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A dignidade da pessoa humana no pensamento de Kant.

Da fundamentação da metafísica dos costumes à doutrina do direito. Uma reflexão crítica para os dias atuais

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Agenda 31/07/2005 às 00:00

III. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES.

            Kant, com a "Fundamentação da metafísica dos costumes", preocupou-se em demonstrar como os princípios morais, ditados pela razão, devem ser de tal modo valorizados que possam assumir o papel de leis universais. Ao mesmo tempo, Kant valorizou a vida humana e evidenciou que o ser humano deve ser considerado como fim sem si mesmo, e jamais como instrumento de submissão a outrem, sob pena de seus princípios morais não servirem como leis universais. Veja-se, a propósito, o seguinte trecho da aludida obra:

            (...) o imperativo universal do dever poderia também exprimir-se da seguinte forma: age como se a máxima da tua ação devesse se tornar, pela tua vontade, lei universal da natureza. (...) Uma pessoa que, por uma série de adversidades, chegou ao desespero e sente desapego à vida, mas está ainda bastante em posse da razão para indagar a si mesma se não será talvez contrário ao dever para consigo atentar contra a própria vida. Procuremos, agora, saber se a máxima de sua ação se poderia tornar em lei universal da natureza. A sua máxima, contudo, é a seguinte: por amor de mim mesmo admito um princípio, o de poder abreviar a minha vida, caso esta, prolongando-se, me ameace mais com desgraças do que me prometa alegrias. Trata-se agora de saber se tal princípio do amor de si mesmo pode se tornar lei universal da natureza. Mas logo, se vê que uma natureza cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo sentimento cuja determinação é suscitar sua conservação se contradiria a si mesma e não existiria como natureza.

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            Mais adiante, Kant reafirmou a precedência do ser humano:

            (...) supondo que haja alguma coisa cuja existência em si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesma, possa ser o fundamento de determinadas leis, nessa coisa, e somente nela, é que estará o fundamento de um possível imperativo categórico, quer dizer, de uma lei prática. Agora eu afirmo: o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim

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            Em seguida, buscando relacionar a idéia de lei moral universal e do ser humano como fim em si mesmo, Kant assim enunciou o imperativo prático daí decorrente:

            O imperativo prático será, pois, o seguinte:

"age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio". (13)

            Kant também logrou acentuar, como dito anteriormente, que a conservação da vida humana é fundamental, eis que o homem deve ser considerado como um fim em si mesmo:

            Segundo o conceito do dever necessário para consigo mesmo, o homem que anda pensando em se suicidar indagará a si mesmo se a sua ação pode estar de acordo com a idéia da humanidade como fim em si mesma. Se, para fugir a uma situação penosa, se destrói a si mesmo, serve-se ele de uma pessoa como de um simples meio para conservar até ao fim da vida uma situação tolerável. Mas o homem não é uma coisa; não é, portanto, um objeto passível de ser utilizado como simples meio, mas, pelo contrário, deve ser considerado sempre em todas as suas ações como fim em si mesmo. Não posso, pois, dispor do homem em minha pessoa para o mutilar, degradar ou matar

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            E, adiante, insistiu na idéia de lei universal que refuta a utilização do homem como meio para outro fim que não seja ele mesmo:

            Todos os seres racionais estão, pois, submetidos a essa lei que ordena que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si

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            Célebre, ainda, no pensamento de Kant, a conceituação de dignidade como sendo a qualidade daquilo que não tem preço e a sua atribuição ao ser humano, justamente porque não é instrumento, senão um fim em si mesmo:

            No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade. (...) o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade. Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmos, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade

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            Especificando ainda mais o conceito de dignidade humana, Kant equiparou-a à autonomia de sua atitude racional para eleger os princípios morais que possam servir como leis universais:

            A autonomia é, pois, o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional

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            De qualquer forma, Kant não descuidou de demonstrar que a tal prerrogativa do ser humano racional no sentido de ser "legislador universal" não o exime de submeter-se a esta mesma legislação:

            (...) toda a dignidade da humanidade consiste precisamente nessa capacidade de ser legislador universal, se bem que sob a condição de estar ao mesmo tempo submetido a essa mesma legislação

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            Em síntese: na "Fundamentação da metafísica dos costumes", Kant buscou demonstrar que a dignidade da pessoa humana adviria da soma da autonomia do ente racional para a formulação de princípios morais universais, com o fato de o ser humano não ter preço, eis que deve existir enquanto fim em si mesmo e jamais como instrumento para a satisfação dos interesses de outrem.


IV. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA DOUTRINA DO DIREITO, E A SUA DISTÂNCIA DO ENUNCIADO CONSTANTE DA FUNDAMENTAÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES.

            Na primeira parte da "Metafísica dos costumes", conhecida como "Doutrina do Direito", Kant fez raciocínios que se mostram aparentemente discrepantes com o princípio da dignidade humana antes enunciado na "Fundamentação da metafísica dos costumes".

            Se na obra anterior a preocupação de Kant foi a de elaborar conceitos de filosofia moral, nessa nova obra o filósofo alemão tratou de conceitos de filosofia jurídica.

            De qualquer sorte, em matéria de direito, Kant quase sempre se referiu ao ser humano na condição de titular de direitos patrimoniais (direitos reais e pessoais) e nas suas relações familiares e com seus empregados. Relativamente ao que hoje se poderia chamar de uma teoria geral dos direitos da personalidade, Kant se limitou a tratar do direito à liberdade.

            Vale a pena, ao ensejo, a transcrição de alguns de seus trechos, por meros exemplos.

            Preliminarmente, para efeito de transposição da idéia de liberdade que estava impregnada em sua filosofia moral, Kant enunciou como princípio universal do direito a seguinte afirmação:

            É justa toda a ação que por si, ou por sua máxima, não constitui um obstáculo à conformidade da liberdade do arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis universais

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            Buscou Kant, portanto, conciliar, no plano jurídico, a liberdade de cada um com a liberdade de todos. Eis a afirmação e a justificativa de Kant:

            O direito estrito pode também ser representado como a possibilidade de uma obrigação mútua, universal, conforme com a liberdade de todos segundo leis gerais.

            Esta proposição equivale a dizer que o direito não deve ser considerado como constituído de duas partes, a saber: a obrigação segundo uma lei e a faculdade que possui o que, por um arbítrio, obriga a outro obrigar-se ao cumprimento dessa obrigação; exceto que se pode imediatamente fazer consistir a noção do direito na possibilidade de conformar a obrigação geral recíproca com a liberdade de todos

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            No que concerne à existência de um direito natural ou inato, Kant reconheceu apenas um, consistente na liberdade, assim enunciado:

            A liberdade (independência do arbítrio de outrem), na medida em que possa subsistir com a liberdade de todos, segundo uma lei universal, é esse direito único, primitivo, próprio de cada homem, pelo simples fato de ser homem. A igualdade natural, isto é, a impossibilidade moral de ser obrigado pelos demais a mais coisas do que aquelas a que estão obrigados com respeito a nós; (...).

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            Especificamente no que concerne ao que chamava de "Direito Privado" e, neste tópico, discorrendo acerca do apossamento jurídico das coisas, Kant passou a revelar posicionamento incompatível com a idéia de dignidade de pessoa humana que se tem atualmente, na medida em que admitia que seres humanos podiam ser objeto de tal dominação:

            Assim, posso chamar de meus uma mulher, uma criança, um criado, e em geral qualquer outra pessoa, sobre quem exerço mando, não porque formam parte de minha casa, ou porque se encontrem sob minhas ordens, sob meu poder e em minha posse, mas também mesmo quando tivessem iludido meu poder, minha força, e por conseguinte já não os possuísse (fisicamente), posso dizer, contudo, que os possuo por minha simples vontade, enquanto e onde quer que existam. Neste caso estou de posse simplesmente jurídica; forma parte de meu haver somente enquanto e à medida que posso afirmar deles essa circunstância

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            Mais adiante, Kant reafirmou a possibilidade de pessoas serem objeto de posse jurídica exercida por outra pessoa:

            O mesmo deve ser dito da noção da posse jurídica de uma pessoa, enquanto pode formar parte dos bens de alguém (por exemplo a posse de uma mulher, de uma criança, de um criado). Isto é, que esta comunidade doméstica, e a posse mútua do estado de todos os membros que a compõem, não desaparece pela faculdade de localmente se separarem uns dos outros, porque os une um laço de direito, e porque o Meu e o teu exterior, neste caso como nos precedentes, se funda unicamente na suposição da possibilidade de uma posse racional sem ocupação

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            A seguir, outra vez Kant mencionou as pessoas como coisas, ao tratar da caracterização do direito misto que resulta da combinação do direito real com o direito pessoal, com vistas à aquisição de objetos:

            A aquisição, segundo esta lei, é de três espécies quanto ao objeto: o homem adquire uma mulher, o casal adquire filhos e a família servos. Todas estas coisas suscetíveis de aquisição não o são igualmente de alienação, e o direito do possuidor desses objetos lhe é eminentemente pessoal

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            Cuidando do direito doméstico, e em particular do casamento, Kant chegou a admitir expressamente que homem e mulher podem ser tidos como coisas. De qualquer forma, ao verificar a possibilidade da equiparação de pessoas e coisas, Kant tratou imediatamente de buscar afastar o absurdo que tal concepção poderia representar, na medida da reciprocidade do débito conjugal, o que faria com que a personalidade inerente ao homem fosse resgatada na mesma relação. É o que se infere de suas reflexões acerca do débito conjugal:

            Porque o uso natural que um sexo faz dos órgãos sexuais do outros é um gozo (fruitio) para o qual uma das partes se põe à disposição da outra. Neste ato, o próprio homem se converte em coisa, o que repugna ao direito de humanidade em sua própria pessoa. Isto somente é possível sob a condição de que quando uma das duas pessoas é adquirida pela outra, como pudesse sê-lo uma coisa, a aquisição seja recíproca; porque encontra nisto sua vantagem própria e restabelece assim sua personalidade. Mas a aquisição de um certo membro no homem equivale à aquisição de toda a pessoa – porque a pessoa forma uma unidade absoluta. De onde se conclui que a cessão e a aceitação de um sexo para uso de outro, são não somente permitidas, sob condição de matrimônio, como também não são possíveis senão sob essa única condição. Este direito pessoal é também real; porque se um dos esposos se afasta, ou se põe à disposição de uma pessoa estranha, o outro tem sempre o direito incontestável de fazê-lo retornar ao seu poder, como uma coisa

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            Discorrendo sobre os direitos do amo (patrão) sobre os seus criados, Kant deixou claro que se cuida de relação em que uma das partes – o criado – abre mão, por meio de contrato, da sua liberdade – e, por conseguinte,à sua condição de pessoa –, para submeter-se à dominação da outra (patrão):

            (...) o servidor somente está submetido ao seu poder por um contrato, e um contrato no qual uma das partes renunciara a sua liberdade inteira em proveito alheio, cessando, por conseguinte, de ser uma pessoa (...)

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            Importante salientar, ainda, que o filósofo alemão acentuou em seus estudos o caráter real (ainda que em parte) dos contratos que regem tais relações, mesmo que tendo por objeto a prestação de serviços por parte de um ser humano, como se esta pudesse ser tratada como coisa e, portanto, suscetível, por exemplo, de reivindicação:

            (...) há um direito pessoal-real (o do amo sobre os criados), visto que estes podem ser reduzidos ao poder daquele e reivindicados como sua coisa exterior contra todo possuidor (...)

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            Em suma: ao cuidar, em matéria jurídica, dos direitos que podem ser reconhecidos à pessoa, Kant assinalou a premissa da liberdade e, em seguida, afirmou que o ser humano pode ser tratado como coisa, tal como ocorre com aqueles que estão sob a dominação do poder do dono da casa ou do chefe de família, ou seja, as esposas, os filhos e os criados, em uma relação de direito também real.

            Ao dizer, pois, que o homem pode ser juridicamente tomado como coisa, Kant, ao menos aos olhos do leitor dos dias atuais, pôs-se em contradição com a sustentação de que o ser humano deve ser sempre considerado como um fim, e jamais como meio.

            Há, portanto, uma nítida distância – para não dizer incompatibilidade – entre a enunciação teórica da dignidade da pessoa humana em Kant e a sua aplicação no campo do direito.

Sobre o autor
Victor Santos Queiroz

promotor de Justiça no Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Victor Santos. A dignidade da pessoa humana no pensamento de Kant.: Da fundamentação da metafísica dos costumes à doutrina do direito. Uma reflexão crítica para os dias atuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 757, 31 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7069. Acesso em: 5 nov. 2024.

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