4. A Idade Média
O período compreendido na Idade Média vai desde a queda de Roma, por volta de 472 da Era Cristã até o Renascimento, cujo marco é a queda de Constantinopla (século XV).
A organização político-social do período está estruturada no feudalismo, cuja base reside, dentre outros fatores, na propriedade e na posse da terra.
Não existem Estados como hoje os conhecemos, mas feudos, nos quais o Senhor Feudal concede a posse da terra através do estabelecimento de uma relação de "vassalagem", na qual o vassalo presta serviço militar, e ainda paga pela utilização da terra.
Ao lado da fragmentação política, assistimos à fusão de elementos culturais e institutos jurídicos de diversas origens, especialmente das denominadas "tribos bárbaras" (godos visogodos, astrogodos, suevos etc..), povos de origem germânica cuja expansão está intimamente ligada à queda de Roma, além da influência do Direito Canônico (além dos próprios elementos culturais e jurídicos germânicos).
É a época dos glosadores e pós-glosadores, como Baldo de Ubaldis e Bartolo de Saxoferrato. A respeito do conceito de posse dos glosadores, calha invocação o magistério de Pontes de Miranda: "Nos glosadores, com o método dialético inaugurado, nas Summae, por Irenério (H. Fitting, Summa Trecensis, VII s.), começou o labor científico mais sério após o dos grandes axiomatizadores romanos (Nenhuma alusão dos glosadores ao animus domini, porque era estranho aos textos). A posse, para eles, é relação fática, todavia sem que percebessem que, relação social, tinha de ser com as outras pessoas. O autor da Summa Trecensis via na posse o corpo do sujeito em contacto com o corpo da coisa. Não se pode dizer que o étimo de possessio tenha sido a causa de tal concepção, mas foi aproveitada para isso. Partindo da relação tão material, tinham os glosadores de cair na distinção entre a possessio vera e a possessio interpretativa, artificialis ou fictícia, criada essa pelo direito.(...) A aquisição da posse tinha de ser pela apreensão corporal, o que de si só faz ressaltar quão estreita era a concepção dos glosadores. O ato-fato jurídico da tomada da posse tinha de ser para eles, Placentino à frente, actus corporalis, posto que se admitisse a traditio ficta, a traditio por interpretationem (Summa Codicis, 417)." [32]
Conclui por fim, lembrando que "para a concepção romana e da glosa, alieno nomine possidere não era possuir; mas Placentino explicava que não só o possuir alieno nomine pré-exclui a posse: há os que têm para si e não possuem. Não podemos exigir mais dos glosadores do que eles fizeram, fizeram o que podiam." [33] Os pós-glosadores seguiram nesta esteira, apenas dando maior atenção aos detalhes.
Quanto ao direito canônico, "aplicando embora os textos das leis romanas e os interditos, introduziu-lhes algumas modificações. O pensamento da Igreja era proteger a posse contra toda e qualquer violência, mesmo contra aquelas que se apresentavam com aparências jurídicas." [34]
Segundo apostila Serpa Lopes, "uma radical transformação da concepção de posse sobreveio por força de um novo sentido trazido com as leis canônicas. Tal transformação manifestou-se em duas direções: primeiro, pelo alargamento da posse, cujo conceito ampliou-se para compreender não só as coisas corpóreas como ainda os próprios direitos; em segundo lugar, quanto a certos princípios inerentes à espoliação, por haver consagrado o exceptio spolii." [35]
primeiro instituto acrescido pelo direito canônico foi a exceptio spolii, sobre a qual disserta Astholpo Rezende, in verbis: "O primeiro remédio encontrado pela Igreja foi a exceptio spolii que foi introduzida pelos meados do século IX. A idéia que deu nascimento a este remédio era que o bispo, expulso de sua sede e despojado de seu poder e de seus bens, dificilmente podia se defender contra as acusações de poderosos inimigos, e ficava exposto a sucumbir freqüentemente na luta contra estes potentados. Então se dispôs que um bispo, expulso de sua sede ou despojado de seus bens, não podia, neste estado de inferioridade, ser objeto de procedimento criminal, enquanto não fosse reposto na sua situação; tinha direito a se defender com a exceção de esbulho, alegando que não podia ser processado enquanto não fosse recolocado na posse de tudo quanto lhe tinha sido retirado. Era isso a exceptio spolii, que não era uma simples exceção dilatória, mas um meio de defesa que implicava uma ação de restituição da posse esbulhada." [36]
Tinha-se nesta época, as denominadas decretais, que eram compilações de normas editadas pelos pontífices, como, por exemplo, a decretal pseudo-isidoriana, ou o Decreto de Graciano, sendo que a partir deste último surgiram dois instrumentos de proteção: a actio spolii e a exceptio spolii.
A exceptio spolii "tornou-se um simples meio dilatório, uma exceção dilatória, expediente processual de que se podia prevalecer o possuidor, despojado de seus bens, tanto no cível como no crime, para obter uma dilação, que o habilitasse a previamente reclamar em juízo a restituição dos bens esbulhados." [37]
A actio spolii, por outro lado "era a verdadeira ação de esbulho, era dada, pela glosa do Decreto, a todo possuidor, esbulhado contra sua vontade; visava a restituição, e intentava-se, não somente contra o esbulhador, mas também contra o terceiro possuidor, posto que de boa fé." [38]
Quanto ao direito germânico, o principal legado no tocante à posse é o instituto da Gewere [39], a respeito da qual discorre Nelson Nery Júnior: "Instituto do direito germânico distinto da posse (possessio) e desconhecido dos romanos, a Gewere era a investidura justa (recht Gewere) que fazia de alguém na posse da coisa (de início somente móvel, mas depois imóvel também), independentemente da apreensão física (corpus) ou intenção de possuir (animus), fazendo com que se criasse uma aparência (presunção) de que o investido fosse realmente o possuidor (princípio da publicidade). Exemplo: posse do herdeiro. Não se limitava a afirmar que o investido era o titular do direito, porquanto a Gewere também tinha função legitimadora dos negócios jurídicos que o investido celebrava com terceiros de boa-fé, que com ele contratavam sob essa aparência, constituindo-se em situação jurídica que independia da existência do verdadeiro direito material." [40]
Ainda a respeito da Gewere leciona Pontes de Miranda com a percuciência que lhe é peculiar: "A abstração do animus é de origem germânica, pois a Gewere, a saisina, a vestidura, a investidura, do direito medieval alemão, é puro poder fático sobra a coisa, de modo que, sem o animus dominationis, se podia ser possuidor(...). Não é de se espantar que a palavra ‘Gewere’ também tivesse o sentido de posse-direito (conjunto dos direitos e deveres derivados do poder fático sobre a coisa): a diferença entre a concepção romana e a germânica já se caracteriza na composição do suporte fáctico; o que uma considerava indispensável a outra dispensava (o animus). Depois de entrar no mundo jurídico o suporte fáctico, que podia ou não ser suficiente para o direito romano, a irradiação de efeitos do fato jurídico era normal; e daí falar-se em ‘Gewere’ como conjunto de direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções derivados do poder fáctico sobre a coisa." [41]
As diferenças com o Direito Romano evidenciam-se, pois "no Direito Romano antiguíssimo, a propriedade individual era obumbrada e sobrepujada pela propriedade em comunhão, de modo que carecia de importância. Era uma situação diversa d do Direito Romano, onde preponderava a propriedade individual. Por isso, no Direito Germânico, sendo a posse apenas uma manifestação exterior do direito, correspondentemente em valor ao próprio direito representado, não podia por si mesma ser aparelhada de proteção." [42]
Da subordinação da posse ao domínio operada pelo direito germânio resulta que "de início os germanos não conheceram senão uma propriedade só e uma forma exclusiva de posse: a do proprietário, o qual foi único a usar o imóvel por direito próprio, enquanto os braços, dos quais se servia para a cultivação do solo, eram unicamente os dos servos. Todavia, na época carolíngia, a propriedade foi sendo fracionada entre o senhor da coisa e o denominado livelário. Então sobreveio uma outra diferença entre o Direito Romano e o germânico; o primeiro manteve a posse do proprietário sobre a coisa, e criou a iuris possessio do terceiro titular de um direito real, enquanto o segundo deixou a idéia de posse se desenvolver e proliferar." [43]
Após o Renascimento, a fusão dos Direitos Romano, Germânico e Canônico ainda continuava servindo de base, passando a viger, no Brasil, as Ordenações Reinícolas (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas).
Neste período, ocorre a descoberta do "novo mundo", e consolida-se o Estado Absolutista, que suplantou o feudalismo.
5. O Direito Reinícola
O direito reinícola compreende um extenso período que se estende desde antes da era das descobertas até o século passado, lapso no qual três ordenações vigeram no direito português: Afonsinas, Manoelinas e Filipinas.
Acerca da tratativa do tema nas Ordenações Afonsinas, colhe-se o magistério de Joel Dias Figueira Júnior, segundo o qual "mantendo a tradição romana do estabelecimento de um procedimento ‘sumário’ diferenciado para as ações interditais, as Ordenações Afonsinas dispõem sobre a matéria no Livro III, Títulos LII e LIII, admitindo a concessão de tutelas provisória urgente em favor do esbulhado, desde que a ofensa tivesse ocorrido no prazo de ano e dia. Em síntese, segundo se infere do caput, o citado em demanda de força nova, isto é, aquela ajuizada no prazo de ano e dia, a contar da data da ofensa, deverá logo oferecer resposta, não havendo outro prazo para tanto" [44](grifo do autor citado).
Tratando da tutela antecipatória, e reportando-se ao Título III, parágrafo 1º, lembra que "em termos de tutela antecipatória, dispõe claramente a primeira parte do dispositivo aludido no sentido de que o esbulhado possa recuperar de início a posse, devendo a concessão ser deferida pelo juiz sem maiores delongas, livrando o ofendido da situação de moléstia." [45]
O procedimento era breve, sumário, sendo, inclusive, desnecessária a citação da parte para ouvir a sentença, que era prolatada no estado em que se encontrasse o processo.
Já no Código Filipino, "a matéria pertinente à antecipação da tutela possessória aparece regulada em três momentos distintos: no Livro III, primeiramente no Título XL, que trata da situação ‘do que nega star em posse da cousa que lhe demandam’; em segundo lugar, no Título LXVIII, que dispõe ‘que em feito de força nova se proceda sumariamente sem ordem de Juízo", e, por último, no Livro IV, Título LVIII, que trata da hipótese ‘dos que tomam forçosamente a posse da cousa que outrem possui." [46]
Também estava contemplado o interdito proibitório sob a forma dos denominados "embargos à primeira".
As ordenações vigeram no Brasil praticamente até o advento do Código Civil de 1916.
6. As concepções modernas da posse e sua proteção
As concepções modernas da posse surgem da fusão do pensamento neo-kantista com a pandectística. Trata-se de uma visão permeada pelo suporte filosófico do iluminismo.
A propósito, lembra Pontes de Miranda que "a elaboração da teoria da posse tal como chegou a ser no século XX, com os Códigos Civis alemão, suíço e brasileiro, retrata a luta da psique humana por apanhar o conceito mais conveniente e o conteúdo mais preciso da posse. Alguns conceitos e algumas soluções de lege lata revelavam que não se tratavam igualmente relações relativamente iguais, ou mais merecedoras de tutela possessória (eg. o usufrutuário e o crédito pignoratício). Foi pena que os glosadores e os pós-glosadores e os juristas da renasncença não houvessem separado o problema de iure condito e o problema de iure condendo. A evolução teve de operar-se dentro de exposições dialéticas e de tentativas de adaptação do conteúdo dos textos ao direito que deveria ser." [47]
A respeito do pensamento de Kant, que é um dos marcos na evolução do concito de posse, leciona Pontes de Miranda, in verbis: "A concepção da posse, segundo I Kant, e a concepção antiga da posse têm, entre si, todo o abismo que se cavou entre a filosofia platônica e a filosofia moderna. Para os juristas antigos, a relação de posse não só existe a priori, independentemente do ordenamento social e jurídico, como, também é entre pessoa e coisa, donde ser condicionada por aquela e por essa. Para a filosofia kantiana, a relação possessória é entre pessoas, embora concernente à coisas. Se alguém possui, os outros estão como que diante dessa posse, ou sofrem essa posse. Quem possui tem, no espírito, a consideração de todos os que poderiam, se se achassem de posse da coisa, de opô-la ao que ora a possui. Se alguma coisa é minha, é porque posso presumir que seja possível ser prejudicado pelo ato de outrem. Além, disso, para I. Kant, a posse é o poder físico de usar, arbitrariamente, a coisa. Portanto: têm os outros de abster-se, para que se não turbe, ou se não esbulhe a posse que tenho. Essa posse é mais do que o corpus dos juristas romanos, porque é mais do que o contacto com a substância física da coisa; supõe que os outros se hajam de abster de tomar a coisa, ou de perturbar-me o poder que tenho sobre ela. Via ele, além da posse sensível, a posse intelegível, independentemente do elemento empírico, e baseada em determinação prática do arbítrio. Além da potestas, seria preciso, para a posse, que no mundo do pensamento, se tivesse a coisa como sob o arbítrio de quem a ‘possui’". [48]
Como se observa, Kant já progride ao estabelecer uma relação entre pessoas em vista de uma coisa, e não entre pessoas e coisas. Mas ainda falta substância e estruturação aos conceitos, o que somente vai ser atingido com os estudos de Jhering e Savigny.
Consoante Astolpho Rezende, referindo-se ao tratado de Savigny, "antes do aparecimento desse sábio e famoso livro, cuja primeira edição foi publicada em 1803 e a Sexta em 1837, diz outro sábio tratadista J.P. Molitor, uma confusão extrema reinava na matéria da posse em direito romano. Jurisconsultos de mérito tinham mesmo pensado que as dificuldades eram insuperáveis, e não hesitaram em atribuí-las a divergências de opiniões que teriam existido entre os próprios jurisconsultos romanos. As contradições que se acreditavam encontrar nos textos não tinham, entretanto, por causa senão a ignorância em que estava da verdadeira significação das palavras possessio, civilis possessio, naturalis possessio, cuja arbitrária interpretação foi fonte de erros sem número." [49]
Pontes de Miranda, por sua vez, afirma que "o século XVIII passara sem que se enriquecesse a teoria da posse. A nova atitude volve ao animus domini, fundindo os conceitos de posse ad interdicta e de posse ad usucapionem. A posse ad interdicta seria, em verdade, a única. A ela opõe-se a detenção; e distinção entre elas apenas tem por fito responder á questão de caber, ou não, na espécie, a proteção interdital. Só a detenção com animus, intencional, produziria posse; portanto no animus domini é que estaria o elemento distintivo. Possuidor é quem tem o intuito de exercer o direito de propriedade. Mas de exercer o seu direito de propriedade, não o de outrem; por conseguinte, o animus possidendi é apenas o animus sibi hebendi. Só o poder fático do proprietário, que o não proprietário, tendo o animus sibi habendi, também tem, criaria a posse" [50].
A teoria de Savigny, "denominada subjetivista, reconhece a posse mediante a conjugação de dois elementos: corpus (efetivo contato físico com a coisa ou mera possibilidade de exercer esse contato=detenção) e animus (elementos subjetivo consistente na intenção de exercer sobre a coisa um poder no interesse próprio). Em síntese, para Savigny por posse entende-se o poder de dispor fisicamente de uma coisa, combinado com a convicção do possuidor de que tem esse poder" [51]
Um de seus fundamentos básicos "é que o conceito originário da posse, tal como resulta do Direito Romano, referia-se unicamente às coisas corpóreas, possessio a pedibus ou a sedibus; daí a regra já assinalada, possideri autem possunt quae sunt corporalia, quia nec possidere intelligibur jus cincorporale." [52]
A posse, portanto, no conceito de Savigny, compõe-se de dois elementos, quais sejam o corpus e o animus. "O corpus é o elemento material que se traduz no poder físico sobre a coisa ou na mera possibilidade de exercer este contato, ou melhor, na detenção do bem ou no fato de tê-lo a sua disposição. O animus domini consiste na intenção de exercer sobre a coisa direito de propriedade." [53]
De lembrar, com Sílvio Rodrigues, que "os dois elementos são indispensáveis para que se caracterize a posse, pois, se faltar o corpus, inexiste relação de fato entre a pessoa e a coisa; e, se faltar o animus, não existe posse, mas mera detenção." [54]
Assim sendo, concluímos, com Astolpho Rezende, que "o que Savigny doutrinou com o império de sua grande autoridade, foi que o animus possidendi, a vontade de possuir, não é mais do que a intenção de exercer o direito de propriedade. Para, no seu conceito, ser considerado possuidor, é necessário que aquele que detém a coisa se comporte a seu respeito como proprietário dela; que pretenda dispor dela, de fato, da mesma maneira que o faria o proprietário. Que trate a coisa como própria, sem sujeição a outra vontade superior. De sorte que o possuidor, para que como tal seja considerado, deve ter animus domini, animus rem sibi habendi, intenção de dono, de ter a coisa como sua própria; em outros termos, que pretende de fato dispor da coisa como o faria o proprietário em virtude do seu direito de propriedade." [55]
Savigny, consoante o mesmo autor, dividiu as pessoas em quatro categorias a saber: o proprietário verdadeiro; o que detém a posse em virtude de jus in re, denominado por ele de usufrutuário; o que detém a coisa em virtude de vínculo contratual, citando como exemplo o arrendatário, e, por fim, o que detém a coisa em nome de outrem, ou seja, o mandatário.
Diversa é a concepção de Jhering, defendida em dois trabalhos: "Fundamento dos Interditos Possessórios", e do "Papel da Vontade na Posse".
Trata-se de Teoria Objetivista, que "prioriza o corpus na caracterização da posse, assumindo o vocábulo, contudo, sentido outro, afastado do simples contato físico ou possibilidade de ter a coisa à disposição, mas efetiva conduta de dono. Possui quem age como dono, surgindo a posse como exteriorização da propriedade, visibilidade do domínio ou uso econômico da coisa" [56]. Ou seja, "para constituir a posse basta o corpus, dispensado o animus, elemento de escasso valor, longe de ser essencial. Jhering não contesta a necessidade do elemento intencional, não sustenta que a vontade deva ser banida; apenas entende que esse elemento implícito se acha no poder de fato exercido sobre a coisa." [57]
O porquê desta concepção é explicado por Washinton de Barros Monteiro: "É que o corpus constitui o único elemento visível e suscetível de comprovação, encontrando-se inseparavelmente vinculado ao animus, do qual é manifestação externa, como a palavra se acha ligada ao pensamento, do qual é expressão." [58]
Destarte, "para Jhering o que importa é o uso econômico ou destinação econômica do bem, pois qualquer pessoa é capaz de reconhecer a posse pela forma econômica de sua relação exterior com a pessoa" [59], já que "posse não significa apenas detenção da coisa; ela se revela na maneira como o proprietário age em face da coisa, tendo em vista sua função econômica, pois o animus nada mais é que o propósito de servir da coisa como proprietário." [60] E pondera, Astolpho Rezende, acerca dos argumentos do jurista tedesco: "Se a chave da discussão entre posse e a detenção residisse na vontade, a questão de saber se há posse ou detenção ficaria abandonada à vontade individual daquele que se encontrasse na relação possessória; se ele se pronuncia pela posse, há posse. Se não, não há mais que detenção. Desta forma, ficaria inteiramente dependente da vontade das partes ligar a posse a uma relação possessória que o direito romano não tinha senão por detenção, e vice-versa(...). A conseqüência última deste sistema seria abandonar-se completamente a natureza da relação possessória ao puro capricho daquele que tem a coisa; teria ele, segundo a vontade do momento, ora a posse, ora a detenção." [61]
A conclusão é que "os elementos constitutivos da detenção são os mesmos da posse: o corpus e o animus existem, tanto no detentor, como no possuidor. Mas não é sobre a vontade que se baseia a distinção entre a posse e a detenção; a relação entre posse e a detenção é a seguinte: toda a relação possessória é, em princípio, uma posse propriamente dita; mas em certas relações possessórias determinadas, o direito obedecendo a motivos práticos, tira os efeitos da posse, posto que as condições legais desta, corpus e animus, estejam reunidas. Tais são os casos de detenção: são as relações possessórias em que motivos práticos obstam a que se produzam efeitos da posse." [62]
Acerca da teoria de Jhering, escreveu Pontes de Miranda: "A aparição da obra de R. von Jhering teve o êxito brilhante de tôda atividade que destrói, mas, onde destruiu, algo constrói. Deve-se-lhe a crítica mais cerrada, mais minudente, que jamais se fizera, às teorias subjetivas. De que vontade se trataria? Da vontade de cada indivíduo, in casu? Seria possível? Da vontade abstrata ou de teoria subjetiva da causa possessionis? Também o seria, porque nem se presumia a causa possessionis, nem se dava ao autor o ônus dessa posse. Donde a necessidade de se examinarem as razões de legislar que levaram os juristas romanos a distinguirem causae possessionis e causae destinationis. Mas a teoria que aí ficasse teria o inconveniente de daro ao autor a prova da causa possessionis, contra Paulo (Sententiae receptae, V, 11); e isso conduziu R. von Jhering a erigir teoria em que ao autor somente incumbisse provar o corpus. Para ele não há diferença de princípio entre a posse e a detenção: apenas a lei cria a cusae detentionis." [63]
Característica fundamental desta teoria é que "ao mesmo tempo em que separa a posse da propriedade, coloca a relação possessória ao serviço integral da propriedade." [64]
De notar que "Jhering admite o corpus e o animus da teoria idealizada por Savigny e concorda que é através desses dois elementos que a posse se concretiza, salvo as exceções legais. Mas entende não ser relevante a distinção entre corpus e animus, pois a noção de animus já se encontra implícita na de corpus" [65]. Ou seja, "a diferença principal é que, enquanto Savigny dava o ‘animus’ como elemento independente do ‘corpus’, e só aceitava a posse quando a pessoa exercia os atos e manifestava a vontade de ter a coisa, denominando-se, por isso, sua teoria de teoria subjetiva, Jhering dizia que o animus está ínsito no corpus, isto é, existe o animus quando existe corpus, denominado-se sua teoria de objetiva" [66].
Após o embate destas duas teorias, houve divisão na doutrina. A propósito, lembra Pontes de Miranda que "depois de Der besitzwille, a literatura dividiu-se entre a teoria ou teoria subjetivas (B. Windescheid, H. Dernburg, A. Randa) e a teoria objetiva (J. Baron, Zur Lehre vom Besetzwillen, Jahr dücher für die Dogmatik, 29, 192 s; Noch Einmal der Besetzwille, 30, 197 s; Zoll, Grünhuts Zeitschrift, 17, 697-707; J. Appleton, Essai sur le Fondament de la Protection possessoire, 93; C. Salkowski, Instituitionen, 6ª ed., 209, 9ª ed. 218s; Ed Vermond, Traité de la Possession, 289s; A Ubbelohde, em Glück, 43-44, 5ª parte, 525s)." [67]
Inicialmente, porém, "a maioria dos romanistas alemães seguiu a opinião de Savigny: Puchta, Muhlembruch, Burchardi, Vongerow, Thibaut, Mackeldey, Zielonacki, Arndts, Unterholzner, Baron, Windescheid, Bruns, Rudorff, Eck, Mazeroll, Kuntze e Randa. A quase totalidade dos romanistas e civilistas franceses e belgas estão conformes com o animus domini de Savigny." [68]
Astolpho Rezende ressalta que no Brasil, "a teoria foi aceita não só pelos escritores como pelos tribunais. Basta, para comprová-lo, citar as obras de Lafayette e Ribas e percorrer os repositórios de jurisprudências." [69] Mas posteriormente a teoria de Jhering ganhou espaço, e há, hoje divergência acerca de sua preponderância no direito pátrio.
Boa parte dos doutrinadores assevera que a legislação pátria, especialmente o revogado Código Civil, adotara a teoria de Jhering, ainda que em alguns pontos dela se distancie. Assim, por exemplo, Washington de Barros Monteiro [70], Maria Helena Diniz [71], Sílvio Rodrigues [72], César Fiuza [73], Francisco Antônio Casconi [74] e Orlando de Assis Corrêa [75].
Outros, porém, afirmam que o revogado código não conseguiu ser fiel a nenhuma das teorias. É o caso de Joel Dias Figueira Júnior, para quem "na verdade, o Código brasileiro não conseguiu ser fiel a uma ou outra teoria, não obstante a intenção do legislador. Nas sistemáticas normativas em tema possessório, não se pode combater a necessidade de procurar a harmonização entre as duas teorias: a falta de menção expressa da lei ao requisito do animus não pode ser interpretada como adesão á corrente doutrinária que exclui da posse o elemento psicológico." [76]
Já Pontes de Miranda entende, reportando-se ao revogado código civil, que "o Código Civil brasileiro fez-se, em matéria de posse, com elementos romanos, germânicos e canônicos." [77]
Para o festejado jurista, "o que interessa à tutela da posse é ser a posse relação fática, inter-humana, ainda que o conteúdo dessa relação nem sempre seja o mesmo e a própria extensão da posse varie de povo a povo, ou de século a século. Um dos equívocos foi, como temos de mostrar, o equívoco do animus possidendi, com que se subjetivou a relação fática, objetiva, se bem que inter-humana, da posse. Tal equívoco não se desfaz quando se insinua que há no caso concreto, imanente corpus" [78].
Isto se deve ao fato de que para o citado tratadista, "a posse é estado de fato, em que acontece poder, e não necessariamente ato de poder. A relação possessória é inter-humana e a posse exerce-se por atos ditos possessórios; mas tem-se de distinguir, ainda no mundo fáctico, o poder e o exercício do poder. A posse é poder, pot-sedere, possibilidade concreta de exercitar algum poder inerente ao domínio ou a propriedade. Não é o poder inerente ao domínio ou á propriedade; nem, tampouco, o exercício desse poder." [79]
Como se observa, para Pontes de Miranda, a posse é antes de tudo uma relação puramente fática, na qual podem ser abstraídos o animus e mesmo o corpus, como, aliás, afirma que o Código Civil fez em alguns pontos. Para ele, a proteção possessória está escudada no princípio "quieta non movere".
Mas mesmo juristas que afirmam a adoção da teoria de Jhering, admitem que em alguns pontos o Código Civil revogado agasalhada a teoria de Savigny. É o caso, por exemplo, de César Fiúza que após se perguntar qual das teorias teria sido acolhida, pondera: "O artigo 485 diz considerar-se possuidor aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade. Vimos que os poderes inerentes ao direito de propriedade são os de usar, fruir, dispor e reinvidicar. O exercício de qualquer acarretará posse. Claro está, pois, que a teoria adotada é a de von Jhering, muito mais adequada ao tráfego negocial contemporâneo. Não obstante, em alguns momentos adota-se a teoria de Savigny. Tal é o caso do usucapião, que exige a intenção de dono" [80]
Parece que razão assiste a Pontes de Miranda, pois no caso da saisina, por exemplo, abstrai-se tanto o corpus como o animus.