4. CULPA COMO PRESSUPOSTO GENÉRICO DA RESPONSABILIDADE
O Direito brasileiro sempre deu especial importância ao elemento culpa na caracterização da responsabilidade civil. Porém, como em praticamente todas as codificações mais avançadas, deixou de fornecer um conceito definitivo para o instituto, certamente em função não apenas das dificuldades verificadas sempre que se tenta formulá-lo, como também em virtude da constante evolução por que passa a definição de culpa como fator de verificação da responsabilidade do agente.
Nos artigos 186 e 927 – caput do Código Civil encontram-se as disposições que mais se aproximam de uma referência conceitual acerca da culpa, tendo como tônica, contudo, a menção ao liame estabelecido entre sujeitos a partir da sua verificação concreta, com a fixação do dever de indenizar que incide sobre todo aquele que, agindo contrariamente ao Direito, ocasionar prejuízos a outrem. Entre o causador dos danos e o lesado surge, então, uma incipiente relação jurídica em abstrato, tendo-se de um lado o dever jurídico de recompor, e de outro o direito subjetivo de buscar a recomposição do interesse juridicamente tutelado. Os teores dos aventados dispositivos são: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, combinado com o artigo 927 - caput “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186. e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Nisso se percebe facilmente o compromisso assumido pelo ordenamento jurídico nacional com as teorias que atribuem à existência da culpa, associada ao resultado lesivo, a qualidade de fonte geradora do dever de recompor a estrutura ofendida, fazendo volverem as coisas ao estado anterior ao acontecimento produtor da afronta.
Demonstrou incomparável técnica e sensibilidade o Código Civil ao determinar, através do ditame acima reproduzido, unicamente o surgimento de dever jurídico fundado na comprovação da culpa, deixando de lado uma conceituação fechada e imutável. Tal modo de legislar assegura aos aplicadores e estudiosos do Direito, com base no momento social e nas circunstâncias que apresenta, a adaptação do elemento culpa à realidade, ao estágio de evolução da sociedade, de modo que algo hoje representativo de culpa amanhã talvez não mais o seja, assim como o contrário também pode vir a se mostrar verdadeiro. Analisando o conteúdo do artigo 186 do Código Civil, é possível notar acentuada preocupação em definir como revelador de culpa todo comportamento, voluntário ou não, causador de danos à esfera jurídica alheia sempre que inexistam causas de exclusão do dever que abstratamente derivaria do dispositivo em apreço. Ao optar por essa construção, o legislador aboliu do Direito Civil qualquer distinção entre dolo e culpa, ao contrário do que ocorre no Direito Penal, onde a previsão de maior, menor ou nenhuma reprimenda passa necessariamente pelo enquadramento do comportamento do agente como sendo doloso ou culposo, chegando-se mesmo à constatação, em inúmeros tipos ou figuras penais, da inexistência de cominação de pena àquele que agir somente com culpa porque o próprio Código estabelece que a punição de delitos na forma culposa depende de inequívoca previsão nesse sentido. Com efeito, o artigo 18, parágrafo único, prescreve: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”. Em sede de Direito Civil isso não tem lugar, porque há perfeita equivalência entre os fatos praticados com o desiderato de produzir resultado lesivo (no campo penal, dolo) ou os realizados com presença simples de imprudência, negligência ou imperícia (culpa propriamente dita), tema que será abordado adiante com maior profundidade.
De tudo exposto deflui a visão da culpa como descumprimento de dever jurídico preexistente, derivado diretamente da lei ou de contratação, seja ou não intencional a produção do resultado lesivo. Portanto, como regra geral emergente da legislação pátria tem-se a apuração da culpa na verificação do dano ou prejuízo como pressuposto da responsabilidade civil e, destarte, do dever de indenizar prescrito especialmente no artigo 927 – caput - do diploma substantivo. Entretanto, principalmente a partir do advento da Constituição de 1988 houve importante progresso na forma de apuração da responsabilidade em situações específicas, tendo-se preferido dispensar a prova da culpa (responsabilidade subjetiva) para adotar a chamada responsabilidade objetiva, conceito que se vem aperfeiçoando e que será abordado na sequência.
A alteração acima aludida tem importantes reflexos práticos, pois, ao contrário do que acontecia em um passado não muito remoto, abriu-se novo caminho para que ao lesado seja viável um juízo de procedência na demanda porventura interposta, eis que em situações expressamente estatuídas na legislação, nem mesmo precisará provar o liame subjetivo entre o fato e o resultado danoso, bastando demonstrar a existência do evento, do dano e invocar a inflexão da norma promotora da incidência da chamada responsabilidade sem culpa. Destarte, fica esclarecido que à vítima de danos de qualquer natureza há sempre um ou dois meios de buscar o reconhecimento judicial da responsabilidade do agente da ofensa:
– como regra geral, provando o fato, o dano e a culpa do demandado na provocação do mesmo;
– quando previsto explicitamente em lei, terá de provar apenas a ocorrência do fato, do dano e automaticamente haverá a aplicação da norma fixadora da responsabilidade sem culpa do lesante. É evidente que, embora havendo dispositivo que faça incidente norma legal disciplinadora da responsabilidade sem culpa, ao lesado sempre é possível optar pela demonstração efetiva da ligação subjetiva entre o agente do prejuízo e o evento. Isso, todavia, não afasta a aplicabilidade da teoria da responsabilidade objetiva, apenas acrescendo ao conjunto mais uma possibilidade de procedência da ação e levando ao julgador o dever de analisar a lide tanto sob a ótica da responsabilidade subjetiva como sob o ângulo da responsabilidade objetiva.
A propósito, para prosseguir com segurança no estudo da culpa e das variantes verificadas na prática forense, é prudente a realização de mais aprofundadas considerações em torno das responsabilidades subjetiva e objetiva, visando a um melhor entendimento do tema, fundamental para a perfeita compreensão dos mecanismos de recomposição dos elementos jurídicos afrontados pela indevida incursão causadora de danos.
4.1. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA
Consoante declinado há pouco, a responsabilidade subjetiva assenta suas bases na concreta demonstração da presença de nexo causal subjetivo entre o fato e o resultado danoso, de tal sorte que a procedência da ação dependerá, invariavelmente, de necessária comprovação de que o agente portou-se com culpa na produção do dano. Essa modalidade é dita subjetiva porque reclama a investigação do elemento interno (fator volitivo) do causador do prejuízo, ou seja, a responsabilidade decorre unicamente da verificação concreta de que houve atuação eivada por imprudência, negligência ou imperícia, espécies principais de culpa no sistema jurídico nacional.
A constatação da culpa leva à imputabilidade do resultado nocivo ao agente apontado como causador do mesmo, do que deriva o dever de recompor a situação, de modo que volva ao estado anterior ou dele se aproxime ao máximo, direta ou indiretamente. O liame do agente com o dano não se dá apenas quando este é desejado, isto é, quando se busca determinado resultado nocivo por intermédio de conduta tendente a obter exatamente aquele prejuízo que culmina por se apresentar no plano fático. É que o ordenamento jurídico relacionado ao Direito Civil – reitere-se – não se preocupou em diferenciar o vínculo subjetivo em dolo e culpa, ao contrário do Direito Penal, onde o dolo é elemento totalmente dissociado e muito mais grave do que a simples culpa. Para fins de responsabilização na órbita civil ambos os institutos são condensados na fórmula única e genérica da culpa, considerando-se como tal tanto a culpa propriamente dita como o dolo. Assim, estará adstrito à obrigação de indenizar não apenas aquele que causar prejuízo mediante atitude compatível com a de quem deseja exatamente o dano concretizado, mas igualmente o sujeito que, imprudente, negligente ou imperito, der causa ao resultado danoso, ainda que de modo algum o desejasse deliberadamente, nem houvesse assumido o risco de produzi-lo.
Como consequência disso, no campo civil não há preocupação em classificar o agir do indigitado causador do dano em dolo direto (querer o resultado), dolo eventual (assumir o risco de ocasionar o dano, embora não o pretendendo como fim) ou culpa simples (desleixo, despreparo, afoiteza etc), bastando que dos caracteres do evento deflua a certeza jurídica da existência de nexo de causalidade consubstanciado na fórmula genérica da culpa. Logicamente, o estudo do comportamento do agente sempre poderá conduzir, em abstrato, à colocação da atitude do agente em um dos patamares acima elencados (dolo direto, dolo eventual ou culpa), sem que isso, entrementes, represente qualquer diferenciação na forma de vinculação entre o sujeito e o dano. A intensidade do querer, assim como a extensão da culpa, serão relevantes apenas no momento da definição do teor condenatório, pois ao julgador é permitido fixar maior reprimenda àquele que quis o dano civil do que ao sujeito cuja conduta foi marcada pela imprudência, por exemplo. Contudo, importa repetir que ambos serão indistintamente considerados culpados pelo resultado lesivo e obrigados a indenizar de acordo com as nuanças do episódio.
A incidência, em determinado fato, dos cânones relativos a responsabilidade subjetiva faz recair no autor da ação o dever de provar a culpa do agente na produção do dano, sob pena de improcedência do pleito formulado. Somente a demonstração inequívoca da culpa levará a uma decisão condenatória, porque, conforme frisado alhures, a base da responsabilidade subjetiva (chamada também de responsabilidade com culpa) é exatamente a atuação culposa de quem causou o prejuízo, donde emergirá a imputabilidade, ou seja, a atribuição ao lesante do dever de recompor os prejuízos apurados. Em consideração sintética, pode-se afirmar que a teoria subjetivista tem na culpa o pressuposto essencial e primário da imputabilidade e, consequentemente, da responsabilidade. Não se pode olvidar, contudo, da circunstância de que nem sempre a presença dos elementos da teoria subjetivista acarreta o dever de indenizar, porque a legislação previu algumas hipóteses nas quais o comportamento do agente, embora lesivo e em tudo assemelhável àquele que produz a obrigação de recompor, é infenso à incidência dos ditames referentes a esta. É o caso, por exemplo, da conduta prevista no artigo 1210 – parágrafo primeiro do Código Civil, que autoriza o possuidor turbado ou esbulhado a “manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo”. Logo, o chamado desforço imediato, ainda quando produtor de danos à parte contrária, mas adequado às prescrições legislativas, não obriga o causador dos danos a indenizar o prejudicado, porque este deu ensejo aos atos defensivos amparados por lei e não pode reclamar por recomposição.
O mesmo se dá quando praticados atos que, embora teoricamente explicitem caracteres idênticos aos dos ilídimos, encontram guarida no artigo 188 do Código Civil, onde se diz que não constituem atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido, assim como a deterioração ou destruição de coisa alheia, ou a lesão à pessoa, a fim de remover perigo iminente. Tais previsões legais têm fundada razão de ser, pois quando em confronto bens de valoração distinta, sendo um deles de maior importância para a sociedade como um todo, deixa-se de lado o interesse individual do pretenso lesado e opta-se pela defesa do direito com reflexos sociais, até mesmo como forma de incentivar determinados comportamentos que podem contribuir para a melhoria das relações de convivência humana.
4.2. MODALIDADES E GRAUS DE CULPA
A presente etapa do trabalho está voltada para a apreciação das formas com que se apresenta na teoria e na prática a culpa geradora de responsabilidade civil. Bem se pode ver, por assim dizer, que a preocupação essencial não toma assento na diferenciação entre dolo e culpa, mesmo porque, consoante já referido, o ordenamento jurídico nacional deixou de prever qualquer modo de discriminação entre a conduta daquele que busca o dano, assume o risco de produzi-lo ou acaba por dar causa ao prejuízo em virtude de uma ação cujo final não é planejado nem antevisto como possível, mas que atinge interesse alheio protegido pelo Direito. O consagrado Caio Mario da Silva Pereira (Instituições de direito civil, volume I, 12ª edição, Editora Forense, 1990, p.455), acerca do tema, expõe o seguinte: “Considerando a inutilidade prática da diferenciação, o direito brasileiro abandonou-a, ficando na idéia de transgressão de um dever o conceito genérico de ato ilícito (...). Não ficou, porém, afastada a noção de culpa (...). Mas a palavra culpa traz aqui um sentido amplo, abrangente de toda espécie de comportamento contrário ao direito, seja intencional ou não, porém imputável por qualquer razão ao acusador do dano”. Assim sendo, parte-se para uma visão geral da culpa sem ter o objetivo de perquirir se o agente quis ou não o resultado, visto que, tendo provocado o dano ao desabrigo da lei, exsurgirá a obrigação de preencher a lacuna deixada na esfera jurídica do atingido, desimportando a motivação – ou ausência desta – que tenha influenciado no comportamento do lesante.
Não obstante o legislador tenha direcionado a análise da culpa para o campo da falta a um dever jurídico preexistente, é factível a dissociação dos atos e fatos em vários segmentos, cada qual apresentando caracteres próprios e definidos, ensejando o surgimento das mais diversas modalidades de culpa, que por sua vez postam-se sob diferentes graus. De acordo com o explicitado retro, as modalidades e os graus de culpa em nada interferem na definição de maior ou menor responsabilidade, eis que a culpa é instituto amplo e hábil, independentemente da faceta que carregue no caso concreto, a dar nascedouro ao dever jurídico de repor a situação ao estado anterior, através de indenização ou reparação. Assim, agir com imprudência não difere, no resultado final, de atuar com imperícia, o mesmo ocorrendo caso ambas as formas se encontrem conjuntamente em um só acontecimento danoso. Em termos de responsabilidade subjetiva, o que importa é a análise do comportamento do agente do dano, que, uma vez tendo incorrido em uma das modalidades culposas, suportará a obrigação decorrente da situação criada, de tal sorte que a verificação da ocorrência de uma só das variantes de atuação contrária ao dever preexistente basta para definir a responsabilidade civil.
No ordenamento jurídico pátrio estão consagrados dois fundamentos para a geração da culpa: o contrato e os preceitos gerais. Caso o dever jurídico inobservado pelo obrigado esteja previsto em uma contratação atenta aos ditames normativos, há a chamada culpa contratual, regida pela convenção estabelecida entre as partes e pelos dipositivos especificamente aplicáveis à espécie. Ao contrário, se o dever jurídico está firmado nos preceitos gerais da legislação, existe a denominada culpa extracontratual, ou aquiliana. Assim, exemplificativamente, sobre aquele que estiver obrigado por contrato a realizar transporte de cargas perecíveis e que não se desimcumbir a contento da tarefa por força de atuação culposa, responsabilizar-se-á segundo os exatos termos do contrato, secundado pelas normas legais disciplinadoras do tema. Já em se tratando de provocação de danos em acidente de veículo, por falta a dever jurídico de diligência no trânsito, haverá responsabilização do lesante com base na culpa extracontratual, porque embora inexistindo contratação entre as partes no sentido de que uma deva respeitar a integridade patrimonial alheia, o artigo 927 - caput do Código Civil preconiza a indenizabilidade dos prejuízos causados por conduta culposa, sendo preceito genérico incidente sobre todas as hipóteses de danos decorrentes de culpa extracontratual.
Basicamente são três as modalidades principais de culpa, passíveis de existência tanto no caso de falta a dever contratual como no desrespeito a obrigação jurídica alheia a qualquer convenção interpartes. São elas: imprudência, negligência e imperícia, das quais defluem muitas outras subespécies de menor amplitude e que normalmente são menos considerados pelos doutrinadores, mas cuja valia é inegável quando se desce a pormenores da conduta individual formadora do instituto denominado culpa civil.
Considera-se imprudência toda conduta positiva ou negativa, geradora de danos, destituída da necessária reflexão e das cautelas exigíveis nas circunstâncias em que têm lugar os fatos. Ao invés de tomar os cuidados que poderiam conduzir a um resultado diferente do verificado, o agente, com base em impulso interno revelador de determinado grau de descaso para com as conseqüências da ação ou omissão, acaba por infligir a outrem irregular prejuízo. Trata-se de atuação intempestiva que difere daquela adotada por quem deseja diretamente o dano ou assume conscientemente o risco de produzi-lo (em Direito Civil, incluídos na definição de culpa lato sensu), já que no comportamento imprudente (culpa strictu sensu) tem-se apenas um agir desacompanhado das virtudes desejáveis naquele instante. Segundo Galdino Siqueira, a imprudência “consiste em praticar uma ação sem as necessárias precauções, isto é, em agir com precipitação ou inconsideração ou inconstância” (apud José Náufel, obra citada, p.613). Há imprudência na conduta de quem conduz veículo sabendo que o mesmo é portador de deficiência no sistema de freios ou que imprime excessiva velocidade em pista molhada, assim como aquele que ultrapassa um sinal de trânsito fechado. Derivando danos dessa atuação ilídima, surgirá para o infrator o dever jurídico de recompor as lacunas patrimoniais e extrapatrimoniais acaso provocadas, porque em ambos os exemplos percebe-se que a falta da reflexão ordinariamente exigível de qualquer motorista apresentou-se como fator determinante do produto nocivo final, e que a opção por uma atuação mais precavida no tempo certo evitaria os acontecimentos nocivos.
A negligência, por sua vez, caracteriza-se pela falta de diligência, por incúria ou desleixo quando o agente deveria portar-se de forma diversa e adequada aos caracteres da situação concreta. “É a atuação descuidada e defeituosa, ou a falta de atenção em momento próprio” (Esmeraldino Bandeira apud José Náufel, obra citada, p.709). Na prática, em muitas ocasiões é acentuadamente sutil a diferenciação entre a imprudência e a negligência, eis que ambas correm paralelamente nos caminhos das cautelas legais reclamadas de quem esteja envolvido em determinadas atividades ou tarefas. Mas, enquanto a imprudência consubstancia um agir culposo que sob certos aspectos aproxima-se bastante do dolo eventual, a negligência pende mais para o lado da ausência inconsciente de atenção a detalhes elementares do contexto, e nisso reside a diferença básica entre os dois conceitos civis. Há negligência, por exemplo, no caso do motorista distraído que não se apercebe da necessidade de olhar para ambos os lados da via que está à frente antes de iniciar manobra de ingresso em artéria preferencial. Também é negligente o condutor que, estando apressado, ao parar e desembarcar em declive deixa de acionar o freio de mão. O referido desleixo, se produtor de danos, levará ao agente a obrigação de indenizar, tendo em vista que a simples adoção das medidas acautelatórias a que estava legalmente jungido – mas que foram desatendidas em função do comportamento negligente – impediria a consumação das lesões.
Por fim, a imperícia difere substancialmente das duas modalidades elencadas retro, por tratar-se de instituto que tem por elemento essencial a capacitação técnica ou profissional do indivíduo. “É a falta de conhecimentos necessários para evitar o mal que o agente causou” (Bento de Faria apud José Naufel, obra citada, p.606). Em verdade, a imperícia caracteriza-se como ausência de conhecimentos, má preparação profissional, falta de aptidões para a aplicação dos mesmos ou demonstração prática de incapacidade no desempenho de função. Age com imperícia o motorista que calcula mal as dimensões do próprio caminhão e, com isso, em manobra de conversão realizada em cruzamento, vem a danificar veículo regularmente estacionado na margem da pista em que pretendia ingressar o agente. O exemplo serve para apontar os caracteres essenciais da culpa na modalidade imperícia, especialmente no que pertine à falta de atuação técnica compatível com o quadro fático em que se inseria o causador dos prejuízos. A imperícia é de maior presença entre profissionais no exercício de seus misteres, mas a eles não se cinge, podendo ser verificadas no comportamento de qualquer pessoa que pratique atividade para a qual exige-se um mínimo de habilitação legal ou até a prática. No tocante a condutores de veículos automotores, ainda que legalmente habilitados, devem sempre demonstrar reais condições de domínio sobre a máquina, pois do contrário estará agindo de forma imperita. Logo, não basta a exigência de autorização legal para desempenhar determinada tarefa; é imprescindível que à permissão regular some-se o correspondente agir dentro das normas incidentes, pois ninguém tem salvo-conduto e carrega presunção de competência somente pelo fato de preencher requisitos meramente teóricos, ou porque durante largo tempo tenha praticado com eficiência os atos que em episódio isolado vêm a provocar danos.
Depois de analisadas as três modalidades principais, cabe breve referência a algumas derivações, as quais representam ramificações especializadas dos troncos basilares, conhecidas como graus ou formas secundárias de culpa. Partindo-se desse ângulo, é possível aferir a presença de três diferentes graus de culpa, consoante a carga do elemento volitivo do agente e a maior ou menor possibilidade de perceber na conduta o potencial de lesividade que carrega: lata ou grave, leve a levíssima. “Culpa lata é a falta com intenção dolosa, ou por negligência imprópria ao comum dos homens; culpa leve é a falta evitável com atenção ordinária; culpa levíssima é a falta só evitável com atenção extraordinária, ou por especial habilidade, e conhecimento singular” (Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil, volume 1, Editora Saraiva, São Paulo, 1989, p.276). Portanto, o primeiro dos graus corresponderia quase que ao dolo direto (desejo de obter o resultado danoso), ou, na melhor das hipóteses, ao dolo eventual (assunção consciente do risco de que sobrevenha o prejuízo) ou a culpa extraordinária grave, pois resultaria da falta de previsão elementar e ao alcance do comum dos homens. No segundo dos graus ter-se-ia aquele comportamento lesivo derivado da falta inescusável de obediência aos deveres de cautela exigíveis do ser humano comum e medianamente provido de discernimento. Por derradeiro, haveria culpa levíssima quando ao agente fosse praticamente inviável a percepção do conteúdo de potencial lesivo embutido na atividade desempenhada, de tal sorte que somente o homem ditado de grande sensibilidade e habilidade física ou mental conseguiria esquivar-se da produção do dano. A verificação de incidência dos dois primeiros graus acarreta, inequivocamente, a responsabilização civil do agente, enquanto que da culpa levíssima decorre o dever de indenizar menos com fundamento no elemento subjetivo propriamente dito, e mais no princípio de que todo dano injusto deve ser reparado, sob pena de restar sem qualquer compensação o lesado, o que seria consequência de maior repercussão social negativa do que obrigar o portador de culpa ínfima a repor o estado anterior das coisas.
Após, já como formas secundárias de culpa, podem ser citadas as seguintes: in eligendo, in vigilando e in custodiendo (mais presentes na extracontratual), in omittendo e in commitendo (comuns na forma contratual). Via de regra, porém, todas as formas secundárias podem ser visualizadas tanto na culpa embasada em contratação como naquela chamada de aquiliana. A seguir, rápida definição de cada uma delas:
a) – in eligendo: resulta da ausência de cautela que deve ser aplicada sempre que se escolher alguém (preposto, mandatário, serviçal etc) para realizar determinada atividade. Em termos de acidente de trânsito, pode-se citar como exemplo o caso de quem entrega o automóvel a motorista que, no desempenho de tarefa que lhe foi cometida, vem a se mostrar imperito, causando danos a outrem. Sobre o condutor incidirá a responsabilidade por imperícia, ao passo que o proprietário do veículo responderá por culpa derivada da entrega do bem a pessoa mal escolhida e despreparada;
b) – in vigilando: revela-se na atitude daquele que deixa de prestar atenção ou de vigiar o modo pelo qual se está praticando determinada atividade ou utilizando certo bem. Normalmente diz respeito aos patrões em relação aos empregados, porque àqueles cabe empregar todos os recursos possíveis para fiscalizar o andamento dos trabalhos realizados por estes. Todavia, nada impede que exista mesmo na falta de atenção da pessoa quanto ao estado de bens de sua propriedade. Tem-se essa forma, por exemplo, na conduta do patrão que deixa de fiscalizar a utilização de veículo que está em poder de funcionário, e este, servindo do mesmo para disputar corridas ilegais, provoca lesões em terceiros;
c) – in custodiendo: corresponde à deficiente atenção dispensada a coisas, pessoas ou animais, do que se originam prejuízos, como na hipótese do proprietário de um touro bravo que o deixa em local cuja cerca não oferece as condições ideais de segurança. Vindo o animal a fugir e provocar danos no patrimônio alheio, haverá responsabilização pela insuficiente ou deficiente custódia promovida pelo proprietário;
d) – in omittendo: também chamada culpa negativa, tem lugar quando o agente abstém-se indevidamente de praticar ato que, se praticado, evitaria a ocorrência do ato lesivo. Noutras palavras, a pessoa deveria ter atuado em determinado momento, mas prefere omitir-se, e disso vem a decorrer a produção de danos. É o caso do pai que não detém o filho inabilitado para dirigir quando este furtivamente tenta sair de casa para passear com o automóvel da família. Caso o veículo venha a envolver-se em acidente, sobre o pai recairá o dever de indenizar em função da omissão mencionada, eis que se houvesse evitado a circulação do carro o episódio lesivo não teria acontecido;
e) – in commitendo: deriva de um ato positivo, de uma conduta efetiva do agente e da qual resultam danos para terceiros. Essa forma de culpa, ao contrário da anterior, traduz-se em um fazer. Nesse compartimento situa-se a imensa maioria dos casos de responsabilidade culposa, eis que via de regra o causador dos prejuízos, ainda que não os desejando, executa de maneira positiva ato que se revela nefasto. É o que ocorre nas ultrapassagens mal calculadas, no desrespeito a sinais de trânsito etc.
4.3 - INFLUÊNCIA DA INTENSIDADE DA CULPA NA DECISÃO JUDICIAL
Em se tratando de apuração da responsabilidade mediante aplicação das regras subjetivistas, bastará a existência de culpa do lesante, somada à ausência de causa legal de exclusão do dever jurídico abstratamente previsto, para que surja a necessidade de indenização dos prejuízos ocasionados. Por óbvio, dessa culpa deve derivar o nexo de causalidade entre o fato e o dano, ao que se juntará a imputabilidade deste ao agente, pois do contrário faltariam elementos para atribuir ao indigitado lesante o dever jurídico de recompor as lacunas criadas pelos acontecimentos nocivos.
Deve-se considerar, contudo, a diferença que há entre a determinação da suficiência de provas no sentido da ocorrência de culpa na produção dos danos e a interferência de suas modalidades e graus na definição da extensão da responsabilidade. Se para o estabelecimento do dever de indenizar basta a presença do elemento subjetivo capaz de unir o agente ao resultado lesivo acarretado a outrem em função de determinado fato, não se pode afirmar que a apuração efetiva da responsabilidade civil ficará condicionada à constatação desta ou daquela modalidade de culpa, ou de um ou outro grau de culpabilidade, pois o dever jurídico decorre da simples verificação de que houve atuação culposa originadora dos danos. Logo, a modalidade ou os graus em que se apresenta o elemento interno do autor das lesões somente tem importância na fixação da extensão do dever de indenizar, eis que será tanto maior quanto mais acentuada a discrepância entre o comportamento e a tutela legal conferida ao direito atingido. É que a intensidade da culpa do causador dos prejuízos é fator de agravamento da responsabilidade perante o lesado, de tal modo que ao julgador, quando as circunstâncias processuais e as peculiaridades da demanda permitirem, será possível condenar o lesante a indenizar mais amplamente de acordo com o aprofundamento do elemento culpa emergente da conduta. O quantum condenatório em muitas ocasiões sofre, por assim dizer, ingerência direta do nível de culpabilidade concretizado na atuação danosa protagonizada pelo sujeito passivo da lide. Quanto mais acentuada a culpa, mais enraizado se torna o dever de recompor e mais extensos se mostram os limites da obrigação.
Constituir-se-ia em atentado aos princípios gerais do direito e inclusive ao regramento específico da responsabilidade civil atribuir idêntico elastério ao dever jurídico de indenizar resultante de acontecimentos lesivos protagonizados por condutas das quais defluíssem respectivamente, por exemplo, culpa levíssima e culpa grave. É evidente que ambos os agentes serão considerados responsáveis perante o lesado, eis que a este é que se dirige a tutela legal ao interesse ferido; todavia, ao agente que se portou com menor intensidade de culpa deve-se amenizar, na medida do possível, o rigor do dever jurídico nascido do comportamento ilídimo, enquanto que ao indivíduo que atuou sob a égide da culpabilidade em patamar extremamente elevado será impingido o dever jurídico em sua mais ampla profundidade, porque portou-se de maneira plenamente evitável mediante a adoção de providências acessíveis a todo ser humano medianamente dotado de sensatez e consciência. As peculiaridades do caso concreto é que determinarão até que ponto mostrar-se-á viável na prática a distinção entre a responsabilidade decorrente da constatação de diferentes modalidades e graus de culpa na formação e no reconhecimento do dever jurídico atribuível ao agente dos prejuízos.
4.4. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E O ESTADO
Partindo de uma concepção histórica, verifica-se que o Estado, antigamente, era regido elo princípio da irresponsabilidade, baseado no fato de que precisaria de imunidade para agir, estando os atos procedentes de sua soberania acima de qualquer julgamento. Com a evolução da doutrina, passou-se a entender que caberia a responsabilização do Estado apenas nos atos de gestão, não nos de império e, um pouco mais à frente, chegou-se à posição atual, em que se verifica uma plena responsabilização da Administração Pública – responsabilidade objetiva, de modo que, como esclarece Caio Mário, por ser o Estado um ente abstrato que só pode agir por intermédio de seus agentes ou prepostos, torna-se necessário apurar se estes agem como representantes do poder público, ou seja, ”[...] se os atos danosos são praticados por alguém que esteja realizando uma atividade inerente a um órgão estatal, ou execute uma função ou um serviço que seja próprio do Estado, ou lhe competia”. (PEREIRA,Caio Mário, Responsabilidade Civil. 6. ª ed.Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 425)
Assim, verificada esta circunstância, o dano e o nexo causal entre ambas, restará a obrigação de indenizar. Para isto, não importa qual seja a pessoa jurídica de direito público; incluem-se aí empresas estatais e pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público.
A denominada responsabilidade objetiva ou sem culpa é instituto que vem sendo debatido ao longo de muitas décadas, ora encontrando acolhida nas legislações de alguns países, ora sofrendo o desprezo de tantas outras. Porém, nos últimos anos passou a assumir posição importante em todos os quadrantes do mundo jurídico, mormente por apontar caminhos de resolução de certas demandas complexas que através de outras modalidades de estabelecimento do dever de indenizar não encontrariam solução adequada.
Já se disse que o ordenamento jurídico pátrio desde sempre outorgou relevância máxima à teoria da responsabilidade subjetiva para apuração da existência do dever de indenizar ou de reparar danos provocados em determinado acontecimento. É bem verdade que essa maneira de aferir a responsabilidade civil contém o que de mais adequado há para a distribuição da justiça, porque estabelece como pressupostos de surgimento da obrigação a existência do fato alicerçado em conduta ilídima e a constatação do dano, aos quais, entrementes, deve juntar-se o nexo de causalidade e a imputabilidade, entendendo-se esta como viabilidade jurídica de atribuição do resultado lesivo ao agente apontado como causador do mesmo. Porém, a evolução da ciência jurídica e das instituições sociais veio mostrar que a teoria referida retro, não obstante dotada de extrema utilidade na imensa maioria dos casos, era insuficiente para abarcar todas as variantes que as situações reais exteriorizavam. Agigantou-se o Estado, multiplicaram-se em força política e econômica as grandes organizações privadas e as pessoas físicas ou naturais comuns permaneceram no modesto patamar de influência sempre ocupado, tendo havido, destarte, o surgimento de abissal distância entre estas e aqueles. Juntamente com essa modificação social percebeu-se a necessidade de munir os mais fracos de instrumentos hábeis a facilitar não apenas o acesso ao Poder Judiciário, mas principalmente aptos a reduzir diferenças e permitir aos menos aquinhoados pela sorte embates judiciais dos quais pudessem emergir vereditos condizentes com os tempos democráticos vividos e com as necessidades mesmas de realização do vetusto – mas sábio – dar a cada um o que é seu.
Em face de tudo isso, os estudiosos passaram a elaborar alternativas à teoria da responsabilidade subjetiva e começou a firmar-se no meio científico a idéia de responsabilidade sem culpa, ou, mais precisamente, objetiva. Por ela, o plano fático assumiu fundamental papel na definição de demandas visando à reconstituição de interesses jurídicos lesados pela atuação ilegítima alheia. O elemento anímico deixou de ser o fator diferencial e preponderante, suprimida que restou como nexo de causalidade entre o comportamento do agente e o prejuízo verificado na apuração da responsabilidade, eis que basta a conjugação do fato lesivo com a certeza jurídica acerca da autoria para que exsurja incontinenti a responsabilidade civil, a qual somente é ilidível na hipótese de o acusado provar inequivocamente que o dano teve como causa a conduta da suposta vítima, e não o seu próprio agir. Assim sendo, ocorre verdadeira inversão de papéis, de forma que à vitima cabe apontar o fato e o autor deste, passando então para o indigitado causador o dever processual de demonstrar que o lesado – e não ele, lesante – provocou o prejuízo através desta ou daquela atuação eivada por culpa.
A teoria da responsabilidade objetiva atrela-se à noção de risco, no sentido de que determinadas atividades acarretam, a quem as dirige ou pratica, a assunção da imediata possibilidade de ter de suportar os ônus originados da ocorrência de fatos lesivos, ainda que ausente qualquer resquício de culpa. Esse inovador mecanismo tem por fundamento exatamente a idéia de que a inserção do agente ou organismo em determinada situação jurídica de excepcional importância ou privilegiada faz incidir, em contrapartida, a normatização concernente à desnecessidade de apuração de culpa na fixação do dever de recompor a esfera jurídica lesada. Não se trata de presunção de culpa, porque nesta o legislador estabelece dogmaticamente a presença do elemento interno, autorizando o agente atingido a repeli-lo mediante prova em contrário (presunção relativa) ou mesmo impedindo-o de qualquer iniciativa eficaz tendente a afastar o dogma legal (presunção absoluta). Entretanto, tomando-se por base os efeitos de um e de outro instituto, chega-se à conclusão de que tanto na presunção de culpa como na responsabilidade objetiva deitam alicerces na doutrina do risco, posto que em ambas é despicienda a necessidade de efetivas indagações quanto ao ânimo do agente. Na realidade, como diferença mais acentuada tem-se o fato de que a responsabilidade objetiva, ao contrário da presunção de culpa, dispensa completamente toda análise que se pretenda fazer em torno do aspecto volitivo de quem apontado como causador do dano e não se preocupa em estabelecer a existência fictícia do fator volitivo, porque automaticamente há inflexão das normas fixadoras da responsabilidade a partir da simples presença do acontecimento danoso somado à certeza da autoria. Como se percebe facilmente, entre os institutos há pelo menos uma espécie de cumplicidade, porque se em tese a responsabilidade objetiva dispensa o exame da vontade do agente na produção do dano, e se a presunção da culpa afirma o elemento interno como dogma, das duas resulta o surgimento do dever de reparar, e nesse particular mostram-se exatamente idênticas.
Como referido alhures, visando ao equilíbrio entre as partes sempre é facultada ao obrigado por força da teoria objetiva a ilisão da responsabilidade através de prova cabal de que a vítima foi quem efetivamente deu ensanchas ao surgimento do prejuízo que ela própria culmina por suportar. Não se cuida, aqui, de inversão do ônus da prova, eis que pelo deslocamento do ônus probandi o legislador estabelece que cabe ao autor afirmar a culpa do réu, e a este, querendo livrar-se, cumpre mostrar que não praticou os atos danosos, que eles não existiram ou que de algum modo não pode ser responsabilizado pela sua ocorrência. Já na responsabilidade objetiva o acusado que pretender liberar-se da obrigação definida no ordenamento tem por dever inarredável a produção da prova de que a parte contrária foi quem atuou erradamente e oportunizou o surgimento da lesão.
A responsabilidade objetiva de há muito pode ser encontrada, em forma esparsa, dentro da legislação brasileira. De previsões ocasionais passou-se para a adoção da teoria com bem maior freqüência, em especial em virtude da Carta Maior de 1988, que, em seu artigo 37, § 6º, determina a incidência da responsabilidade objetiva sobre o Estado quando, por seus agentes, causar danos a terceiros.
Dessa forma, a responsabilidade civil do Estado e dos prestadores de serviço públicos é objetiva, bastando a relação de causa e efeito entre a ação ou omissão e o dano. Nos casos de culpa ou dolo dos seus agentes, caberá à administração o direito de regresso contra aqueles que deram causa à indenização que ela se obrigou a pagar.
Doutrinas acerca do tema divergem quanto à responsabilidade objetiva por risco integral e por risco administrativo. Pela Teoria do Risco Integral, a administração pagaria sempre. Pela Teoria do Risco Administrativo a responsabilidade da administração poder ser excluída ou diminuída por culpa total ou parcial da vítima. Outras, porém, entendem que tanto no risco integral quanto no risco administrativo o ressarcimento é dosado conforme o comportamento da vítima.
Há ainda o entendimento que a responsabilidade do Estado só é objetiva na ação. Na omissão a responsabilidade é subjetiva, ou por culpa, porque na omissão é necessário verificar se o fato era previsível e se o Estado tinha a obrigação e os meios para interferir e evitar o resultado danoso. Deve-se verificar nos casos de omissão, se a ação estatal era exigível. Se o era, passa a omissão ser a causa ou concausa do evento danoso, com a responsabilidade integral ou parcial da administração.
Pode-se concluir, porém, que se adotou como regra para o Estado a responsabilidade objetiva fundada na Teoria do Risco Administrativo, sempre que houver direta relação de causa e efeito entre a atividade administrativa e o dano. No entanto, em determinadas situações, pode-se verificar, a título de exceção, a responsabilidade subjetiva do Estado, nos casos de fatos de terceiros e fenômenos da natureza, onde se determinará a responsabilidade da Administração com base na culpa anônima ou falta de serviço, seja porque este não funcionou, quando deveria normalmente funcionar, seja porque funcionou mal ou tardiamente.
O Código de Defesa do Consumidor também é pródigo em disposições normativas tendentes a viabilizar o profícuo acesso ao Poder Judiciário por parte dos denominados hipossuficientes, pessoas que enfrentam em juízo o poderio de grandes conglomerados comerciais e que por isso precisam de algumas comodidades na produção da prova conducente à procedência da demanda.
O Código de Trânsito Brasileiro em seu artigo 1º - § 3º também erigiu a responsabilidade objetiva dos componentes do Sistema Nacional de Trânsito por danos causados aos cidadãos por erros, omissões ou ações na execução de programas, projetos ou serviços com vistas à garantia de um trânsito seguro.
A respeito do assunto assim posiciona-se o eminente Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o Dr. Arnaldo Rizzardo in “Comentários ao código de trânsito brasileiro”, 4ª Edição, RT, p. 30:
Relativamente à responsabilidade dos órgãos e entidades responsáveis, decorre do dever afeto ao Poder Público de manutenção e conservação das pistas e dos sinais, ou de afixá-los se inexistentes estes últimos. Diferentemente das normas anteriores, o atual legislador acentuou a responsabilidade objetiva. Entrementes, em cada caso pesquisa-se até onde foi a culpa do órgão ou entidade e a do condutor. Não se admite a indenização pelo mero fato em si. Parece, pois, forte a expressão de que responderá o órgão ou entidade objetivamente.
A 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, deu provimento ao Recurso Especial Nº 439.408 - SP (2002/0071492-6):
AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. AUSÊNCIA DE GRADES DE PROTEÇÃO NO LOCAL. Para que se configure a responsabilidade objetiva do ente público basta a prova da omissão e do fato danoso e que deste resulte o dano material ou moral. O acidente ocorreu e que o evento morte dele decorreu e que a estrada não tinha grade de proteção. A ré só ficaria isenta da responsabilidade civil se demonstrasse - o que não foi feito - que o fato danoso aconteceu por culpa exclusiva da vítima. A imputação de culpa está lastreada na omissão da ré no seu dever de, em se tratando de via pública, zelar pela segurança do trânsito e pela prevenção de acidentes, incumbindo a ela a sua manutenção e sinalização, advertindo os motoristas dos perigos e dos obstáculos que se apresentam. A falta no cumprimento desse dever caracteriza a conduta negligente da Administração Pública e a torna responsável pelos danos que dessa omissão decorrerem.
E por fim, o novel Código Civil de 2002 contém previsão que deixa patente a admissibilidade desse modo de fixação de deveres jurídicos, como ocorre, por exemplo, com o artigo 927 – parágrafo único, ao contrário do anterior que silenciava quanto à obrigação de indenizar, independentemente de culpa.
Não há perquirições em torno do fator anímico, sendo suficiente a presença do dano associado a determinado fato e a indicação da autoria, do que resulta a aplicação imediata do dispositivo citado, sempre que provocação houver do interessado. Enfim, o ordenamento jurídico tem idealizado com maestria e prudência dispositivos que consagram a teoria da responsabilidade objetiva, sempre visando a disciplinar com a máxima eqüidade as relações processuais que se constituírem sob tal regime. Com o brilhantismo de sempre, José de Aguiar Dias, citando Alvino Lima, preleciona da seguinte maneira acerca do tema: “Os danos e a reparação não devem ser aferidos pela medida da culpabilidade, mas devem emergir do fato causador da lesão de um bem jurídico, a fim de se manterem incólumes a interesses em jogo, cujo desequilíbrio é manifesto, se ficarmos dentro dos estreitos limites de uma responsabilidade subjetiva” (Da responsabilidade civil, Editora Forense, 10ª edição, volume I, Rio de Janeiro, 1995, p.50). Há, destarte, notória preocupação com a expansão de mecanismos que possam tornar menos penosa a tarefa de pessoas que, agredidas em seu patrimônio ou em interesse tutelado por lei, busquem no Poder Judiciário uma solução justa e condizente com os males suportados. A aplicação da teoria assume relevância fundamental em casos que demonstrem a insuficiência da responsabilidade subjetiva como meio de resolver a demanda, seja porque as características dos eventos estampam a inviabilidade de se chegar a uma posição segura quanto ao elemento subjetivo, como em razão da já aludida noção de risco inerente a certas atividades de comando ou afins. Todavia, a aplicabilidade da teoria objetiva está condicionada à consignação legal expressa nessa direção, não sendo possível invocá-la em toda e qualquer situação. Sempre é prudente ressaltar que o legislador conferiu absoluta predominância à investigação subjetiva da responsabilidade, admitindo a modalidade outra apenas excepcionalmente e como fruto de especiais caracteres vislumbrados em episódios específicos.
Conforme se denota, o modo objetivo de aferir a responsabilidade civil afasta a idéia de que a vinculação subjetiva entre conduta e resultado é que promove o surgimento do dever de reparar que incide sobre o causador. É evidente a utilidade da teoria, pois sem ela em muitos casos o lesado experimentaria o prejuízo e não teria como buscar a recomposição, haja vista as dificuldades na efetiva demonstração da existência do liame subjetivo entre o comportamento e o resultado danoso final. Os percalços na revelação do elemento causal é que justifica, em hipóteses específicas, a aplicação da inovadora teoria, eis que freqüentemente o lesado depara-se com situações das quais, pela sua natureza mesma, não consegue extrair a vinculação volitiva do agente com o fato lesivo, restando-lhe unicamente o caminho da atribuição de responsabilidade por intermédio da senda objetiva. Ademais, justifica-se igualmente a teoria por força do elementar princípio jurídico de que todo aquele que for lesado por conduta alheia a que não deu causa tem, prima facie, direito de buscar a reestruturação da esfera atingida.