O caráter fragmentário do direito penal parte da concepção de que a intervenção penal é descontínua, limitada; propõe-se a proteger apenas parcela dos interesses jurídicos tutelados nos exatos termos da delimitação legal dos tipos legais de crime. Não se atribui ao direito penal o encargo de proteção jurídica plena, mas apenas parcial. Sua função é subsidiária e complementar aos demais ramos do ordenamento jurídico. A ultima ratio, no dizer de Welzel. É fenômeno da modernidade, face ao avanço tecnológico, a incriminação de condutas cujo limiar entre o lícito e o ilícito é tênue. Algumas condutas criminalizadas, em sua naturalidade, são ações permitidas, revestidas de juridicidade e até incentivadas pelo Direito. Esses tipos delitivos exigem do intérprete um maior rigor exegético, pois uma interpretação excessivamente extensiva, além de abrir espaço para decisões personalistas, incorre no risco de se impor obstáculos às relações econômicas e à livre circulação de capitais.
O crime de lavagem de dinheiro, definido na Lei 9.613/98, com alterações da lei 12.683/2012, descreve a ação de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
A lei 12.683/12 aboliu o rol taxativo de crimes antecedentes, fontes de geração dos valores ocultados ou dissimulados. A revogação ampliou a abrangência do tipo penal que passou a considerar crime a ocultação ou dissimulação de valores provenientes de qualquer atividade criminosa. A estrutura do tipo manteve, no entanto, a necessidade de se identificar o crime antecedente.
A lavagem de dinheiro, como a receptação, é crime acessório, ou, no dizer de Bitencourt, parasitário. Ambos são marcados pela consequencialidade. O elemento direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal, deve estar materialmente comprovada sob pena de ofensa à legalidade. Em outros termos, a origem criminosa dos valores ocultados ou dissimulados deve ser objeto de prova, não podendo o juiz presumir o fato. Embora algumas decisões judiciais afirmem dispensar a prova direta do crime antecedente, não há dúvidas - por imperiosa questão de adequação legal – ser necessária a certeza de que o dinheiro tenha de fato procedência criminosa, ou seja, ausência de dúvidas sobre a origem delitiva dos valores.
Por outro lado, importante lembrar que proveniente de infração penal não é a mesma coisa que origem ilícita. Ilicitude é a contradição do ato ao ordenamento jurídico. As proibições em geral, regulamentadas pelos diversos setores do Direito, são ilícitas para todo o sistema normativo. Ilícito penal, por sua vez, é a conduta proibida pela norma penal incriminadora, sem permissivo em nenhuma outra norma. A porta de entrada para o ilícito penal é a tipicidade, ou seja, só é ilícito penal o que for típico, da mesma forma que um ilícito jurídico, quando não encontrar conformação em tipo legal de crime, será necessariamente atípico.
Atendo-se aos limites da tipicidade, quando a lei delimita a imputação nas circunstâncias de serem os valores provenientes de infração penal (crime ou contravenção), a norma somente autoriza a incriminação quando verificado materialmente que os valores de fato provieram de injustos penais, ou seja, de fatos típicos e ilícitos. Não se permite a imputação ao argumento de que se trata de dinheiro proveniente de ato ilícito, unicamente, quando não se tem determinado a natureza desse ilícito, posto que a aferição da realidade criminal é essencialmente empírica, retrocognitiva e baseada na experiência do real, dialeticamente composta.
Na casuística, imputações têm sido encaminhadas ao judiciário sob a narrativa de que haveria o recebimento de valores decorrentes de contratos de prestação de serviços, tudo nos moldes legais, mas que acobertariam atividades ilícitas, sem no entanto descrever objetivamente o tipo e a natureza do ilícito antecedente e a relação de causalidade entre as negociações e a suposta atividade criminosa. Nesse caso, a incursão sobre os elementos motivadores do contrato, uma vez devidamente demonstrado o caminho do dinheiro, permitindo aos órgãos controladores o correto rastreamento, constitui fato atípico e sua incriminação configura desarrazoada intervenção nas relações privadas e no direito de contratar.
Para uma conformação à estrita legalidade, o objeto da atividade probatória deve ser a origem dos valores, se provém ou não de infração penal, requisito que não estará satisfeito se for de procedência não criminosa, ou seja, atípica. O perigo das interpretações extensivas, estranhas aos limites da tipicidade, está nas intervenções penais indevidas, moralmente constrangedoras e juridicamente abusivas. Cabe ao Poder Judiciário resgatar o princípio da estrita legalidade na interpretação e aplicação das normas penais.
Referências:
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro, Aspectos Penais e Processuais Penais. Ed. RT. São Paulo 2016, 2ª edição.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Volume 1 Parte Geral. Ed. Saraiva. São Paulo 2017, 23ª edição.
CALEGARI, André Luis; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. Ed. Atlas. São Paulo 2017, 2ª edição.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. Ed. Saraiva. São Paulo 1996, 2ª edição.