5. Os critérios de fiscalização
Conforme exposto, nos termos do art. 70, caput, da CRFB/1988 (BRASIL, 1988), a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da Administração Pública direta e indireta deve ser feita com base nos critérios da legalidade, legitimidade e economicidade. Correlacionando-se com tais critérios, pode-se afirmar que o princípio da eficiência, prescrito no art. 37, caput, da CRFB (BRASIL, 1988), consiste no fundamento ou na regra matriz desses critérios - elementos densificadores do princípio da eficiência (MENDES, 2015), tendo em vista que o controle externo da Administração Pública empreendido pelos TC’s deve levar em consideração as regras e princípios que a regem.
Ao se elevar esse princípio ao posto de princípio regente da Administração Pública, deu-se ênfase, ao lado dos princípios clássicos da legalidade, impessoalidade, publicidade e moralidade, que impõem o cumprimento das prescrições legais, ao resultado almejado pelo Estado na prestação das atividades e serviços a seu cargo, de modo que se pode afirmar que “[...] o constituinte derivado pretendeu enfatizar a necessidade de a Administração estabelecer critérios de aferição de desempenho” (MENDES, 2015, p. 864).
Nesse contexto, o princípio da eficiência pode ser analisado sob a perspectiva político-administrativa, que está relacionada à “[...] interação necessária no seio das relações multilaterais, internas ou externas” (MOREIRA NETO, 2008, p. 103).
Ademais, pode ser analisado sob a faceta socioeconômica, que se projeta na obtenção do melhor resultado em prol da sociedade, “[...] podendo ser sintetizado como a produção de bens e serviços de melhor qualidade, o mais rápido, na maior quantidade possível e com os menores custos para a sociedade” (MOREIRA NETO, 2008, p. 103). Pode ser entendida, sob a vertente solidária, que se cristaliza por meio de ações supraestatais, reforçando os laços de solidariedade, que são fruto da prática da democracia material (MOREIRA NETO, 2008).
Passando a analisar individualmente os critérios, tem-se que a legalidade prescrita no art. 70, caput, da CRFB não destoa do princípio da legalidade estabelecido no art. 37, caput, da CRFB, apresentando ponto de contato até mesmo com o princípio geral da legalidade estabelecido no art. 5, II, da CRFB (BRASIL, 1988).
O controle externo da Administração Pública, vista sob o prisma da legalidade significa a vinculação do “administrador público ao império da lei, verificando a validade formal e material dos atos administrativos em face da constituição e do ordenamento infraconstitucional” (BULOS, 2015, p. 954), o que inclui as normas de contabilidade, das finanças, dos orçamentos, da governança e do patrimônio, previstas no art. 70, caput, da CRFB (BRASIL, 1988).
Segundo entendimento sufragado na Súmula n. 347 do STF, o TC, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público (BRASIL, 1963). A LOTCE/GO estabelece, em seus arts. 133 a 135, o incidente de inconstitucionalidade, entremostrando a possibilidade de o Tribunal de Contas analisar a compatibilidade de leis e atos normativos em face da CRFB ou da CE/GO, cujo controle se aproxima do realizado pelo poder judiciário de forma difusa e concreta, o qual não poderá desfechar com a declaração de nulidade e consequente retirada do ato normativo do mundo jurídico, restringindo-se ao afastamento da norma no caso concreto.
Apesar de o critério da legitimidade ser de difícil intelecção, tem-se que se deve partir da legalidade, ou seja, da conformidade do ato administrativo com a lei. Para além deste ponto de partida, o critério da legitimidade se aproxima dos sentidos da justiça, da consensualidade, da aceitabilidade ou da razoabilidade (CASTRO, 2015), os quais são alcançados por meio de um processo de legitimação (CASTRO, 2015), que se traduz na observância dos ritos e garantias processuais, principalmente os relacionados aos direitos fundamentais, como condicionantes à atuação estatal, a exemplo dos princípios do devido processo legal - art. 5°, LIV, da CRFB, do contraditório e da ampla defesa - art. 5°, LV, da CRFB, da transparência - art. 5°, XXXIII e LX, da CRFB, da segurança jurídica - art. 5°, XXXVI, da CRFB, da duração razoável do processo - art. 5°, LXXVIII, da CRFB e da motivação - art. 93, X, da CRFB (BRASIL, 1988), dentre outros.
Comumente referenciado pela expressão custo-benefício, o princípio da economicidade permite uma abordagem econômica do direito no âmbito do controle externo da Administração Pública, deixando descoberta a premissa que deve nortear a gestão pública, qual seja, a escassez e insuficiência dos recursos públicos frente às demandas sociais, principalmente levando em consideração a integralidade do universo estatal, em vez de se analisá-la de forma tópica ou isolada.
Diante da constatação de que não há recursos públicos suficientes para atender a todas as demandas sociais de maneira eficiente ou até mesmo satisfatória, a baliza da economicidade deve estar sempre presente no planejamento e execução das políticas públicas de modo que as prioridades sejam atendidas preferencialmente.
Assim, a economicidade pode ser concebida como o critério que obriga “[...] o administrador público a perseguir o menor custo, na aquisição de insumos e serviços para a Administração, bem como a buscar a maior quantidade e a melhor qualidade dos serviços por Estados pela Administração [...]” (LIMA, 2010, p. 36-37), inclusive levando em consideração eventualmente o fator tempo.
O fenômeno da judicialização das políticas públicas, impulsionado pelos espaços vazios deixados pela inércia do poder público, tem se apresentado como o “[...] principal mecanismo de controle do poder público nas áreas mais afeitas aos programas e às políticas típicas do Estado do bem-estar social” (IOCKEN, 2014, p. 77). Cujo fenômeno se projeta para o controle externo desempenhado pelos TC’s, na condição de instituição ou órgão público estranho à estrutura da pessoa jurídica ou órgão incumbido de instituir e implementar uma política pública, de estatura constitucional, vocacionado a este mister, tem se notabilizado cada vez mais no controle externo da Administração Pública, cujo grau de interferência no processo das políticas públicas será analisado a seguir.
6. Da interferência da atuação dos Tribunais de Contas no ciclo das políticas públicas
Apesar de a experiência fática ter suscitado uma discussão a respeito do real papel do sistema de controle externo, desempenhado pelos TC´s e seus limites em razão da já abordada ineficiência da Administração Pública, em prover os direitos sociais, cumpre ressaltar a dificuldade de se definir, com precisão “[...] uma linha consistente de controle a ser promovida estritamente por qualquer instância isolada de controle” (PINTO, 2018, p. 133), principalmente em vista do princípio da separação dos poderes prescrito no art. 2° da CRFB (BRASIL, 1988).
Não obstante a competência e as atribuições outorgadas aos TC´s pelo poder constituinte em 1988 - arts. 70 e 71 da CRFB (BRASIL, 1988) e a força vinculante das suas decisões em relação à Administração Pública (obrigatoriedade de acatamento), impõe-se assentar que o controle externo desempenhado por este órgão não pode se fazer substituir ao poder constitucionalmente legitimado a promover as políticas públicas.
Isto não significa dizer que os TC´s devam se manter absolutamente passivos, ao tempo da realização da fiscalização de uma política pública, haja vista, que poderão apresentar recomendações e inclusive determinações, sob, pena de aplicar sanções, desde que interfiram apenas de forma indireta ou instrumental no processo de políticas públicas. Isto é, se insiram como meios naturais para a consecução de resultados ou para o atingimento de metas e estratégias, a exemplo da determinação de apresentação de um plano de ação, de cronogramas, estudos de viabilidade etc., se alinhando ao sentido contemporâneo das políticas públicas, sem representar violação ao sobredito princípio da separação de poderes, como se verá no capítulo 4 da presente dissertação.
Cumpre ressalvar que, no caso de os TC´s determinarem medidas que figurem na qualidade de deveres legais, a exemplo das prescrições contidas na Lei de acesso à informação no sentido de obrigação de divulgação de informações de interesse públicos, nos termos do art. 3°, II, da Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011[4] (BRASIL, 2011), como muito mais razão, entende-se que a interferência dos TC´s se compatibiliza com o ordenamento jurídico.
Partindo dessas premissas e fazendo uma correlação entre o controle externo desempenhado pelos TC’s e as políticas públicas, levando em consideração a sua visão procedimental, que, para fins didáticos, e com vistas a facilitar o entendimento do processo de formatação e implementação dos programas públicos, as divide em fases que se projetam no tempo, e é possível visualizar três momentos de interferência:
Um primeiro momento que compreende a colocação na agenda, a produção de soluções e a tomada de decisão; o segundo, intermediário, englobando a implementação e a execução das políticas públicas; e, por fim, o momento ulterior, relacionado ao exame das políticas públicas, através de um controle propriamente dito (IOCKEN, 2014, p. 41).
Na primeira fase, por despontar de maneira prevalecente o aspecto político, cuja esfera é permeada pela atuação de um número indeterminado de atores sociais, políticos e econômicos, que, de maneira plural, difusa e até mesmo aleatória e desburocratizada, convergem para a tomada de decisão, os TC´s interferem no processo de uma maneira meramente sugestiva ou orientativa, equiparável aos demais atores, apesar de assumir um papel de destaque em razão de ser uma organização estatal de estatura constitucional e um ator institucional formado por técnicos e membros capacitados de maneira especializada.
Nessa etapa, os TC’s podem atuar de diversas maneiras, seja por meio de uma interlocução política direta e específica junto aos Poderes Legislativo e Executivo mediante expedientes formais e sistematizados resultados de sua atuação típica, seja mediante deliberações proferidas no âmbito dos diversos processos ou instrumentos processuais de fiscalização ou de contas com efeitos prospectivos[5], de conteúdo recomendatório, orientativo e/ou pedagógico.
Nas fases da implementação e execução das políticas públicas, o sistema de controle externo desempenhando pelos TC’s também se revela de natureza orientativa, na medida em que pode render ensejo a ajustes que venham a se mostrar importantes “[...] para a recondução das ações de governo aos resultados concebidos inicialmente, ou mesmo para caminhos outros que conduzam ao aperfeiçoamento da atuação do Estado” (IOCKEN, 2014, p. 103).
Apesar da prevalência do caráter orientativo das decisões proferidas dos TC’s, em comparação com as determinações pontuais e indiretas que podem ser feitas, é nessa etapa do processo das políticas públicas, que a interferência destes órgãos pode se dar de maneira mais efetiva, por meio das ANOP´s, desde que se assimile a dinâmica dos fatos sociais, a qual se reveste de considerável imprevisibilidade e indeterminabilidade. Bem como o consequente sistema de ação estatal, caracterizado pela continuidade de um fluxo de decisões e arranjos, de modo que o sistema de controle externo possa induzir indiretamente o processo de políticas públicas para a consecução de resultados comprometidos com os valores constitucionais, notadamente os vinculados aos direitos fundamentais e à democracia material, bem como à eficiência da gestão pública.
A interferência dos TC’s no processo das políticas públicas nesta etapa por meio das ANOP´s se dá de forma concomitante (tempestividade), de modo que a recondução do processo “em tempo real” com vistas à atingir dos resultados admitidos como mais adequados preserva a utilidade do processo e otimiza a aplicação dos recursos públicos.
Tem-se a última etapa das políticas públicas, que diz respeito ao controle propriamente dito, como tradicionalmente é concebido, cuja análise, em razão da sua ordinária continuidade, deve-se circunscrever a um objeto delimitado no tempo ou por outro elemento, de modo que se possa aferir a compatibilidade dos atos, processos, gestões e administrações com o ordenamento jurídico brasileiro.
Trata-se de análise clássica afinada com o modelo burocrático da Administração Pública, de cunho sancionador, cujo objetivo principal é a detecção de desvios das normas e a consequente responsabilização, com vistas voltadas para o passado, caracterizado pelo viés punitivo das decisões dos TC´s, relegando a segundo plano o papel institucional de recondução tempestiva do processo com vistas ao atingimento dos resultados almejados de acordo com o sentido contemporâneo das políticas públicas (caráter corretivo).
No próximo capítulo, serão analisados os principais pontos relacionados às políticas públicas educacionais, constantes no PEE/GO fiscalizáveis pelo controle externo da Administração Pública desempenhado pelo TCE/GO, a partir dos processos de fiscalização deflagrados no âmbito do TCE, à respeito delas, de modo a se poder descortinar o seu papel em relação ao objeto desta pesquisa.