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Os princípios do direito público e o Estado:

a dialética dos interesses públicos e dos interesses privados na teoria da justiça de John Rawls e na teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas

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Agenda 16/07/2005 às 00:00

III - JOHN RAWLS E JUSTIÇA SOCIAL

            3.1 A teoria da justiça de John Rawls

            Publicada em 1971, "Uma teoria da justiça", de John Rawls praticamente reabilitou a filosofia política no cenário internacional. Houve repercussão em várias áreas do saber, por sua visão multidisciplinar acerca da justiça, incluindo, o Direito. Porém, Rawls não tinha a intenção de criar uma teoria específica do Direito, ampliou-a, para abarcar a questão da justiça nos dias contemporâneos. Contudo, podemos verificar, em sua obra, que a sua teoria da justiça como eqüidade possui praticamente os contornos de um ordenamento jurídico, iniciado por princípios e elementos constitucionais.

            Rawls não pretendeu que seus estudos fossem apenas teoria. Portanto, seu esboço de ordem jurídica não se resguarda meramente em Leis ou princípios normativos. Ampara-se principalmente em princípios pragmáticos que possam ser colocados em prática, visando solucionar problemas da sociedade contemporânea, como a desigualdade social e a falta de acesso eqüitativo às oportunidades, cujo implemento pode significar uma melhoria na qualidade de vida das pessoas. O Estado é mais ativo, mais social, e menos formal, segundo Sônia Felipe. "Rawls confere ao Estado responsabilidades no fornecimento de bens públicos e no controle das instituições responsáveis pelo equilíbrio entre a cooperação do indivíduo para o montante da riqueza social, e os benefícios aos quais tem direito nesse contrato". [65]

            Rawls estrategicamente deixa de lado as discussões acerca do mérito das doutrinas "abrangentes" causadoras de controvérsias. Essas doutrinas tomam como parâmetro verdades absolutas sobre questões de caráter universal, sob um prisma de inamobilidade, jamais podendo ser tomadas como alicerce, pois caso fossem concretizadas violariam os direitos das pessoas numa sociedade em que vigora uma concepção política de justiça, num Estado Democrático. Por isso, Rawls é extremamente pragmático, neste aspecto. Deixa implícito, na sua teoria da justiça, um ordenamento jurídico que é formulado em torno de princípios que têm a meta de garantir a todos os bens básicos, segundo deliberações numa "posição original".

            Na "posição original", só devem ser discutidas questões concernentes à "estrutura básica" da sociedade. Quer dizer, uma concepção política de justiça discute, em termos de "estrutura básica", como se constitui e como se opera a infra-estrutura que garanta a todos o acesso igual a um sistema amplo de liberdades, assim como a distribuição justa de bens.

            Mas o que é a "estrutura básica" da teoria de John Rawls? Samuel Freeman, um dos estudiosos mais destacados de Rawls, responde: "‘Estrutura básica’ é um sistema interconexo de regras e práticas que definem a Constituição política, os procedimentos legais e o sistema de julgamentos, o instituto da propriedade, as Leis e as convenções que regulam o mercado e a produção econômica e trocas (comércio), e a instituição da família (no âmbito da teoria ideal)". [66]

            3.1.1 Político, não metafísico

            A obra de John Rawls tem suscitado simultaneamente admiração, de um lado, e críticas, do outro, ao defender que a justiça deve ser considerada de um ponto de vista político, não metafísico. O objeto da justiça é a estrutura básica da sociedade, e não os fundamentos metafísicos de felicidade ou de bem, como na pólis de Aristóteles, algo intangível de ser obtido diante do atual paradigma de pluralidade ideológica, política e religiosa. Sua ética-política, calcada na justiça distributiva, procura amenizar desigualdade social através da formulação de instituições justas. Essa teoria, por essas considerações com a dignidade da pessoa humana, atrai atenções de pensadores do mundo todo, inclusive no Brasil. "Aqui a desigualdade de renda de certo modo determina todas as demais desigualdades." [67] Sobre o caráter social da teoria de Rawls, Sônia Felipe complementa: "Rawls afirma reiteradamente que seu modelo de justiça vem aprimorar as instituições das sociedades minimamente igualitárias, não servindo, sozinho, para revolucionar as instituições das sociedades desiguais e hierárquicas. Isso pressupõe uma vontade política de distribuir com eqüidade todos os bens distribuídos." [68]

            3.1.2 Direita e esquerda, liberalismo e socialismo

            O debate entre esquerda e direita parece encontrar em John Rawls um novo ponto, pois o autor redimensiona a questão da supremacia da igualdade ou da liberdade com o prisma da justiça como eqüidade, como sugere Thomas Nagel:

            "Em resumo, o que Rawls fez foi combinar princípios muito fortes de igualdade social e econômica, associados com o socialismo europeu, com a igualdade de princípios fortes de tolerância pluralística e liberdade pessoal, associados com o liberalismo americano. Ele o fez numa teoria que remonta ambos a uma fundação em comum. O resultado é mais similar, em espírito, à social democracia européia que qualquer movimento político americano em voga (...) O liberalismo de Rawls é a mais completa realização (teórica) que nós temos, até agora, de uma concepção de justiça de uma sociedade, tomada como um todo, na qual as instituições que fazem parte da ‘estrutura básica’ da sociedade são firmadas, e avaliadas, por padrões em comum." [69]

            No mesmo sentido de Nagel, Amy Gutmann entende que John Rawls aproxima o criticismo socialista e a teoria liberal, principalmente pelo fato de "Uma teoria da justiça" não oferecer qualquer tipo de radicalização filosófica em prol de uma classe, ou grupo, dominante. Seus comentários sobre os princípios rawlsianos da justiça, e suas relações com o socialismo e liberalismo, consistem no seguinte:

            "Este é um liberalismo para os menos favorecidos, é um liberalismo que paga um tributo moral para a crítica socialista. O ‘princípio da diferença’ previne os pobres de falirem (mesmo que dentro de uma ‘margem de segurança’) desde que seja possível aumentar suas expectativas na vida. Nada que diminua a garantia das suas expectativas na vida, que sejam praticáveis, satisfará as demandas rawlsianas. De maneira similar, a ‘igualdade eqüitativa de oportunidades’ vai muito além do ideal liberal das carreiras abertas a talentos. Isso também requer educação compensatória e limites nas desigualdades econômicas que em todos os setores da sociedade devem ser, aproximadamente, prospectos iguais de cultura e conquista para todos similarmente motivados e com dotes naturais similares.

            Os liberais podem ‘suportar’ as implicações relativas à igualdade econômica da teoria porque o primeiro princípio (o cerne liberal da teoria de Rawls) rejeita a eqüalização que acarrete em prejuízos às liberdades básicas de qualquer cidadão. A renda dos menos favorecidos, por exemplo, pode não ser maximizada se ocasionar a negação da liberdade de associação de profissionais ou a liberdade de fala para os neoconservadores, por exemplo. Os socialistas podem, constantemente, ‘suportar’ o liberalismo do primeiro princípio porque o segundo princípio (o cerne socialista da justiça rawlsiana) proporciona liberdades que vão além de meras formalidades para os menos favorecidos." [70]

            3.1.3 Discussões sobre a realidade

            Se, em Kelsen, a divisão entre justiça e Direito eram extremamente rígidas, podemos ver que Rawls inaugura uma nova concepção de justiça, ainda que ancorada no Direito. Rawls inclui o diálogo, e o confronto democrático de idéias na sua teoria da justiça. Em resumo, Rawls defende que o Direito, apesar de não se dever apegar a fundamentos metafísicos (religiosos, ideológicos, entre outros), não pode ser injusto.

            Rawls, portanto, quebra o estigma da rigidez da ordem jurídica proposta por Kelsen, porque ao sugerir princípios da justiça como fundamentos de uma sociedade bem ordenada, praticamente impõe a construção de um novo ordenamento jurídico, que seja efetivamente justo e não apenas formal e distante da realidade cotidiana do ser humano. "Assim, firma-se um importante ponto de partida para entendimento da doutrina de Rawls: a justiça deve ser discussão sobre a realidade, e não sobre um ordenamento jurídico, consuetudinário ou positivo. Mas cuida-se – vale frisar – de perquirir não só o pacto realisticamente posto, e sim também a validade universal (caráter absoluto) do seu conteúdo." [71]

            3.2 Os princípios da justiça como norma fundamental

            A teoria da justiça como eqüidade, de John Rawls, foi elaborada para uma sociedade democrática, tendo como objeto a "estrutura básica" da mesma. É também uma forma de liberalismo político que tenta conciliar – ou melhor, articular – uma família de valores morais significativos cujas características são aplicáveis às instituições políticas e sociais da "estrutura básica". Já podemos dizer que a teoria da justiça como eqüidade deve primar por princípios que atendam os anseios de uma sociedade democrática, calcada um regime constitucional, em que as principais instituições sociais e políticas combinam-se como um único sistema de cooperação social. Para Thomas W. Pogge, Rawls reitera, inúmeras vezes, que sua concepção de justiça é um guia para o curso das mudanças sociais e que a figura crucial para habilitar essas mudanças é a ordenação serial dos dois princípios da justiça. [72]

            Conforme o liberalismo político de Rawls, a concepção de justiça deve ser política, não metafísica. Isso significa dizer, de acordo com Rawls, que: "o poder político somente é legitimado quando é exercido de acordo com os elementos de uma Constituição (escrita ou não-escrita) que todos os cidadãos, como razoáveis e racionais, possam acatar e defender à luz da sua razão humana comum." [73]

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            Quando o poder político estiver legitimado e for exercido diante de uma Constituição aceita por cidadãos livres (racionais e razoáveis), em pleno uso das faculdades da razão humana comum, estaremos fazendo frente ao princípio liberal da legitimação. Todas as questões legislativas, desta forma, referentes ou tangenciais aos elementos constitucionais, ou altamente conflitantes, devem ser firmadas – na medida do possível – por diretrizes e valores que possam ser endossados de maneira semelhante.

            3.2.1 Questões de justiça básica

            Os elementos constitucionais e as questões básicas da justiça devem ser atrelados somente a princípios e valores que cada um dos cidadãos possa, racional e razoavelmente, aceitar como membro de uma sociedade política entrelaçada por um sistema eqüitativo de cooperação social. Obviamente, em praticamente todas sociedades contemporâneas, esbarramos com o problema das desigualdades econômicas e sociais, que devem sujeitar-se à profunda análise como objeto de uma preocupação a ser eliminada, ou se for impossível, amenizada, de modo a não permitir a perpetuação de desigualdades. Podemos encontrar exemplos sobre o que Rawls entende por elementos constitucionais em seus próprios textos, como este que se segue:

            "(1) os princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do governo e do processo político; os poderes do legislativo, do executivo e do judiciário; os limites da regra da maioria; e

            (2) liberdades e direitos básicos iguais dos cidadãos que a maioria legislativa deve respeitar, tal como o direito de votar e de participar da política, liberdade de pensamento e de associação, liberdade de consciência, como a preservação do Estado de Direito." [74]

            Com base nesta declaração, podemos dizer que, antes de encontrar o princípio para regular as desigualdades, há de se considerar prioritariamente as convicções sobre liberdades de direitos básicos iguais, o valor eqüitativo das liberdades políticas e a igualdade eqüitativa de oportunidades.

            Nas palavras de Rawls, primeiro é necessário usar nossas convicções mais firmes sobre a natureza da sociedade democrática como um sistema eqüitativo de cooperação social entre cidadãos livres e iguais, como fora modelado na "posição original", para, só assim, poder verificar quais combinações das proposições daquelas expressões que podem ser combinadas para identificar um princípio distributivo adequado para a "estrutura básica" com suas diferenças sociais e econômicas nos projetos de vida dos cidadãos. [75]

            3.2.2 Os princípios da justiça e a Constituição

            Para melhor entendimento e interconexão com os elementos constitucionais, exporemos os princípios da justiça descritos por Rawls em "Justice as fairness: a restatement", no capítulo "Principles of justice", que, como podemos verificar, possuem uma redação e uma disposição um pouco mais sofisticada daquela o autor enunciou em seus primeiros escritos, mormente em "Uma teoria da justiça":

            "(a) Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável ao mais plenamente adequado esquema de liberdades básicas iguais, desde que seja compatível com o mesmo esquema das mesmas liberdades para todos; e

            (b) As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, elas devem estar vinculadas (attached) a cargos e posições acessíveis para todos, sob condições de igualdade eqüitativa de oportunidades, e, segundo, devem primar pelo máximo benefício daqueles membros da sociedade que são os menos favorecidos (princípio da diferença)." [76]

            O primeiro princípio tem prioridade lexical sobre o segundo princípio. No segundo princípio, o princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades deve ser considerado antes do princípio da diferença. Na opinião de Thomas W. Pogge, uma maneira de ver a bipartição dos princípios da justiça de Rawls é encarar a distinção entre liberdades e direitos básicos e benefícios econômicos e sociais. O primeiro princípio teria a função primordial de proibir desigualdades econômicas e sociais radicais, presumindo que as provisões sócio-econômicas são parte integrante do primeiro princípio, constituindo-se em requerimento essencial para que os valores eqüitativos das liberdades políticas sejam protegidos. [77] Falaremos sobre isto mais adiante, com maiores desdobramentos, incluindo idéias de outros teóricos como Luiz Paulo Rouanet, Eduardo Matarazzo Suplicy, Thomaz Pogge e Álvaro de Vita, entre outros. Vejamos como Thomas Nagel caracteriza os dois princípios da justiça:

            "Notemos que o primeiro princípio é um princípio de igualdade estrita, e o segundo é um princípio de desigualdade permissível. O primeiro princípio se aplica mormente às estruturas constitucionais e às garantias dos sistemas político e legal, e o segundo à operação dos sistemas social e econômico, particularmente com relação à maneira que elas podem ser afetadas por políticas tributárias (tax policies) e várias interferências relacionadas à previdência social, ao emprego, à compensação de desabilidades funcionais (disability compensation), aos cuidados com as crianças, à educação, à assistência médica, entre outros." [78]

            3.2.3 Prioridade lexical do primeiro princípio da justiça

            Com isso, podemos dizer que o primeiro princípio, por conter elementos constitucionais e as garantias dos sistemas político e legal, deve ter prioridade sobre o segundo princípio, que diz respeito às operações dos sistemas sociais e econômicos, tal como estas podem ser afetadas pelas políticas tributárias e outros assuntos, como a seguridade social, o emprego, o atendimento aos portadores de necessidades especiais, auxílio maternidade, educação, saúde, por exemplo. Com relação à prioridade lexical do primeiro princípio da justiça sobre o segundo princípio da justiça, e a prioridade do princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades sobre o princípio da diferença, Álvaro de Vita explica:

            "Essa disposição serial pode ser interpretada da seguinte forma. Ao comparar diferentes arranjos institucionais da ótica da justiça, devemos primeiro selecionar aqueles em que as liberdades civis e políticas encontram-se adequadamente protegidas (prioridade do primeiro princípio) e em que as instituições e políticas de promoção da igualdade socioeconômica não exigem, por exemplo, a conscrição ao trabalho (prioridade da primeira parte do segundo princípio); em seguida, selecionamos aquele arranjo institucional no qual a distribuição de ‘bens primários’ é igualitária (ou mais igualitária) de acordo com o critério estabelecido pelo princípio da diferença." (Vita, 2000, p. 212)

            Os princípios da justiça, na teoria rawlsiana, são escolhidos numa lista oferecida às partes, na "posição original", assevera o próprio Rawls. Uma lista de liberdades básicas iguais, abrangidas pelo primeiro princípio da justiça, deve conter: "liberdade de pensamento e liberdade de consciência, liberdades políticas (por exemplo, o direito de votar e participar da política) e liberdade de associação, como os direitos e liberdades especificados pela liberdade e integridade (física e psicológica) das pessoas; e finalmente, os direitos e liberdades cobertos pelo Estado de Direito." [79]

            3.3 As liberdades básicas

            A liberdade, diz Rawls, é o valor proeminente e, talvez, o principal, senão o maior fim da política e da justiça social. Na história do pensamento democrático, sempre se enfatizou a conquista de certas e específicas liberdades e direitos consolidados e assegurados constitucionalmente, como podemos ver, por exemplo, numa carta de direitos e declaração dos direitos do homem. A justiça como eqüidade segue esta visão, afirma Rawls. Essa lista de liberdades básicas pode ser esboçada de duas maneiras: a-) histórica – os regimes democráticos com uma lista de direitos e liberdades básicas parecem ser mais estáveis e seguros, sendo historicamente os melhores sucedidos; b-) analítica – são consideradas as liberdades que providenciam as condições políticas e sociais essenciais para o adequado desenvolvimento e total exercício dos dois poderes morais de pessoas livres e iguais. [80]

            Cabe-nos falar de prioridade lexical do primeiro princípio da justiça, argumenta Álvaro de Vita, quando estivermos no âmbito da "teoria ideal" de Rawls, na qual se pressupõe que ambos princípios da justiça são aplicados, de forma pelo menos aproximada, pela "estrutura básica" da sociedade política, contando, ainda, com "obediência estrita", quer dizer, todos cidadãos aceitam e seguem os princípios reconhecidos publicamente.

            Caso persistam injustiças nas instituições sociais ou na conduta dos cidadãos, estaremos no campo da "teoria não-ideal" e da "obediência parcial". [81] A prioridade lexical do primeiro princípio também pode ser justificada pelo argumento de que as liberdades básicas, abrangidas pelo mesmo, são fundamentais para a persecução de variadas concepções de bem e essenciais para o exercício e desenvolvimento dos dois poderes morais, que definem a concepção política de pessoa, nos moldes do construtivismo político de Rawls. [82]

            3.3.1 Necessidades básicas e mínimo social

            Álvaro de Vita abre outro ponto de discussão sobre a prioridade lexical. Para ele, só poderíamos falar da mesma, uma vez satisfeitas as necessidades básicas dos cidadãos membros da sociedade política. Uma lista simples de necessidades básicas poderia ser exemplificada pelo seguinte: "garantia da integridade física, de nutrição adequada, do acesso à água potável, ao saneamento básico, ao atendimento médico e à educação". [83] Como serão satisfeitas essas necessidades básicas? Para Luiz Paulo Rouanet, a resposta está na adoção de um projeto de renda básica: "(...) o projeto de renda básica é compatível com a teoria da justiça como eqüidade. Como vimos, também, que na sociedade brasileira, ao se falar de igualdade, a igualdade de renda tem prioridade, o projeto de renda básica atua justamente sobre esse ponto. Se implementado tira a todos, pelo menos, da faixa de indigência. Para apresentar rapidamente o que está envolvido na noção de renda básica, digamos que se trata de uma renda para todos, quer sejam ricos, quer sejam pobres, estejam ou não empregados." [84]

            John Rawls considera que o mínimo social, para prover as necessidades básicas de todos os cidadãos, é um elemento constitucional. Neste mesmo sentido, Thomas W. Pogge sugere que sejam inclusas no primeiro princípio as provisões econômico-sociais. Cremos que isto seja fundamental para que a teoria da justiça de Rawls não seja mais uma abstração acadêmica, utópica, sem nexo com o mundo real. Pedimos licença para inserir um texto do filósofo da ciência Karl Popper, que, surpreendentemente, parece ter algumas idéias compatíveis com os autores tratados:

            "Não procures tornar feliz a humanidade recorrendo a meios políticos. Em vez disso, luta pela eliminação de inconvenientes concretos. Ou, exprimindo duma forma mais prática: luta pela supressão da pobreza por meios diretos – por exemplo, através da garantia de um rendimento mínimo para cada pessoa. Ou luta contra as epidemias e as doenças por meio da construção de hospitais e estabelecimentos médicos de ensino. Luta contra a ignorância da mesma forma que lutas contra o crime. Mas faz tudo isso por meios diretos. Decide o que consideras como os piores males da sociedade em que vives e procura convencer pacientemente as pessoas que podemos solucionar e como podemos fazer.

            Mas não tentes realizar estes objetivos indiretamente através de planos e preparativos de um ideal distante, uma sociedade perfeita. Por mais obrigado que te possas sentir à visão inspiradora deste ideal, não creias ser teu dever cuidar da sua realização, ou que é a tua missão abrir os olhos aos outros para a sua beleza. Não autorizes os sonhos de um mundo maravilhosamente belo a afastarem-te das necessidades reais dos homens que sofrem hoje, entre nós. Os nossos companheiros têm direito à nossa ajuda, nenhuma geração deve ser sacrificada em favor de gerações futuras, em favor de um ideal que talvez não seja atingido. Em resumo: a minha proposta é que o sofrimento que se puder evitar deve ser considerado como o problema mais premente da política pública racional, enquanto que a promoção da felicidade não deve tornar-se um problema político: a busca da felicidade deve ser deixada à iniciativa privada." (Popper, 1994, p. 9, grifo nosso)

            3.3.2 Reconstrução do ordenamento jurídico

            Ambos princípios da justiça se aplicam à "estrutura básica" da sociedade. Porém, o primeiro princípio da justiça também se aplica integralmente àquilo que chamamos de Constituição, a norma magna de uma ordem jurídica. Constituição pressupõe a idéia de sujeição e limitação a seus termos, inclusive da mais graduada autoridade política de um país, segundo a forma e a força da Lei. É ainda a Lei fundamental de uma nação, contra a qual não podem subsistir outros atos, opiniões ou decisões. [85]

            Em "Uma teoria da justiça", Capítulo IV – "Liberdade igual", Rawls escreve que certas liberdades – as políticas e de pensamento e associação – devem ser garantidas por uma Constituição. Por sua vez, a Constituição deriva de um poder constituinte, que é institucionalizado na forma de um regime, sendo um poder superior, distinto do poder ordinário, que confere, entre outros, o direito de votar e concorrer a um cargo eletivo, a garantia a uma carta de direitos básicos e procedimentos para emendar a própria Constituição.

            Frank I. Michelman considera que Rawls, em sua teoria da justiça como eqüidade, pretende reconstruir racionalmente a tradição constitucional democrática, no intuito de resolver problemas crônicos e desacordos internos existentes na própria tradição democrática. De um lado uma reconstrução válida poderia ter um início estritamente procedimentalista, que culminaria numa concepção política que acolheria a "situação ideal de fala" de Habermas. Por outro lado, a reconstrução poderia ser iniciada a partir de uma dimensão substantiva de eqüidade, como propõe Rawls, de acordo com Michelman, cuja linha de raciocínio, sugerida por este, expomos a seguir:

            "(1) Uma concepção política de justiça (em oposição a uma visão sectária ou filosoficamente compreensiva) para a ‘estrutura básica’ de uma sociedade democrática é trabalhada desde idéias fundamentais que possam razoavelmente ‘ser vistas’ como se fossem planejadas a partir da cultura de tal sociedade. (2) A concepção política da justiça como eqüidade, em particular, foi construída a partir de um conjunto particular de idéias fundamentais extraídas da cultura pública de um Estado democrático. Entretanto, (3) há outras concepções de justiça constitucionais e democráticas que podem ser defendidas, cada qual, talvez, correspondente a um diferente ‘aspecto’ da sociedade democrática, um diferente conjunto de idéias fundamentais, como ponto de partida, que leva a uma conclusão diferente sobre exatamente qual ‘concepção política’ – qual conjunto ou ideais servirão para avaliar o conjunto de elementos constitucionais para uma sociedade democrática (segundo o ordenamento dos dois princípios da justiça como eqüidade) – uma pessoa razoável possa acatar. Daí, então, (4) a falha, ou dificuldade, que as democracias constitucionais têm em definir questões de certo (constitucional) ou errado (inconstitucional) em matéria constitucional pode ser o reflexo de uma certa pluralidade de concepções políticas, sendo que todas podem ser defendidas, se em competição umas com as outras, porque todas são reconstruções de uma visão mais abstrata e compartilhada de sociedade democrática." [86]

            Os princípios da justiça são adotados numa seqüência de quatro estágios. No primeiro, na "posição original", as partes escolhem os princípios da justiça com o conhecimento limitado pelo "véu da ignorância", que, nas etapas seguintes, é progressivamente dissipado. No segundo estágio, o da assembléia constituinte, é aplicado o primeiro princípio, pois é aqui que os elementos constitucionais são assegurados e já se tem uma certa noção, em face da Constituição, de como os arranjos políticos podem ser realizados, na prática. O terceiro estágio, o legislativo, é aquele em que se elaboram as Leis, segundo o que a Constituição permite. É neste estágio que se aplica o segundo princípio, que resvalará, igualmente, em toda legislação social e econômica, e em vários assuntos neste sentido. O último estágio, finalmente, é aquele em que as regras são aplicadas pelos legisladores e interpretadas pelo Poder Judiciário.

            Temos agora certeza que o primeiro princípio da justiça abrange os elementos constitucionais. E quanto ao segundo princípio da justiça? John Rawls responde. No segundo princípio da justiça, requer-se igualdade eqüitativa de oportunidades e que as desigualdades sociais e econômicas sejam regidas pelo princípio da diferença. Alguns tipos de princípios de oportunidade perfazem elementos constitucionais, como nas doutrinas do século XVIII, em que, numa sociedade aberta, as carreiras deveriam estar abertas a talentos. Mas isso é apenas formal. E a igualdade eqüitativa de oportunidades exige muito mais do que isso, então, não pode ser concebida como um elemento constitucional. [87] Talvez, possamos conceber o princípio da diferença como complementar ao primeiro princípio, já que aquele não se encontra resguardado nos elementos constitucionais, mas abaixo deles, nas legislações infraconstitucionais.

            3.3.3 Direitos e liberdades possíveis e implementados

            Rawls está preocupado em prover um mínimo social para que as liberdades básicas se efetivem e não sejam meramente formais. Sem o mínimo social, as pessoas não teriam como desenvolver os seus poderes morais, nem teriam possibilidade de estarem plenamente inseridas na sociedade política como seres livres e iguais. A justiça como eqüidade, como já vimos, não parte de premissas metafísicas, mas de um plano que pode ser realizado, com uma noção muito forte do que é a realidade social tal como ela se apresenta, embora não seja uma teoria social.

            A política, em Rawls, não tem como objetivo a felicidade dos indivíduos, calcada num télos, que poderia ferir mortalmente o princípio liberal da tolerância e o fato do pluralismo das sociedades contemporâneas. Apenas é necessário preencher os vazios e dar vazão a ações que satisfaçam a dignidade humana, pelo menos com a provisão de um rendimento mínimo, ou o mínimo social a ser institucionalizado como elemento constitucional, como o quer Rawls.

            Na visão de Pogge, a estratégia de se conceber o primeiro princípio da justiça, com o mínimo social inserto, é a melhor porque evidencia que necessidades econômicas e sociais devem estar vinculadas, ou, quando muito, estipuladas a par dos interesses de ordem suprema. Apesar das diferenças interpessoais, as necessidades sociais e econômicas se tornam mais plausíveis quando o montante relevante dos benefícios econômicos e sociais é definido de modo abstrato em termos de "bens primários", como renda ou benefícios (arroz, etc.).

            Mas, daí, assevera Pogge, o primeiro princípio deve sustentar um arcabouço institucional que se possa assegurar, se possível, uma garantia a todos os cidadãos de participar, em quantidade suficiente, dos bens sócio-econômicos para saciar as necessidades sociais e econômicas básicas de um ser humano normal, de um sistema social. [88] Quais seriam esses bens, como seria esse mínimo social? Embora existam divergências, é claro, entre diversos autores e, mesmo, nas discussões rotineiras, devemos levar em conta que as necessidades sociais e econômicas básicas comuns são consideradas dentro de um sistema social.

            "Quando as pessoas normais diferem, este mínimo – o mesmo para todos – é definido como aquilo que é suficiente para as necessidades maiores (dentro das condições normais). Eu me refiro às necessidades sociais e econômicas básicas, assim definidas, como os padrões de necessidades sociais e econômicas básicas de um sistema social. Podemos definir grande parte destes padrões de necessidades sociais e econômicas básicas sem maiores problemas. Seres humanos necessitam comer e beber, de roupas e de abrigo, de alguma interação incluindo educação e assistência (na infância e na velhice, por exemplo). Portanto, é racional que, em nome dos seus interesses, se requeira um esquema institucional que assegure aos participantes a satisfação dessas necessidades. Em sociedades mais tradicionais, este requerimento pode ser melhor satisfeito por meio da família solidária ou por estruturas de assistência em forma de um tipo de ‘caridade organizada’. Nas sociedades modernas, os direitos legais efetivos devem ser presumivelmente necessários, mas essa necessidade parece ser um último recurso. As necessidades sociais e econômicas básicas podem ser satisfeitas sem um sistema de bem-estar (welfare system) bem elaborado ou com ajuda governamental, se as instituições econômicas minimizarem o desemprego, por exemplo, e incluírem provisões adequadas de seguros para vários tipos de contingências e, também, provisões para a aposentadoria." [89]

            Podemos interpretar que Eduardo Matarazzo Suplicy [90], de certo modo, tem algumas convergências com Pogge, principalmente, no que diz respeito às provisões econômico-sociais, em prol dos que estão em pior situação: "Pode-se criar um sistema pelo qual se recolha mais dos que mais têm, a fim de então se assegurar a todos o suficiente para viver com dignidade. Dessa maneira, uma garantia de renda mínima a todas as pessoas procura atender aos dois princípios definidos por Aristóteles: a justiça distributiva deve tratar desigualmente aos desiguais para torná-los iguais; e a justiça política, tratar igualmente a todos, depois que a justiça distributiva as igualizou." [91]

            Nosso posicionamento é o seguinte. Na interpretação de Pogge, do primeiro princípio de Rawls, se faz necessária a implementação do mínimo social, antes mesmo de se requerer a aplicação do segundo princípio da justiça, que, devido a seu caráter complementar, viria apenas a aparar as arestas do sistema social e econômico e balizá-lo de forma a reforçar o primeiro princípio da justiça. Pois então, vejamos:

            "Alguém pode sustentar que o primeiro princípio do tipo ‘mínimo social’ é uma condição institucional necessária para que tenham alguma significação as liberdades e direitos básicos associados com a liberdade e a integridade da pessoa, as liberdades políticas básicas, e o Estado de Direito. Quando as pessoas não conseguem adquirir alimentos ou habitação, ou quando têm acesso restrito à educação ou à assistência social básica, eles ainda podem ter os direitos de titularidade de propriedade privada ou a concorrer a cargos públicos eletivos (liberdade legal efetiva: effective legal freedom), mas elas mal podem começar a desfrutar ou a exercer plenamente esses direitos básicos (liberdade válida, digna, que vale a pena: worthwhile freedom). Para eles, o resultado pode ser que a integridade da pessoa seja protegida contra a violência e até mesmo contra colapsos pela privação de alimentos e habitação. Para a sociedade, em geral, a falta dessas proteções pode significar que um segmento da população não pode participar plenamente do sistema legal, do processo político e da vida associativa." [92]

            Essa leitura de Rawls, por Pogge, é o outro aspecto fundamental se formos encarar a justiça além do discurso jurídico, como prenunciamos ao final do tópico anterior desta dissertação. Não é o bastante instituir os elementos constitucionais contidos no primeiro princípio da justiça se não houver condições mínimas de existência para os cidadãos, como seres humanos dignos e participantes de uma sociedade constitucional contemporânea.

            O primeiro princípio da justiça, na acepção de Sônia Felipe, assume proporções praticamente revolucionárias já que estabelece liberdade igual para todos, no âmbito das instituições econômicas: "a qualificação de cada cidadão para que possa escolher de acordo com sua vontade e habilidades naturais, a profissão ou profissões que quer desempenhar como contribuição à sociedade e ao seu pleno desenvolvimento como sujeito representativo, na totalidade da produção e da cooperação que assegura a manutenção da vida social." [93]

            Num comentário, Álvaro de Vita demonstra que, em Rawls, há uma distinção entre as liberdades fundamentais e o "valor" dessas mesmas liberdades fundamentais. Essa diferenciação é importante para notarmos que Rawls não está meramente adstrito às liberdades formais, mas, sim, com uma concepção de liberdade que seja efetiva (positiva). O importante, em termos de justiça social, é o que as pessoas conseguem fazer com seus direitos e liberdades. Não é somente uma questão de tê-los, mas de saber usá-los:

            "Em uma sociedade liberal justa, as liberdades fundamentais são iguais para todos – elas definem uma estrutura institucional que garante os mesmos direitos, isenções, prerrogativas e oportunidades para todos. A pobreza e a ignorância incapacitam uma pessoa de se valer desses direitos e oportunidades que lhes são institucionalmente garantidos. E, como Rawls admite, mesmo em uma sociedade bem ordenada os que têm mais renda e riqueza estarão sempre mais bem posicionados para tirar proveito desses recursos institucionais." (Vita, 2000, p. 216, grifo nosso)

Sobre o autor
Roger Moko Yabiku

Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Professor do CEUNSP e da Faculdade de São Roque - UNIESP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. Os princípios do direito público e o Estado:: a dialética dos interesses públicos e dos interesses privados na teoria da justiça de John Rawls e na teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 742, 16 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7010. Acesso em: 23 dez. 2024.

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