O tema relativo às cooperativas de trabalho tem despertado o interesse dos juristas, que levantam questões fundamentais capazes de revelar a fraude que existe por trás da contratação de empregados por meio de interposta pessoa. Entretanto, quando essa realidade se traduz em uma situação concreta, o problema por vezes é enfrentado com certo descaso. Tenho verificado despreocupação com o resultado prático e com a repercussão social de uma sentença que verse relação de trabalho perpetrada por intermédio de uma cooperativa de prestação de serviços.
Quando nós, Juízes do Trabalho, estamos diante de um processo em que um trabalhador reclama vínculo de emprego por haver sido contratado sob o manto de uma cooperativa, o exame da situação fática não pode se restringir à análise superficial de documentos que sabemos haver sido previamente confeccionados e assinados quando da assunção ao posto de trabalho. Não é mais possível, diante dos princípios que orientam nosso Estado Democrático de Direito e presente o compromisso social da Justiça do Trabalho, examinar situações tais com olhos voltados apenas para as formalidades exigidas no texto de Lei. É preciso perseguir o que de real há por trás dos papéis, dos estatutos e das fórmulas.
Esse rápido ensaio pretende apenas alertar para a necessidade de que os Juízes do Trabalho retomem seu papel de garantidores dos direitos sociais arduamente conquistados pelos trabalhadores brasileiros, e não sirvam – com os mesmos olhos vendados da deusa Thêmis - aos mecanismos de precarização e supressão de direitos fundamentais mínimos.
Tenho examinado os processos que chegam para a instrução, envolvendo trabalho prestado por "cooperativados". Até hoje não houve um único feito em que a instrução processual tenha indicado resultado diverso: em todas as demandas, a situação fática revela a existência de um trabalhador que coloca a sua mão-de-obra à disposição da cooperativa ou de terceiro com quem ela mantém contrato de prestação de serviços, em troca de um valor fixo por mês.
Esse trabalhador se submete a controle de horário, obedece ordens e tem descontados os dias em que porventura faltar ao serviço. É contratado na sede da tomadora dos serviços e lá realiza suas atividades, sendo, via de regra, sujeito às ordens dos empregados que lá trabalham. Muitas vezes, a investigação dos fatos revela pessoas laborando, na condição de ‘cooperativadas’, ao lado de outras que, embora exerçam exatamente a mesma atividade, detêm a condição de empregadas.
O mais interessante é que essa situação fática não é negada pelos representantes das cooperativas ou das tomadoras dos serviços. Embora tenham incorporado a idéia de que a denominação "cooperativa" tem o poder mágico de eximir os empregadores reais de qualquer responsabilidade sobre o trabalhador que contratam, essas pessoas costumam revelar a realidade da relação que se estabelece sob o manto de pretensa cooperativa. Alguns exemplos de declarações prestadas por prepostos demonstram verdadeiro escárnio com a legislação trabalhista. Em algum momento da recente história de fragilização dos direitos trabalhistas perdeu-se a mais elementar noção dos princípios que regem o direito do trabalho, dos fundamentos que justificam a sua existência.
Assim é que tais prepostos não têm pejo em revelar a existência de "paleteadores-empregados" e "paleteadores-cooperativados", pessoas que exercem a mesma atividade, mas são (des) protegidos de modo diferente. Ou de "cooperativados-operadores" e "cooperativados-associados". Essa última distinção se refere aos cooperados "recrutados" junto aos postos de trabalho, para a prestação de serviços, então classificados como "cooperativados-operadores", e aqueles que são somente associados, ou sejam, não prestam serviços, mas apenas auferem as vantagens decorrentes dos contratos de prestação de serviços que firmam. A prova oral costuma revelar, também, que os trabalhadores são recrutados no próprio local de trabalho, passando, muitas vezes, da condição de empregado à condição de cooperativado. A diferença é a exclusão dos direitos que anteriormente eram garantidos.
Essa é a hipótese verificada em um processo que recentemente examinei, em que restou evidenciado haver o trabalhador prestado serviços por intermédio de uma cooperativa, na sede de um hospital público, tendo – antes e após tal período -, trabalhado como empregado diretamente contratado pela referida entidade, na mesma função e sob as ordens das mesmas pessoas. A preposta da cooperativa, quando ouvida em juízo, revelou que a diretoria da cooperativa era composta pelas mesmas pessoas, desde a sua fundação. Revelou, também, quanto ao modo de atuação da cooperativa, que ao ganhar a licitação para prestar serviços ao hospital, realizaram uma reunião com os empregados da entidade, propondo a adesão à cooperativa. Deram aos então empregados da tomadora dos serviços a "opção" de passarem à situação de cooperativados ou perderem o emprego.
Assim agindo, as pretensas cooperativas de trabalho invertem de modo absoluto a lógica prevista na Lei 5.764-71, que preconiza a adesão voluntária de pessoas que "reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro" (artigo 3º). No caso, os trabalhadores detentores da condição de celetistas são "convidados" a aderir à Cooperativa, tendo por segunda opção o desemprego.
A perversidade repousa na circunstância de que o empregado se vê obrigado a abrir mão das garantias que até então detinha, para não perder a fonte de sua subsistência. Tais circunstâncias certamente escandalizam a todos nós. Entretanto, ao contrário do que se pode pensar, não se trata de situação excepcional. Essa é a regra. Basta perguntar. Basta perder algumas horas instruindo com cuidado um processo dessa natureza, para percebermos que a regra dentre as cooperativas de prestação de serviços tem sido exatamente essa!
A realidade é, pois, simples de ser verificada: os trabalhadores permanecem realizando as mesmas atividades, sob o comando das mesmas pessoas, no mesmo local. Entretanto, seus salários são reduzidos pela metade e direitos antes garantidos, tal como pagamento de horas extras e de adicional de insalubridade, são sumariamente suprimidos. Essa prática, em um país como o Brasil, que conta com milhões de trabalhadores desempregados, equivale a tornar letra morta todas as garantias arduamente conquistadas no decorrer dos anos e consubstanciadas na CLT.
Como Juízes do Trabalho, não podemos olvidar o que significa o verdadeiro trabalho cooperativado. Para isso, basta consultar o texto da Lei específica. O trabalho cooperativado implica compromisso de integralização do capital-social e participação nos resultados da associação, de sorte a garantir melhoria nas condições daqueles que, unidos, obtêm sucesso maior do que o que seria possível, caso atuassem separadamente. Assim dispõe o artigo 4º da Lei 5.764-71. Se os pretensos cooperativados recebem salários fixos são, à evidência, empregados, pois colocam sua mão-de-obra à disposição de terceiros, mediante remuneração, sem que o lucro ou o prejuízo advindo da atividade cooperativa seja com eles dividido.
Diante deste cenário de total desconsideração pelo trabalhador e manifesta fraude, afigura-se inaplicável o quanto disposto na Lei 8.949-94. Aludida Lei, que acrescentou o parágrafo único ao artigo 442 da CLT, não autoriza a contratação de empregados de modo temporário, sem o registro do vínculo. Essa Lei, na realidade, apenas refere que não há formação de vínculo de emprego entre a cooperativa e seus associados, e entre estes e os tomadores dos serviços. Portanto, apenas traduz o óbvio, porque disciplina matéria já alcançada pelo artigo 90 da Lei 5.764-71.
É evidente que entre os associados de cooperativa que atenda os requisitos do artigo 3º da Lei 5.764-71 sequer poder-se-ia cogitar da existência de relação jurídica de emprego. Tal dispositivo prevê que na verdadeira sociedade cooperativa as pessoas "reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro", com a finalidade de melhorar a remuneração e as condições de trabalho pessoal de seus associados. Porém, em todos os casos que até hoje examinei, sequer se vislumbram os caracteres de uma verdadeira cooperativa.
É inconcebível cogitar-se de cooperativa que tem por escopo a prestação de serviço subordinado, em que os cooperativados não detêm os meios de produção, mas, apenas, colocam sua mão-de-obra à disposição de terceiros. Ao examinarmos as situações concretas, não demoramos a perceber que as relações estabelecidas entre os pretensos cooperativados e as tomadoras dos serviços em tudo se assemelham à relação de emprego. A única diferença repousa na circunstância de que uma alteração legal de finalidade duvidosa fez surgir a possibilidade de que tais trabalhadores fossem ‘recrutados’, sem que sequer as garantias afetas ao denominado ‘contrato mínimo’ lhes fossem asseguradas.
Nesse sentido, a modificação introduzida no artigo 442 da CLT deve ser encarada em seus precisos termos, ou seja, como mera repetição do que diz a legislação específica e não como modo de supressão de direitos fundamentais do trabalhador. No máximo estaríamos autorizados a concluir, após um exame mais crítico do contexto social em que editada essa alteração legal, tenha a nova redação do artigo 442 da CLT sido formulada com a intenção de abrir espaço a proliferação indevida de pseudo-cooperativas fraudulentas. Tentemos, porém, manter a fé na idoneidade do legislador, para considerar tenha havido mera repetição dos termos da Lei específica, para melhor esclarecer os cidadãos a propósito do vínculo que efetivamente se estabelece entre uma verdadeira cooperativa e seus colaboradores.
Ora, entre um grupo de pessoas que se reúne em função de suas habilidades específicas, para o efeito de juntos obter melhor resultado, competindo em melhores condições no mercado de trabalho e, com isso, obtendo maior lucro, é óbvio que sequer há cogitar da existência de vínculo. Trabalhadores assim organizados dividem o lucro do trabalho que realizam, participam das decisões coletivas, discutem e decidem o modo e as condições como o trabalho será produzido e ofertado a terceiros.
Quando há "cooperativados operadores"; quando há recrutamento de pessoal para trabalhar mediante remuneração fixa; quando existe subordinação e manifesta diferença entre membros de uma mesma cooperativa (uns coordenam, mandam e são melhor remunerados, enquanto outros obedecem, se sujeitam e são pior remunerados), não é possível pensar em cooperativismo!
Tanto já se escreveu sobre a fraude nas cooperativas de trabalho. Porém, quando examino um processo em que são colacionadas decisões judiciais chancelando essa prática de contratação de trabalhadores sem as garantias previstas na CLT, percebo que o muito ainda tem sido insuficiente para fazer perceber a relevância do tema.
As cooperativas de trabalho, os ateliês de prestação de serviço, as ‘terceirizadas’, constituem, todas elas, figuras recentemente introduzidas no cenário das relações trabalhistas, com uma finalidade evidente: diminuir custos. Não é por acaso que a Lei 5.764, de 1971, tenha permanecido esquecida por mais de vinte anos, para só agora se tornar tão atraente àqueles que pretendem formar um verdadeiro negócio empresarial, objetivando lucro com redução de gastos.
O objetivo é nobre: reduzir gastos. Entretanto, parte da premissa de que o trabalhador deve ser sacrificado, com a supressão de direitos, para que o negócio se mantenha íntegro. Inverte a lógica de que o empregador é quem deve suportar o risco do empreendimento. Transfere para o empregado, parte hipossuficiente da relação de trabalho, o ônus daí decorrente.
Quando examino situações como aquela antes mencionada, de trabalhadores recrutados em seu local de trabalho e "convidados" a assumir a situação de cooperativados, sob pena de perderem seus empregos, percebo que o óbvio, o essencial, no que tange ao direito do trabalho, tem sido reiteradamente olvidado. Não apenas pelas pessoas que engendram e praticam essa espécie de fraude, mas também por operadores jurídicos que fecham os olhos à realidade e chancelam tais condutas ilegais.
Não fosse o descomprometimento de parte do Poder Judiciário Trabalhista, não fosse a inércia por parte de alguns (felizmente cada vez menos!) membros da Delegacia Regional do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, a situação não teria chegado ao ponto em que chegou. Na região do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul, várias cooperativas de trabalho atuam de modo manifestamente fraudulento, prestando serviços, inclusive, a órgãos e empresas públicas.
É importante percebermos o que significa, em uma perspectiva maior, a aceitação da prática de contratação de trabalhadores por meio de interposta pessoa, eximindo-se – o verdadeiro beneficiário da mão-de-obra – dos encargos decorrentes de uma relação de emprego. O malefício não se traduz apenas nas perdas imediatas desse trabalhador. Está consubstanciado, isso sim, no retrocesso que representa. Anos de conquistas trabalhistas são trocadas por absolutamente nada, apenas para proteger a lógica do capital. Não há, porém, sociedade capitalista que subsista, quando formada por um povo espoliado, cujos direitos mínimos são desrespeitados.
Esse trabalhador antes mencionado, contratado por um hospital público, que teve sua remuneração reduzida e suprimidos os direitos ao FGTS, às férias, à gratificação natalina, às horas extras e ao adicional de insalubridade, tem sua dignidade abalada. Tal situação, multiplicada aos milhares – tal é a quantidade de cooperativas de serviço atuando atualmente – resulta num povo humilhado, destituído de sua dignidade humana, reduzido à condição de mero sobrevivente. Um povo assim constituído, não consome, apenas sobrevive.
Por isso, a lógica do capital é perversa sob qualquer ângulo de análise. É perversa quando atribui ao empregado o ônus do empreendimento. É perversa quando retira direitos já conquistados, destituindo o homem de sua dignidade e, pois, da condição que o diferencia dos animais. É perversa quando gera uma sociedade de sobreviventes que, porque espoliados, não consomem e, não consumindo, não geram riqueza, não movimentam a máquina capitalista. É preciso lembrar que o argumento de que é melhor ter um trabalho, mesmo cooperativado, do que estar desempregado, já serviu para justificar a prática da escravatura, por várias décadas, em nosso país.
A proposta que faço a todos os operadores jurídicos é simples: leiam, com cuidado, a lei que trata do trabalho cooperativado. Em seguida, deitem os olhos, ainda que com brevidade, sobre os primeiros artigos da nossa Constituição Federal. Examinem, então, o texto da CLT. Depois disso, analisem com máximo cuidado as questões que envolvem cooperativas de prestação de serviços, colham todas as declarações possíveis, a fim de tentar perceber a realidade que está por trás dos documentos formalmente produzidos. Se perdermos um pouco de tempo agora, evitaremos a necessidade de, em um futuro próximo, sermos obrigados a lutar pela reconquista de direitos trabalhistas já consolidados, que agonizam diante da atitude passiva daqueles que chancelam essa prática odiosa!