1. Aspectos iniciais:
Na medida em que a sociedade evolui a criminalidade se propaga em passos largos de forma organizada e estruturada, e no enfrentamento da criminalidade contemporânea os meios tradicionais de investigação mostraram-se ineficazes, exigindo modernas técnicas investigativas, entre elas, a infiltração policial.
No Brasil, o tema é recente, sendo inaugurado por meio da Lei 9.034/95 que alude ao crime organizado, e na sequência pela Lei n. 11.343/2006 que combate o tráfico de drogas, porém, foi por meio da Lei nº 12.850/2013, que definiu organização criminosa e dispôs sobre investigação criminal que o instituto ganhou contornos mais precisos, disciplinando inclusive acerca da responsabilidade penal do policial infiltrado quando comete ilícitos penais durante o período da infiltração.
Em uma análise histórica a infiltração de agentes pelo Estado foi amplamente utilizada na Europa, com origem no período absolutista francês, no Reinado de Luís XIV, que visando o fortalecimento do Ancien Regime, criou a figura do agent provocateur ou “delatores”, com objetivo de descobrir os inimigos do regime em troca de favores para o Príncipe (SILVA, 2009).
Na mesma época, a Espanha se servia de “delatores” em apoio à Igreja Católica, com intuito de identificar hereges. No Reino Unido, a infiltração de agentes ocorria para a captação de provas e informações sobre criminosos em troca de recompensa pecuniária (ONETO, 2005).
Mas no que consiste a infiltração policial? Na lição de Denílson Feitoza, “infiltração é a introdução de agente público, dissimuladamente quanto à finalidade investigativa (provas e informações) e/ou operacional (“dado negado” ou de difícil acesso) em quadrilha, bando, organização criminosa ou associação criminosa ou, ainda, em determinadas hipóteses (como crimes de drogas), no âmbito social, profissional ou criminoso do suposto autor de crime, a fim de obter provas que possibilitem, eficazmente, prevenir, detectar, reprimir ou, enfim, combater a atividade criminosa deles” (Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6ª. ed. rev., ampl. e atual. Niterói: Impetus, 2009, p. 820).
Vele lembrar que, ao contrário do que ocorre em outros países, no Brasil a infiltração de agentes do Estado em organizações criminosas, desde a Lei 12.850/2013 só pode ocorrer por meio de agente de polícia. Pois, na redação do art. 2, inc. V da lei n. 9.034/95, já revogada, a infiltração poderia ocorrer por meio de agentes de inteligência, como, por exemplo, através de membros da Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, COAF, Receita Federal, entre outros.
Assim, somente os agentes de polícia membro das corporações elencadas no art. 144 da CF, com atribuições investigativas, ou seja, Polícia Civil e Polícia Federal, é que podem conduzir uma investigação criminal com auxílio de agentes infiltrados.
Importante ressaltar que a utilização desta técnica de investigação restringi-se a investigação de ilícitos penais perpetrados no seio de organizações criminosas, conceituada no art. 1. § 1º da Lei. 12.50/2013, a saber:
Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
No entanto, a lei expressamente disciplina que esta modalidade de investigação deve ser utilizada de forma subsidiária, quando não houver outros meios eficazes para a produção de provas, semelhante ao comando legal na lei de interceptação telefônica que veda sua utilização quando houver outros meios idôneos de produção de provas.
A infiltração policial pode ser representada tanto pelo Delegado de polícia quanto requerida pelo Ministério Público, porém, neste último caso é necessário uma manifestação técnica do Delegado de Polícia sobre a viabilidade da infiltração, devendo em qualquer caso ser precedido de autorização judicial e por meio de um procedimento sigiloso.
A lei traz um prazo de 6 (seis) meses para duração da infiltração policial, não vedando a quantidade de renovações que possa ocorrer, exigindo apenas como em qualquer decisão judicial que seja devidamente motivada. E, ao final da operação, deve-se emitir um relatório circunstanciado pela Autoridade Policial, na sequência cientificado o Ministério Público.
Importante mencionar que o agente policial não está obrigado a aceitar o encargo de infiltrar-se em qualquer organização criminosa, ou caso aceitando, fazer cessar a infiltração a qualquer tempo. Igualmente, é permitido ao agente infiltrado a alteração de sua identidade, não ter sua identidade revelada nem fotografado ou filmado por meio de comunicação.
2. E se o agente policial infiltrado cometer crimes durante a infiltração?
A lei nº 12.850/2013 veio sabiamente resolver a grande celeuma jurídica acerca da responsabilidade penal do agente infiltrado quando cometer crimes junto a organização criminosa. Pois, a partir do momento em que o Estado possibilita a infiltração policial em determinadas organizações criminosas com intuito de colher provas, entender a sua estrutura organizacional e ao final desmantelar toda organização, já previu-se que o agente policial praticaria determinadas condutas, que em outro contexto seria punido criminalmente.
Segundo Igor Kozlowski ( KOZLOWSKI, 2012, p.13), o agente infiltrado é “ um agente policial que atua sob o controle do Estado-Juiz, que, ocultando sua qualidade e identidade, procura ganhar a confiança pessoal dos membros da organização criminosa, com o fim de obter provas e informações para instrução de processo criminal”.
É de conhecimento público que em muitas facções criminosas para o indivíduo poder pertencer a este grupo é necessário um “batismo”, onde na maioria das vezes traduz no cometimento de um ilícito penal. Ou até mesmo a participação em outros ilícitos como forma de ganhar confiança e subir no grau hierárquico da organização e, agindo de forma diversa poderia até mesmo por sua vida em risco.
Desta maneira, a doutrina dividia-se em quatro posições acerca da solução jurídica para (des)responsabilizar o infiltrado:
1ª) trata-se de uma causa de exclusão de culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa;
2ª) escusa absolutória, na medida em que, por razões de política criminal, não é razoável nem lógico admitir a responsabilidade penal do agente.;
3ª) trata-se de causa excludente da ilicitude, uma vez que o agente infiltrado atua no estrito cumprimento do dever legal;
4ª) atipicidade penal da conduta do agente infiltrado, seja por falta de dolo, seja porque a conduta do agente infiltrado consistiu numa atividade de risco juridicamente permitida, portanto, sem relevância penal.
Percebe-se que a grande preocupação da doutrina era analisar o conceito analítico do crime, sob a perspectiva dos elementos – Tipicidade, Antijuricidade e Culpabilidade – e verificar em qual destes elementos que recairia alguma hipótese de exclusão da responsabilidade penal do infiltrado.
Pois, por exemplo, em caso de aceitarmos a hipótese de atipicidade penal em um crime cometido pelo infiltrado, em homenagem ao Princípio da assessoriedade limitada não seria possível punir os partícipes do crime, não se mostrando a solução mais adequada ao caso.
Em realidade, a doutrina majoritária inclinou-se para adotar a teoria de exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. No entanto, Ricardo Antonio Andreucci (2013) critica o posicionamento de exclusão da culpabilidade pelos seguintes argumentos:
Curioso notar, entretanto, que a nova lei, a par de se alinhar ao Princípio da Proporcionalidade Constitucional no “caput” do art. 13, estabelece, no parágrafo único, que “não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infiltrado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa”, estabelecendo expressamente causa excludente de culpabilidade, consistente na inexigibilidade de conduta diversa (conforme o Direito), a acobertar eventuais ilicitudes praticadas pelo infiltrado, isentando-o de responsabilidade. Essa não nos pareceu a melhor solução, até porque coloca o agente infiltrado em delicadíssima posição de ter que avaliar, muitas vezes em situação concreta de perigo durante o desenrolar da infiltração, a inexigibilidade de conduta diversa em sua atuação, a qual será posteriormente reavaliada e até mesmo rechaçada pelas autoridades, acarretando-lhe a eventual responsabilização pelos “excessos praticados”. Melhor seria tivesse a nova lei ousado mais e erigido a infiltração propriamente dita em causa de preexclusão de antijuridicidade
No entanto, a lei regente decidiu a questão, regulamentando no art. 13, parágrafo único, não ser punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infiltrado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa, respondendo penalmente o agente somente em excessos a serem analisados em cada situação concreta.
A lei ao recepcionar a teoria de excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa traz ao Poder Judiciário a análise de cada caso concreto, sendo uma sábia decisão do legislador, pois ao contrário, poderia-se estar dando um cheque em branco ao infiltrado para cometer qualquer ilícito penal durante a infiltração, sem guardar a devida proporcionalidade.