do legislador, deve ser dada interpretação restritiva ao termo “exploração sexual”, o qual deve ser compreendido como a prostituição forçada, em inequívoca ofensa à liberdade e à dignidade sexual da pessoa.
Referências
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. v. III; 12. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015.
MARCÃO, Renato; GENTIL, Plínio. Crimes contra a dignidade sexual. São Paulo: Saraiva, 2011.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 9 ed. São Paulo: Editora Atlas S. A., 2015.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
SANNINI NETO, Francisco; CABETTE, E. L. S. Tratado de Legislação Especial Criminal. 1. ed. Jus Podivm, 2018.
GOMES, Luiz Flávio. Crimes contra a Dignidade Sexual e outras Reformas Penais. Disponível em: <https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1872027/crimes-contra-a-dignidade-sexual-e-outras-reformas-penais>. Acesso em: 22 set. 2018.
MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Disponível em: <http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf>. Acesso em 22 set. 2018.
Nota
[1] STJ - REsp: 1683375 SP 2017/0168333-5, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 14/08/2018, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/08/2018.