RESUMO: O presente artigo tem por escopo a análise do direito ao esquecimento. Veremos adiante que não se trata de um novo direito, mas sim de um dos direitos fundamentais conferido pelo ordenamento jurídico pátrio às pessoas, ainda que implicitamente. Em seguida, serão abordadas a sua origem e o seu conceito. À frente, teceremos reflexões acerca da possível colisão entre direitos fundamentais, mais especificamente, o direito ao esquecimento de um lado e o direito à informação de outro. Por conclusivo, serão apresentados casos concretos apreciados pelas jurisprudências estrangeiras e nacionais, de onde poderemos extrair o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal a respeito deste instigante tema.
Palavras-chave: Direito ao Esquecimento. Direito à Informação. Direito à Privacidade. Colisão de Direitos Fundamentais.
1. INTRODUÇÃO
Um dos bens mais preciosos de qualquer sociedade é a sua história, repleta de acontecimentos, específicos ou gerais.
Dentro desta sociedade, há inúmeros indivíduos, cada qual com sua história particular, rica em experiências passadas, que, para alguns, constituirão boas recordações, enquanto que para outros, trarão lembranças amargas.
Partindo do pressuposto de que a vida não é constituída apenas de sorrisos, mas também de momentos tristes, não seria prudente a legislação – constitucional e infraconstitucional – conceder aos indivíduos a possibilidade de esquecer os erros cometidos para, assim, dar início a um novo capítulo na sua história pessoal?
Impor a lembrança de determinados fatos a alguém não violaria a dignidade da pessoa envolvida no caso concreto?
É inquestionável a importância de conhecermos o passado, porém, há coisas que devem ser esquecidas – ou, pelo menos, não relembradas –, pois como disse o célebre escritor Machado de Assis, “Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito” (ASSIS, 1994, p. 90).
Entretanto, com a propagação da internet, as informações que antes eram circunscritas a um espaço geográfico delimitado, atualmente, não encontram mais barreiras físicas, sendo acessadas, prima facie, por qualquer pessoa e a qualquer momento. Por isso que determinados acontecimentos que outrora eram esquecidos com certa facilidade, hoje são relembrados com uma simples pesquisa nos mecanismos virtuais de busca.
É nesse contexto que o direito ao esquecimento vem sendo discutido por vários setores da sociedade, inclusive, pelo Poder Judiciário, visto que envolve inúmeros valores caros ao ordenamento jurídico e a todos os envolvidos.
Este artigo pretende analisar exatamente essa possibilidade de retirada – ou limitação – das informações de interesse meramente particular, e não informações de interesse público – constantes dos bancos de dados da Internet.
Àqueles que são contrários ao direito ao esquecimento, justificando sua posição com base na ideia de que não se pode restringir demasiadamente o direito à informação, e, por consequência, ao conhecimento da história do respectivo povo, indagamos se é razoável impor àqueles que queiram ter sua intimidade preservada o constante fantasma do constrangimento devido a ressureição de um fato ocorrido no passado sem qualquer relevância pública.
Trata-se, pois, de um tema instigante que vem suscitando diversos debates na seara jurídica, construção de teses e análises pelos tribunais brasileiros e estrangeiros.
Convido o leitor a refletir sobre essa temática.
2. REFLEXÕES INICIAIS ACERCA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
O século XXI tem se notabilizado como o século do conhecimento em virtude da propagação e popularização da Internet, oportunizando uma difusão de informações jamais vista.
Nesse contexto, ganham destaque os novos meios de comunicação interpessoais, dentre os quais, a título meramente exemplificativo, citamos o Facebook, o WhatsApp e o Instagram, que, inquestionavelmente, mudaram o curso da história da humanidade.
Estas redes sociais são compostas por pessoas físicas e jurídicas que desejam compartilhar os mais diversos momentos das suas vidas com outras pessoas, ou, até mesmo, ofertar produtos e serviços.
Há, no entanto, duas consequências desse desenvolvimento tecnológico que são de grande relevância para este trabalho: a primeira diz respeito à capacidade de armazenamento de fatos, isto é, um acontecimento de 50 anos atrás é facilmente conhecido por quem tenha acesso à Internet, caso este fato conste em algum banco de dados; e a segunda é o encurtamento da distância física que separava as pessoas.
Vejamos o seguinte exemplo: um indivíduo consumou um latrocínio no ano de 1960. Condenado, cumpriu integralmente sua pena, sendo, em seguida, posto em liberdade. De volta à sociedade, casou-se, teve filhos e passou a exercer uma atividade laborativa lícita. Decorridos vinte anos do acontecido, um dos seus colegas de trabalho, após rápida pesquisa na Internet, descobre que seu colega de trabalho é um ex-detento. A notícia se espalha na empresa e o indivíduo é coagido moralmente a pedir demissão.
Do caso fictício narrado acima, ficou claro as duas consequências do desenvolvimento tecnológico a pouco citadas: a possibilidade de conhecimento de fatos pretéritos e o encurtamento físico entre as pessoas, possibilitando que pessoas, fisicamente distantes, influenciem direta ou indiretamente, na vida de outras pessoas.
Indaga-se: diante do caso supracitado, qual direito deve prevalecer, o da sociedade em conhecer fatos que já ocorreram ou o direito dos envolvidos requererem que tais fatos sejam apagados? Como proceder diante do choque de direitos fundamentais?
Neste contexto, serão tecidas algumas ideias sobre o Direito ao Esquecimento.
3. ORIGEM DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
A origem do Direito ao Esquecimento é objeto de controvérsia. Há três correntes principais que buscam explicar o seu nascimento.
A primeira corrente entende que este direito nasceu na França; para a segunda, ele teria se originado nos Estados Unidos da América; por fim, os defensores da terceira corrente entendem que a sua origem é alemã. Neste artigo, acolheremos a corrente que traz a Alemanha como o berço do Direito ao Esquecimento.
Hodiernamente, o Tribunal Constitucional da Alemanha goza do prestígio de ser considerado um modelo a ser seguido quando o assunto é a efetivação dos direitos e garantias constitucionais. Nele encontraremos o leading case do direito ao esquecimento, denominado “caso Lebach” julgado no ano de 1973.
O acontecimento teve origem no ano de 1969, em Lebach, a oeste da Alemanha, onde houve o assassinato de quatro soldados responsáveis pela segurança de um depósito de munição sendo que o quinto soldado ficou gravemente ferido. Nessa empreitada criminosa foram subtraídas armas e munições. No ano subsequente, dois acusados foram condenados à prisão perpétua, enquanto que o terceiro foi sentenciado com uma pena de seis anos de reclusão.
Decorridos quatro anos, o Segundo Canal Alemão, considerada uma das maiores empresas públicas de radiodifusão da Europa, produziu um documentário sobre o acontecimento acima narrado em que foram apresentados nomes e fotos dos acusados. Além do mais, haveria uma reconstituição do delito com exposição dos pormenores da relação entre os condenados, incluindo um possível relacionamento homoafetivo.
O documentário, objeto de toda essa controvérsia, tinha data marcada para ir ao ar: seria transmitido na sexta-feira à noite, momentos antes da libertação do terceiro acusado.
No entanto, ao tomar ciência da intenção do canal de radiodifusão alemão, aquele que fora condenado, mas que acabara de deixar a prisão buscou perante o Judiciário, em caráter liminar, obstar a veiculação do programa, dado que o documentário dificultaria o seu processo de ressocialização que por si só é dificílimo. A medida liminar foi indeferida. Inconformado, o requerente apresentou uma reclamação perante o Tribunal Constitucional Federal, sob a alegação de que seu direito de desenvolvimento da personalidade estaria sendo violado.
Após ser provocado, o aludido tribunal proibiu a transmissão do documentário, com a ressalva de que se a imagem e o nome do reclamante não fossem mencionados, a produção televisa poderia ir ao ar.
Para o referido órgão constitucional alemão, a liberdade de radiodifusão atua em duas frentes diversas: “tanto a seleção do conteúdo apresentado como também a decisão sobre o tipo e o modo da apresentação, incluindo a forma escolhida de programa” (SCHWAB, 2006, p. 488 apud LIMA, 2007, p. 80). Desse modo, os meios de comunicação têm liberdade para escolherem o que, como e quando irão transmitir determinada matéria. Todavia, não se trata de uma liberdade absoluta. Os responsáveis pela veiculação do conteúdo informativo devem tomar todas as providências necessárias para que não haja lesão aos direitos dos envolvidos na reportagem.
Atenta a esta situação “as normas dos §§ 22, 23 da Lei da Propriedade Intelectual-Artística [...] oferecem espaço suficiente para uma ponderação de interesses que leve em consideração a eficácia horizontal [...] da liberdade de radiodifusão [...]” (SCHWAB, 2006, p. 488 apud LIMA, 2007, p. 80). Isto é, os direitos fundamentais irão incidir nas relações entre particulares mais precisamente quando houver discordância entre a predominância da divulgação de um conteúdo jornalístico ou o resguardo à intimidade do sujeito.
Nessa perspectiva,
[...] não se pode outorgar a nenhum dos dois valores constitucionais, em princípio, a prevalência [absoluta] sobre o outro. [...] o interesse de informação da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do criminoso. Porém, deve ser observado [...] o princípio da proporcionalidade: Segundo este, a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado [...]. Um noticiário posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face da informação atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (ressocialização). A ameaça à ressocialização deve ser em regra tolerada quando um programa sobre um crime grave, que identificar o autor do crime, for transmitido [logo] após sua soltura ou em momento anterior próximo à soltura. (SCHWAB, 2006, p. 488 apud LIMA, 2007, p. 80-81)
Percebemos que o Tribunal Alemão tinha dois grandes valores constitucionais entrando em conflito. Frente a esta situação, deve o interprete de o Direito visualizar o ordenamento jurídico como um todo, uma unidade, e não como várias leis consideradas apartadamente. Dessa forma, a melhor saída, ao nosso ver, é a ponderação de interesses, ou seja, busca-se a harmonia entre as normas, de modo que seja possível extrair o máximo das normas em análise.
Em relação ao juízo de ponderação, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso, nos orienta que os critérios tradicionais utilizados para solucionar o choque entre normas constitucionais ou entre direitos fundamentais se mostra insuficiente. Para o citado Ministro, ao se deparar com tal situação conflituosa, “o intérprete constitucional precisará socorrer-se da técnica de ponderação de normas, valores ou interesses, por via da qual deverá fazer concessões recíprocas entre as pretensões em disputa, preservando o máximo possível do conteúdo de cada uma” (BARROSO, 2004, p. 35).
Vejamos como o Tribunal Alemão valeu-se da técnica de ponderação para resolver o conflito em comento:
A solução do conflito deve partir do pressuposto de que, segundo a vontade da Constituição, ambos os valores constitucionais configuram componentes essenciais da ordem democrática [...]. [...] ambos os valores constitucionais devem ser, por isso, em caso de conflito, se possível, harmonizados [...]. [...] a ponderação necessária por um lado deve considerar a intensidade da intervenção no âmbito da personalidade por um programa de tipo questionável e, por outro lado, está o interesse concreto a cuja satisfação o programa serve e é adequado a servir, para avaliar e examinar se e como esse interesse pode ser satisfeito [de preferência] sem um prejuízo – ou sem um prejuízo tão grande – da proteção à personalidade. (SCHWAB, 2006, p. 488 apud LIMA, 2007, p. 81-82)
Em vista do que foi supratranscrito, o Tribunal Constitucional Alemão fez uso do princípio da concordância prática para suavizar a colisão dos direitos fundamentais que estavam em choque, de forma que nenhum deles acabasse por ter seu núcleo essencial esvaziado.
Logo, o veículo informativo tem resguardado o direito a transmitir o seu programa, mas a outra parte também possui o direito a não ver seu nome e sua imagem atrelados ao documentário. Isto posto, o Tribunal optou por dar maior proteção aos direitos da personalidade do acusado, visando impedir a aplicação de uma segunda pena, qual seja, a de sofrer juízos de valores negativos por parte da sociedade e de ter a sua ressocialização prejudicada pelo “ressurgimento” do fato ocorrido há anos.
4. CONCEITO DE DIREITO AO ESQUECIMENTO
O direito ao esquecimento – ou, como também é conhecido, “direito de ser deixado em paz”, “direito de estar só” – é definido por Márcio André Lopes Cavalcante como “o direito que uma pessoa possui de não permitir que um fato, ainda que verídico, ocorrido em determinado momento de sua vida, seja exposto ao público em geral, causando-lhe sofrimento ou transtornos” (CAVALCANTE, 2014).
Constatamos, de início, que o direito ora em estudo não se aplica apenas a informações falsas, mas também a fatos verídicos, pois o que se protege é o direito do indivíduo em poder reconstruir a sua vida sem os transtornos ocasionados pelo julgamento popular que, em muitos casos, é mais danoso que o proferido pelo Judiciário.
Nessa perspectiva, Mháyra Aparecida Rodrigues define-o como o “[...] direito de limitar que os meios de comunicação disseminem informações pretéritas e desastrosas (abrangida por curiosidade alheia, mas, ausentes de interesse público em geral) e que possa trazer graves danos ao titular” (RODRIGUES, 2017).
Por sua vez, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald entendem que
[...] o direito ao esquecimento não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou de reescrever a história – ainda que seja a própria história. Em verdade, trata-se da possibilidade reconhecida a todas as pessoas de restringir o uso de fatos preteridos ligados a si, mais especificamente no que tange ao modo e à finalidade com que são lembrados esses fatos passados. (FARIAS e ROSENVALD, 2015, p. 154)
Seguramente não apagaremos a história da humanidade com a simples retirada ou limitação do acesso a informações de caráter meramente privado. Pelo contrário, iremos oportunizar a efetivação de um dos direitos da personalidade muito caro em uma sociedade cujas notícias se espalham, não raro, de forma alarmante e desastrosa.
No campo jurisprudencial, temos o informativo n° 527 do Superior Tribunal de Justiça que trata acerca do direito em análise. Vejamos o que diz este informativo:
O direito ao esquecimento surge na discussão acerca da possibilidade de alguém impedir a divulgação de informações que, apesar de verídicas, não sejam contemporâneas e lhe causem transtornos das mais diversas ordens. [...] O interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas irreversivelmente consumadas. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2013, p. 14)
Entendemos que o direito ao esquecimento busca estabelecer uma garantia de proteção à pessoa e a seus atributos, avaliando-se e contrapondo-se com outros valores que também possuem guarida constitucional, tais como à livre manifestação do pensamento e seus correlatos. Logo, conceituá-lo-emos como o direito conferido às pessoas de pleitearem que um fato pretérito, de caráter meramente particular, não mais esteja à disposição da curiosidade alheia, seja ele verídico ou não.