5. DIREITO AO ESQUECIMENTO NA EUROPA: CASO MARIO COSTEJA GONZÁLEZ
A discussão do direito ao esquecimento nos conduz, impreterivelmente, ao estudo do emblemático caso que colocou em lados opostos o Google da Espanha e o senhor Mario Costeja González.
Otavio Luiz Rodrigues Junior narra, com maestria, as informações imprescindíveis para que compreendamos a desavença que se instaurou entre os envolvidos. Segundo este autor,
[...] Mario Costeja González é um advogado espanhol, que morava na Rua Montseny, na cidade de Barcelona, em um apartamento de 90m2, o qual foi levado à hasta pública para pagamento de dívidas com a seguridade social espanhola, conforme se noticiou no jornal La Vanguardia [...]. Maria González, no entanto, havia quitado a dívida, sem que houvesse necessidade da venda judicial. Em 2009, ele procurou administrativamente o jornal para pedir que seu nome não mais aparecesse no motor de busca em associação a esse fato. A resposta foi negativa e o argumento foi que a publicação se devera a um comando do Ministério do Trabalho e Seguridade Social. O periódico servira apenas como instrumento para executar uma determinação do órgão público. (RODRIGUES JUNIOR, 2014)
Após a negativa do jornal espanhol, Mario Costeja González, no ano de 2010, requereu administrativamente ao Google sediado na Espanha a remoção dos fatos ligados ao seu nome. No entanto, sua solicitação foi transferida para a matriz na Califórnia que também declinou o pedido feito pelo autor.
Depois do insucesso na esfera administrativa, o espanhol formalizou uma reclamação na Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) em face da empresa que edita o jornal como também do Google hospedado na Espanha. Em seu pedido o requerente solicitou a exclusão de tais informações ou, pelo menos, que se alterassem as páginas eletrônicas responsáveis por hospedar os respectivos dados, com o intuito de restringir o acesso por parte de terceiros.
Todavia, a reclamação foi denegada “por se considerar que o periódico tão somente publicou o anúncio por ordem do Ministério do Trabalho e Seguridade Social” (RODRIGUES JUNIOR, 2014).
Por outro lado, a mesma Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) reconheceu a “responsabilidade do Google como promotor dos motores de busca e não mero intermediário das informações inseridas nas páginas de origem da internet [...] já que não apenas ordena informações, mas também facilita o acesso às mesmas” (SARLET, MARINONI e MITIDIERO, 2017, p. 516).
Não se conformando com a deliberação da Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD), o Google Espanha interpôs recurso perante a Audiência Nacional, órgão judiciário da Espanha com competência sobre todo o território do país. Ao analisar o caso, aquele órgão concluiu que o melhor caminho era devolver a matéria para o Tribunal de Justiça da União Europeia, sob o fundamento de que o caso em tela deveria ser solucionado nos moldes da Diretiva 95/46 que cuida “das liberdades e dos direitos fundamentais das pessoas singulares, nomeadamente do direito à vida privada, no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais” (RODRIGUES JUNIOR, 2014).
Otavio Luiz Rodrigues Junior destaca alguns pontos do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia os quais reputamos indispensáveis para maior entendimento da decisão do citado órgão. De acordo com o aludido autor, “o primeiro desafio do tribunal europeu foi caracterizar as atividades dos motores de busca” (RODRIGUES JUNIOR, 2014) já que a responsabilização do Google passa, necessariamente, pelo papel que ele desempenha na disseminação informações.
Em sua defesa, o Google levantou duas teses. A primeira era de que “não faz tratamento específico dos dados que surgem na internet em páginas de terceiros” (RODRIGUES JUNIOR, 2014), dessa maneira, não haveria como ser responsabilizado por notícias que não são da sua alçada. A segunda tese foi no sentido de que “ainda que se admita que o Google realize um tratamento de dados, isso não pode torná-lo responsável juridicamente, na medida em que ele não conhece o teor desses dados e não exerce sobre eles qualquer controle” (RODRIGUES JUNIOR, 2014).
Contestando os argumentos expostos pelo Google, Mario Costeja González apoiado pelos governos espanhol e italiano, dentre outros, afirmou que
[...] a ação do motor de busca deve ser considerada como tratamento de dados [...]. Desse ponto é que decorreria a responsabilidade do Google, na medida em que ele dá finalidade ao acesso dos dados e define quais os meios para seu tratamento. (RODRIGUES JUNIOR, 2014)
Ao apreciar as alegações de ambas as partes, o tribunal europeu entendeu o seguinte que
[...] a ação do Google é uma forma de tratamento de dados [...]. [...] “é o operador do motor de busca que determina as finalidades e os meios dessa atividade e, deste modo, do tratamento de dados pessoais que ele próprio efetua no contexto dessa atividade e que deve, consequentemente, ser considerado ‘responsável’ por esse tratamento [...]”. (RODRIGUES JUNIOR, 2014)
Assim sendo, não há como eximir o Google da sua responsabilidade perante as informações que ele disponibiliza aos seus usuários, sendo irrelevante, neste caso, a sua omissão ou não no tratamento de dados, bem como o seu conhecimento do conteúdo que está sendo veiculado. Espera-se, portanto, um zelo mínimo de um motor de busca constantemente utilizado por diversas pessoas e que possui, inquestionavelmente, o poder de influenciar a vida de inúmeros seres humanos.
6. DIREITO AO ESQUECIMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A Constituição Federal de 1988 representou uma mudança histórica, política e jurídica de alto valor para todos.
Ao lermos a Constituição, notamos, claramente, a preocupação do constituinte em prever um rol extensivo, mas não exaustivo, de direitos e garantias fundamentais, adotando, nos quatro primeiros artigos, os chamados princípios fundamentais, com destaque para aquele que vem sendo denominado pela doutrina nacional como o valor que impregna todo o nosso ordenamento jurídico: a dignidade da pessoa humana.
Dentro deste conjunto de direitos disponibilizados pela Constituição, estão os denominados direitos da personalidade que também são previstos expressamente no Código Civil de 2002.
Como é sabido de todos, é impossível que o legislador consiga prever em um diploma legal todos os direitos existentes, posto que estes estão sempre se revelando, paulatinamente, e não será a falta de previsão expressa que impedirá o seu exercício.
É neste contexto que o direito ao esquecimento, corolário dos direitos da personalidade, merece ser observado em todas as relações existentes no seio da sociedade. Entendemos, assim, que este direito possui tanto uma eficácia horizontal quanto vertical – refutamos a ideia, permissa venia, da doutrina tradicional que não aceita a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Em relação ao direito ao esquecimento, observados alguns critérios, as informações constantes de banco de dados virtuais devem ser passíveis de retiradas ou, pelo menos, ter o seu acesso limitado a pesquisas específicas, posto que a ninguém deve ser imposta o castigo de ser punido de maneira indeterminada. Nessa esteira, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco entendem que
Se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. Isso é tanto mais verdade com relação, por exemplo, a quem já cumpriu pena criminal e que precisa reajustar-se à sociedade. Ele há de ter o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram à penitenciária. (MENDES, COELHO e BRANCO, 2009, p. 427)
Nota-se que o entendimento exposto acima segue a mesma linha de entendimento que o Tribunal Constitucional Federal aplicou no caso Lebach, ou seja, deve-se analisar o caso concreto e ponderar qual o valor mais importante a ser protegido naquele caso: se há interesse público envolvido, prevalecerá o direito à informação; se o interesse é meramente particular – leia-se, mera curiosidade – deverá prevalecer o direito ao esquecimento.
Seguindo este raciocínio, o Enunciado n° 531 do Conselho da Justiça Federal (2013, p. 89), prevê que “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Artigo: 11 do Código Civil”. A justificativa trazida por este enunciado é que
Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados. (CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, 2013, p. 89)
Para o desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª região, Rogério Fialho Moreira, “não é qualquer informação negativa que será eliminada do mundo virtual”. Esta afirmação serve para refutar algumas ideias radicais que, desprovidas de uma análise mais minuciosa a respeito do tema em estudo, pensam ser o direito ao esquecimento um mecanismo para impunidades ou que contribuirá para apagar a história do ser humano. Não, não é.
Trata-se do direito de ter sua privacidade resguardada, sua intimidade não violada pelo capricho de saciar a alguns meios de divulgação de informações que revivem, muitas vezes sem o devido zelo, informações que não contribuirão em nada com o desenvolvimento da sociedade, nem tampouco enriqueceram a nossa história.
A Constituição Federal prevê, em seu art. 5°, que “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, Constituição Federal de 1988). Essa proteção também está evidenciada no CC de 2002, em seu art. 21, caput, “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma” (BRASIL, Código Civil de 2002).
Outra norma privilegiadora da privacidade é o art. 7°, da Lei n° 12.965/2014, vulgo Lei do Marco Civil. Vejamos o que prevê o citado artigo:
O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: I – inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. (BRASIL, Lei n° 12.965/2014)
Notória, pelo exposto até o momento, a existência implícita do direito ao esquecimento. Nas palavras de Sebastião de Assis Neto, Marcelo de Jesus e Maria Izabel Melo,
Ora, reconhecido o direito à privacidade e à intimidade, é decorrência lógica que o indivíduo tem o direito de não ver revolvidos fatos e ocorrências de seu passado que, a priori, não interessariam a ninguém, que não lhe são interessantes, ou agradáveis, enfim, que deseja não ver revolvidos e trazidos à tona. (ASSIS NETO, JESUS e MELO, 2017, p. 188)
Visando demonstrar a importância e aplicação prática do direito ao esquecimento, Sebastião de Assis Neto, Marcelo de Jesus e Maria Izabel Melo, trazem singelos exemplos de sua incidência na órbita cível e consumerista. Segundo os citados autores,
Na orbita civil há institutos que claramente se amoldam à ideia de reconhecer um Direito ao Esquecimento, sinalizando a vocação do sistema à estabilização das relações jurídicas. A prescrição é um claro exemplo dessa situação. Também no direito do consumidor, o prazo máximo de cinco anos para que constem em bancos de dados informações negativas acerca de inadimplência (art. 43, §1°, do CDC), revela nítida acolhida à tese do esquecimento, porquanto, paga ou não a dívida que ensejou a negativação, escoado esse prazo, a opção legislativa pendeu para a proteção da pessoa do consumidor – que deve ser esquecida – em detrimento dos interesses do mercado [...]. (ASSIS NETO, JESUS e MELO, 2017, p. 188)
Todavia, conforme citamos neste mesmo artigo, é indispensável o devido cuidado com posições radicais, para que não haja, a qualquer custo, uma sobreposição absoluta do direito ao esquecimento, visto que é patrimônio de toda a humanidade o conhecimento da sua própria história.
Assim, nem sempre o direito ao esquecimento sairá vencedor, pois há que se proteger, também, o acesso à informação. Nesse sentido, o art. 5°, IX, CF/88 fala que “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (BRASIL, Constituição Federal de 1988). Logo, se a informação, seja ela pretérita ou atual, for de interesse público, há de se mantê-la em sítios e motores de busca virtuais. Isso porque é direito das futuras gerações conhecer os fatos que a precederam; é direito dos eleitores conhecerem quem são os postulantes aos cargos públicos; é direito dos cidadãos conhecer a história dos responsáveis pelo manuseio do erário.
O direito à informação também deverá prevalecer, em regra, no caso de artistas, celebridades, pessoas que pelo exercício da profissão, ofício ou ocupação, têm sua intimidade mais exposta que as ditas pessoas comuns. Entretanto, mesmo em tais casos, somente há que se permitir a invasão da esfera imediatamente ligada à opção profissional de tais pessoas.
Por fim, na seara consumerista, há de se privilegiar o direito à informação, já que as críticas e opiniões manifestadas por consumidores sobre produtos e serviços de empresas são de interesse de outros consumidores, logo, de interesse público, devendo constar dos bancos de dados dos motores de busca.