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A posse.

Uma digressão histórico-evolutiva da posse e de sua tutela jurídica

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Agenda 14/07/2005 às 00:00

Resumo: O texto aborda a evolução da tratativa jurídica da posse desde o Direito Romano até os dias atuais, com especial ênfase para a proteção possessória, perpassando pelas diversas teorias que forneceram sustentáculo para a tutela jurídica da posse.

Sumário: 1-Introdução. 2-A origem da posse. 3- A posse no Direito Romano. 4- A Idade Média. 5- O Direito Reinícola. 6- As concepções modernas da posse e sua proteção. 7- A Concepção Contemporânea da Posse. 8- A proteção possessória no sistema jurídico brasileiro contemporâneo. 9- Liminar Possessória. 10- Conclusões.


1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 estabelece, no artigo 1º, inc. III e IV, como fundamentos da República Federativa do Brasil a "dignidade da pessoa humana" e "os valores sociais do trabalho de da Livre iniciativa".

No artigo 3º, inc. I, II e III, constam como objetivos fundamentais dessa mesma Republica Federativa do Brasil "construir uma sociedade livre, justa e igualitária, garantir o desenvolvimento nacional e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais".

Já o artigo 5º, inc. XXII e XIII, da CF/88 contempla o direito de propriedade, cujo exercício, porém, condiciona-se pela função social.

Para que os objetivos e fundamentos estabelecidos na Constituição Federal sejam observados uma série de fatores terá de se fazer presentes. A propriedade e a posse e sua disciplina jurídica são mecanismos fundamentais para esse desiderato.

Lastimavelmente, a perspectiva histórica dos institutos jurídicos é normalmente olvidada nos cursos de Direito, com o que jamais poderemos compactuar, pois o Direito também é história, e não pode ser compreendido de forma estanque, cristalizado em um tempo-espaço.

É o resgate da dimensão histórica da posse sob o prisma jurídico a meta a que me proponho na presente abordagem, pois somente quando compreendermos os institutos jurídicos em sua inteireza, vale dizer, em uma perspectiva histórica, é que poderemos corretamente aplica-los a nossa realidade, cientes de que o Direito é uma ciência social e um fenômeno dinâmico.


2. A origem da posse

As mais simples espécies animais e vegetais se valem de elementos do meio circundante para obter meios de subsistência. Em um grau mais adiantado, esta relação de utilização chega a fazer-se, inclusive, em caráter excludente, com o estabelecimento de territorialidade de indivíduos ou grupos.

Com o homem, desde o seu surgimento, não foi diferente. Jamais saberemos quando surgiu a noção de posse, que em sua concepção primitiva é um vínculo estabelecido entre um indivíduo ou um grupo e um determinado bem da vida. Este vínculo pode ter um caráter exclusivamente individual, através do qual um indivíduo se reconhece com senhoria sobre um bem, ou pode apresentar institucionalização, vale dizer, reconhecimento por terceiros.

A própria noção de Direito é variável na história. Mas utilizando a atual visão que temos do Direito, podemos afirmar que, certamente, a posse esteve presente desde as mais primitivas formas de organização humana.

Destarte, a descoberta de um cadáver mumificado de aproximadamente 4000 anos nos Alpes austríacos revelou, por exemplo, que o indivíduo conduzia objetos pessoais.

Outras descobertas arqueológicas ainda muito mais antigas, que remontam a períodos de dezenas de milhares de anos [1], às vezes centenas de milhares, igualmente revelam a existência de uma relação de posse de indivíduos ou grupos em relação a objetos ou áreas.

Mas os reduzidos conhecimentos sobre detalhes da organização destas primitivas sociedades, sobretudo pela falta de registros, faz com que a consideração do que seria a posse para elas não passe de especulações.

Somente com o advento da era histórica, que se marca pela escrita, é que passamos a ter subsídios seguros para aferir instituições jurídicas.

Neste passo, é pertinente a invocação do magistério de Astolpho Rezende, que ao falar da propriedade e da posse, apostila que "a posse e a propriedade aparecem em constante relação entre os homens; a posse é um fato natural; a propriedade uma criação da lei. Como nasceram uma e outra? É inútil investigar-se, através das diversas teorias imaginadas e desenvolvidas pelos filósofos e pelos juristas, a origem da propriedade, porque, frente a fenômenos jurídicos, é bastante que pesquisemos a origem desses fenômenos na organização romana, porque foi Roma que organizou o Direito, com uma extensa projeção sobre o futuro." [2]

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Razão assiste ao eminente jurista, visto que o direito romano é a base da pandectística [3], em cujo trabalho se assenta a moderna construção da propriedade e da posse.


3. A posse no Direito Romano

Ainda mesmo no Direito Romano é preciso termos cuidado já que sob esta categoria pode ser descrito o Direito de um período de aproximadamente 12 séculos [4].

A respeito, pondera Vittorio Scialoja: "É impossível dar-nos conta da propriedade romana, se antes não conhecermos, pelo menos em suas linhas gerais, o desenvolvimento histórico do domínio, desde os seus primórdios até o tempo de Justiniano. A história do Direito Romano desenvolve-se em 12 séculos, durante os quais ocorreu a mais completa transformação econômica e social do mundo moderno. Roma, de pequena comuna, tornou-se soberana da Europa, então conhecida, da África Setentrional e de parte da Ásia, sofrendo a mais radical transformação. Quando se fala, pois de prosperidade romana é mister distinguir, se se fala da de Rômulo ou da de Justiniano ou da propriedade de uma época intermediária" [5]

Em que pese esta distinção, podemos afirmar que a propriedade inicialmente era das gens, surgindo, posteriormente a propriedade do Estado. [6]

Com a propriedade estatal, surgiu o dominium, poder conferido pelo Estado aos particulares sobre as terras, o qual tomava a forma de concessões que se faziam através de um dos seguintes instrumentos: assinationes viritanae, por solicitação dos cidadãos; assignationes coloniae, visando a fundação de uma nova colônia; ou pelas agri questorii, através de venda em leilões pelos "questores" [7].

A posse sobre a terra era exercida, assim, por três formas. Pelo exercício do dominium pela ocupação de terras devolutas e por concessões que asseguravam a mera fruição, sem transferência do domínio, sendo esta última forma a agri occupatori, mediante o pagamento de uma "pensão", denominada vectigal, paga ao Estado [8].

A propósito deste último instituto, leciona Maynz: "As distribuições, assignações e vendas de imóveis, que o Estado fazia aos particulares sob garantia do povo romano - dominium ex iure Quiritum - tinham sempre lugar após uma medição oficial prévia. As outras terras, porque permaneciam como ager publicus, não eram sujeitas a igual medição. Cada pai de família ocupava a parte livre que julgasse conveniente, com a única condição de se conformar às prescrições que regulavam o modo de ocupação. Daí o dar-se a tais terras a qualificação de agri arcifinii ou occupatorii. Essas ocupações que, de resto, não eram permitidas senão aos membros do populus romanus, não conferiam direito de propriedade, mas somente uma posse que o Estado podia revogar a seu arbítrio, ma que entretanto, protegia enquanto durava." [9]

A perfeita dicotomia da propriedade e da posse, porém, parece somente ter surgido a partir da promulgação da Lei das XII Tábuas. Destarte, "o que parece verossímil é que o reconhecimento da posse somente apareceu com a sua proteção por meio dos interditos. Isso só pode ter sido possível após o triunfo da plebe. Só então começou o parcelamento da propriedade, pela distribuição e arrendamento das terras." [10]

Mas é importante lembrar, com Pontes de Miranda, que existia uma profunda diferença entre a concepção romana de posse e a moderna. Acerca do tema, leciona o festejado jurista: "A diferença entre a concepção da posse no direito contemporâneo, e a concepção romana da posse não esta apenas na composição do suporte fático (nem animus nem corpus, em vez de animus e corpus, ou de corpus, à maneira de R. von Ihering): está na própria relação (fática) de posse, em que os sistemas antigos viam o laço entre a pessoa e a coisa, em vez de laço entre pessoas. No meio do caminho, está a concepção de I Kant, que é a do empirismo subjetivista (indivíduos e sociedade humana), a partir da posse comum (Gesamtbesitz) dos terrenos de toda a terra." [11]

Como se observa, a concepção romana ainda é a da relação entre homem e coisa [12], o que contraria o postulado que embasa o Direito Contemporâneo segundo o qual inexiste relação entre homens e coisas, mas somente entre homens, tendo por objeto coisas.

Mas como era a proteção posssessória no Direito Romano? Respondendo, apostila Joel Dias Figueira Júnior [13]: "Duas teorias procuram justificar a origem histórica da proteção possessória no Direito Romano. A primeira, criada por Niehbur, defendida por Savigny e mais modernamente por Albertario e Burdese, defende a tese da providência de caráter administrativo à tutela da antiga possessio dos ocupantes do ager publicus, à medida que, não sendo proprietários (a terra pública não poderia ser objeto de propriedade dos particulares), ficavam sem a proteção judicial existente; por este motivo, os pretores passaram a proteger a situação possessória através da concessão dos interditos, proteção esta difundida posteriormente para as demais posses. A segunda teoria, defendida por Ihering, dentre outros, e aceita pela maioria dos estudiosos da atualidade, preconiza que a gênese da proteção interdital encontra-se no poder outorgado ao pretor, nas ações reivindicatórias, de conceder provisoriamente (até sentença final) a posse da coisa litigiosa a um dos litigantes"

Consoante lembra o autor, citando a Moreira Alves, a segunda teoria encontra escudo no fato de que "muitos institutos jurídicos em Roma surgem graças a incidentes processuais", sendo que a proteção possessória nas ações reivindicatórias seria anterior ao ager publicus.

A respeito dos pretores, ensina Astolpho Rezende: "Nos primeiros tempos, a justiça era exercida pelo rei, mais tarde pelos cônsules, pelos decênviros e pelos tribunos consulares. Com o correr do tempo, o encargo de administrar a justiça passou dos cônsules aos censores; e finalmente, quando os plebeus foram admitidos ao Consulado, a casta dominante acreditou agir habilmente, criando, ao lado dos cônsules, uma magistratura análoga, exclusivamente acessível aos patrícios, com as atribuições antes exercidas pelo prefeito da cidade. É a partir desta época (ano 387), que vemos figurar como magistrado ordinário o Pretor Urbanus isto é, o magistrado consular com poderes restritos á cidade de Roma." [14]

Pontes de Miranda, de seu turno, assevera que "a origem dos interditos romanos prende-se à paz quanto à terra – à proteção da pessoa ou das coisas contra a violência e o arbítrio.(…) Longe já se estava dos interditos para a proteção da liberdade e do status familiae, da democracia grega e do movimento igualitário cristão. Stölzel (Jahrbücher für die Dogmatik, VII, 147) tentou provar que todos os interditos protegiam na origem a pessoa, e só indiretamente a coisa, mas incorria no erro de cindir a pessoa e suas necessidades, para acentuar aquelas, tal como outros exageraram a proteção às coisas. Os interditos, no fundo, serviam à vida, à vida tal como exsurgia, sem peias das combinações conceptuais. Nem viam eles a diferença entre res nullius e res quae alicuius sunt (L, 1, pr., D, de interdictis, 43, 1). No intuito de protegê-lo, tratavam o próprio homem livre como coisa, res nullius." [15]

Neste contexto de expansão do Direito Privado e dos poderes interditais do praetor, é que se firma a proteção possessória. A propósito, pertinente a lição de Astolpho Rezende, verbis: "A exploração das terras em comum já tinha desaparecido desde muito tempo, e a idéia da propriedade privada se tinha estendido também ao solo, até chegar a quase eliminar toda a diferença entre relações jurídicas sobre imóveis e os bens de raiz, e se havia realizado uma certa mobilização da propriedade territorial, ao estender-se aos imóveis a forma aquisitiva da propriedade sobre imóveis (a mancipatio). As terras do ager publicus eram arrendadas ou deixadas á livre ocupação dos que quisessem pagar um tributo moderado. Não obstante, o adquirente não obtinha deste modo a propriedade privada. Era uma simples posse, tolerada pelo Estado (occupatio), ou regulada administrativamente (ager publicus). [16] O que parece certo, portanto, é que a proteção possessória está intimamente atrelada à ascensão dos plebeus e aos poderes interditais dos pretores, que a ela sucedeu, em um quadro de crescente ampliação do direito privado, sendo materializada através dos interditos.

Mas como funcionavam os interditos e quais eram eles? Responde Astolpho Rezende: "A ordem contida no interdito, ao invés de ser notificada ao juiz, como a que era incerta na fórmula de uma ação, era dirigida ao réu (interdito simples) e por vezes às duas partes (interdito duplo). Estava subordinado a condições determinadas. Em caso de contravenção, ou se não julgasse o réu no caso visado pelo magistrado ou recusasse cientemente obedecer, um juiz seria encarregado, nas formas ordinárias do processo, de verificar se as condições do interdito existiam, e de pronunciar, caso coubesse, uma condenação. As partes deveriam se apresentar as duas vezes perante o magistrado: primeiramente para obter o interdito; depois para organizar uma instância, a fim de fazer constatar se o interdito tinha sido violado." [17]

Joel Dias Figueira Júnior, de seu turno, esclarece que os interditos variavam de acordo com a espécie de posse. Diz ele:"No tocante aos instrumentos judiciais propriamente ditos, destinados à proteção possessória, encontramos variação de acordo com o tipo de posse objeto da lide (possessio civilis, possessio ad interdicta e possessio naturalis) e conforme o período da evolução do direito romano (clássico, pós-classico e justinianeu)." [18]

Quanto aos tipos de interditos, apostila Francisco Antônio Casconi, verbis: "Examinada a excepcional defesa direta da posse, tradicionalmente a proteção opera-se através de ações especiais denominadas interditos. O interdictum tem origem no direito romano como criação pretoriana que consistia numa ordem do magistrado romano, solicitada por uma pessoa privada, determinando a outra pessoa um fazer ou abster-se. O vocábulo interdito advém de interim dicuntur, traduzindo a efemeridade da decisão proferida no juízo possessório, cuja finalização só se alcança no juízo petitório, representando as atuais ações possessórias (manutenção, reintegração e intedito proibitório) formas evoluídas de antigos interditos do direito romano." [19]

Segundo o mesmo autor, três eram os interditos, a saber: adispiciendae possessionis, retinendae possesionis e recuperandae possesionis [20]. O primeiro destinava-se a conferir a posse àquele que estivesse litigando em juízo, fazendo às vezes da ação de imissão de posse na atualidade. O intedictum retinendae possessionis como a própria etimologia revela, destinava-se a manter a posse, evitando a turbação, independentemente da propriedade, podendo ser de móveis (utrubi) ou de imóveis (uti possidetis).

Como lembra Joel Dias Figueira Júnior, "estes dois remédios apresentavam duas características, quais sejam, a proibição e a duplicidade, tendo em vista que ambas as partes eram proibidas de fazer alguma coisa." [21]

Mais adiante, arremata, ainda a respeito do intedictum retinendae possessionis causa: "Também, via de regra, nem toda a posse era tutelada, mas somente aquela que não tinha sido obtida por meio de vi, clam ou precário (na etimologia clássica denominada de possessio iusta em oposição àquela iniusta ou vitiosa), em relação à parte contrária." [22]

Já o interdictum recuperandae possessionis fazia a função da ação de reintegração de posse hodierna. Eram de três espécies diferentes, quais sejam: unde vi, interdito de precarium e interdito de clandestina possessione. O primeiro era concedido, somente no período de um ano do esbulho, para reintegrar na posse aquele que sofresse esbulho, ao "que era violentamente expulso do imóvel" [23]. Desdobrava-se em duas espécies de acordo com a forma de violência: interdito de "vi cotidiana", se fosse a violência comum, e interdito de "vi armata", caso a violência fosse incomum. [24]

Mas o que caracterizava a violência como comum ou incomum?

A violência dita "comum" era aquela exercida diretamente pelo réu, por seus escravos ou mandatário. A violência incomum, ou vi armata, era aquela na qual uma multidão, ou ainda uma ou muitas pessoas armadas exerciam a violência. [25] Posteriormente, os dois interditos, que eram pertinentes somente para imóveis (somente no direito bizantino foram estendidos aos móveis), fundiram-se em um só, o "de vi" ou "unde vi." [26]

A segunda espécie era utilizada pelo possuidor-proprietário em vista do possuidor precarista diante da existência de um precarium, que era uma convenção através da qual se permitia a utilização da coisa por outrem. Inicialmente, era aplicado somente aos bens imóveis, mas posteriormente, na era clássica, foi estendido aos móveis, tendo desaparecido na codificação justinianéia, quando foi substituído pelo interdito de vi. [27] Caso o proprietário, e possuidor indireto, pretendesse reaver a posse e não contasse da aquiescência do precarista, poderia valer-se do interdito. Já o terceiro interdito (de clandestina possessione) [28], somente surgiu no final da idade clássica, e era utilizado contra o esbulho clandestino. [29]

No direito pós-clássico, foi criado o interdictum (ou actio) momentariae possessionis, meio mais expedito e eficaz de permitir que o que fosse desapossado sem violência pudesse reaver sua posse, mesmo trinta anos depois. [30]

Perquirindo acerca da principiologia envolvida nos interditos, salienta Serpa Lopes que "para os jurisconsultos romanos, sendo a posse um simples fato, a despeito disso devera de ser respeitado unicamente em face dos efeitos por ele produzidos. O possuidor pela circunstância de o ser, possui mais direitos do que o que não o é. O Pretor não indaga do possuidor qual o tempo de sua posse nem o título em que se firma; é lhe bastante dizer: possideo quia possideo." [31]

Direito Romano terá grande influência, ecoando no ocidente até hoje.

Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A posse.: Uma digressão histórico-evolutiva da posse e de sua tutela jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 743, 14 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6985. Acesso em: 23 dez. 2024.

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