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A dignidade da pessoa humana no pensamento de Kant.

Da fundamentação da metafísica dos costumes à doutrina do direito. Uma reflexão crítica para os dias atuais

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Agenda 31/07/2005 às 00:00

V. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A SUA CONCRETIZAÇÃO SEGUNDO A DOUTRINA ATUAL.

            Muito embora não se pode negar, como visto anteriormente, que o princípio da dignidade da pessoa humana pode ter algumas de suas raízes históricas no pensamento de Kant, é importante consignar que a noção que dele se tem na atualidade supera afirmação da mera liberdade racional.

            Nas palavras de JORGE MIRANDA, compreender nos dias atuais o que é o princípio da dignidade da pessoa humana é ter como premissa que o ser humano, como fim de tudo, é um ente real cujas necessidades mínimas concretas não podem estar sujeitas aos modelos abstratos tradicionais:

            Em primeiro lugar, a dignidade da pessoa é da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstracto. É o homem ou a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível e insubstituível e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege. Em todo o homem e em toda a mulher estão presentes todas as faculdades da humanidade

. (28)

            Ainda acerca da concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, JOSÉ CLÁUDIO MONTEIRO DE BRITO FILHO, cuidando da questão da redução do homem à condição análoga de escravo em matéria de relações de trabalho, acentua:

            É que não se pode falar em dignidade da pessoa humana se isso não se materializa em suas próprias condições de vida. Como falar em dignidade sem direito à saúde, ao trabalho, enfim, sem o direito de participar da vida em sociedade com um mínimo de condições?

            (...)

            Dar trabalho, e em condições decentes, então, é forma de proporcionar ao homem os direitos que decorrem desse atributo que lhe é próprio: a dignidade. Quando se fala em trabalho em que há a redução do homem à condição análoga a de escravo, dessa feita, é imperioso considerar que violado o princípio da dignidade da pessoa humana, pois não há trabalho decente se o homem é reduzido a essa condição. Como entende, com perfeição, a OIT, ‘O controle abusivo de um ser humano sobre outro é antítese do trabalho decente’

. (29)

            FÁBIO KONDER COMPARATO, tratando do atualíssimo tema da clonagem de seres humanos, e ainda fulcrado no preceito kantiano de que o ser humano jamais deve ser considerado como coisa, também ressalta a necessidade de que atualizar a noção de dignidade da pessoa humana:

            Que pensar disso tudo, à luz do princípio supremo do respeito à dignidade humana em qualquer circunstância? Em tese, a única prática aceitável, sob o aspecto ético, parece ser a de clonagem humana para fins terapêuticos (por exemplo, tratamento de doenças neurodegenarativas, como o mal de Parkinson, ou o de Alzheimer), no próprio sujeito cujas células foram clonadas. Todas as outras práticas de fecundação artificial ou de engenharia genética violam, claramente, o princípio kantiano de que a pessoa humana não pode nunca ser utilizada como simples meio para a obtenção de uma finalidade alheia, pois ela deve sempre ser tida como um fim em si mesma

. (30)

            Hoje em dia, pois, não seria possível, conviver com a gritante discrepância entre a "Fundamentação da metafísica dos costumes" e a "Doutrina do direito" de Kant no que tange à dominação do homem pelo homem, como se se pudesse inserir o elemento humano no espaço destinado às coisas nas relações jurídicas.


VI. CONCLUSÃO: A NECESSIDADE DE UMA RELEITURA CRÍTICA DO PENSAMENTO DE KANT ACERCA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

            Como se demonstrou, a doutrina atual, ao tratar do princípio da dignidade da pessoa humana, atribui a Kant a sua concepção original.

            Viu-se ainda que Kant, ao mesmo tempo em que, do ponto de vista da filosofia moral, procurou sustentar como fundamental a noção de dignidade da pessoa humana – e isto em decorrência de sua liberdade racional, bem como da sua existência enquanto fim e jamais como meio –, tratou o ser humano como coisa do ponto de vista jurídico, ao falar da condição daqueles que se submetiam ao marido, ao pai e ao patrão.

            A par disso, também se demonstrou como a doutrina atual vincula a noção de dignidade da pessoa humana à inviabilidade de se tratar o ser humano como coisa.

            Restou, pois, evidenciada a insuficiência da mera noção de liberdade racional proposta por Kant para a plena fundamentação do princípio da dignidade humana, sem contar a evidente incompatibilidade entre os preceitos jurídicos enunciados por Kant e a idéia de que o ser humano não pode ser tratado como meio ou objeto.

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            É bem verdade que o universo temporal e espacial kantiano influenciaram seu modo de pensar. Tendo escrito a "Fundamentação da metafísica dos costumes" em 1785 e a primeira parte da "Metafísica dos costumes" em 1797, Kant foi um pensador impregnado dos ideais liberais de sua época, que buscavam a proteção do indivíduo contra os excessos das monarquias absolutistas. Assim, as idéias de liberdade e de valorização de cada ser humano individualmente bem se adaptaram à noção de autonomia racional da pessoa, resultando na elaboração de conceitos jurídicos que pudessem, do ponto de vista privado, satisfazer às necessidades de cada um isoladamente.

            CLAUDIO DE CICCO, prefaciando a tradução da "Doutrina do Direito" para a língua portuguesa citada no presente trabalho, bem circunstanciou o pensamento de Kant a partir das referidas condições e demonstrou seus objetivos:

            (...) o princípio da liberdade não poderia valer só para alguns – pois então não seria um ‘princípio’ mas uma regra de solução de casuísmo. Isto significa que ele deve valer para todos, todos devem gozar de liberdade, o que é um postulado igualitário. Entretanto, a igualdade preconizada por Kant, garantida pelo Estado e pelo Direito, tanto quanto a liberdade, é a igualdade de oportunidade, a igualdade no ponto de partida, todos terem direito ao básico (hoje elencaríamos habitação, saúde, educação, trabalho, alimentação), mas fica o progresso de cada um dependendo do seu esforço e dinamismo, o que distancia Kant de todos os que pretendem uma igualdade permanente.

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            Talvez tenha sido suficiente para Kant, pois, consagrar a noção meramente teórica de que o ser humano é dotado de autonomia racional, daí decorrendo, com a proteção estatal por força da coerção de que dotado o direito, a possibilidade da convivência pacífica em sociedade, ainda que isto implicasse, na prática e em algumas hipóteses, o tratamento do ser humano como coisa.

            De qualquer sorte, na medida em que ultrapassado o universo temporal em que viveu Kant, é possível concluir que a utilização de seus preceitos teóricos para a fundamentação da noção de dignidade da pessoa humana na atualidade deve ser feita com as devidas reservas.

            Se é verdadeira a assertiva de que a noção de Kant acerca da autonomia racional do ser humano serve como um dos fundamentos teóricos do princípio da dignidade humana, não é menos verdadeira a conclusão no sentido de que a sua concretização nos dias atuais não pode a ela se limitar, já que inadmissível, na prática, que o ser humano trate a um seu semelhante como coisa.


VII. REFERÊNCIAS.

            BERGEL, Jean-Louis – "Teoria geral do direito"; tradução de Maria Ermantina Galvão – São Paulo: Martins Fontes, 2001.

            COMPARATO, Fábio Konder – "A afirmação histórica dos direitos humanos", 3. ed. – São Paulo: Saraiva, 2003.

            CUNHA, Alexandre dos Santos – "A normatividade da pessoa humana: o estudo jurídico da personalidade e o Código Civil de 2002" – Rio de Janeiro: Forense, 2005.

            DINIZ, Maria Helena – "Compêndio de introdução à ciência do direito", 7. ed. – São Paulo: Saraiva, 2005.

            FILHO, José Cláudio Monteiro de Brito – "Trabalho com redução do homem à condição análoga a de escravo e dignidade da pessoa humana, in http://www.pgt.mpt.gov.br/publicacoes/escravo.html, acesso em 6 de junho de 2005.

            GARCIA, Maria – "Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da responsabilidade" – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

            KANT, Immanuel – "Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos"; tradução de Leopoldo Holzbach – São Paulo: Martin Claret, 2004.

            "Doutrina do direito"; tradução de Edson Bini – São Paulo: Ícone, 1993.

            MEIRELLES, Jussara Maria Leal de – "A vida humana embrionária e sua proteção jurídica" – Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

            MIRANDA, Jorge – "Manual de direito constitucional", tomo IV, 2. ed. – Coimbra Editora, 1993.

            REALE, Miguel – "Introdução à filosofia", 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 1989.


NOTAS

            01

Alexandre dos Santos Cunha, A normatividade da pessoa humana: o estudo jurídico da personalidade e o Código Civil de 2002, p. 85/88.

            02

Jean-Louis Bergel, Teoria geral do direito, tradução de Maria Ermantina Galvão – São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 48.

            03

Maria Helena Diniz, Compêndio de introdução à ciência do direito, 7. ed. – São Paulo: Saraiva, 1995, p. 39/40.

            04

Miguel Reale, Introdução à filosofia, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1989, p. 168.

            05

Maria Garcia, Limites da ciência: a dignidade da pessoa humana: a ética da responsabilidade, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 196/197.

            06

Maria Garcia, op. cit., fazendo referência a Nicola Abbagnano, p. 196/197, nota 101.

            07

Maria Garcia, op. cit., mencionando Franco Bartolomei, p. 199/200, nota 106.

            08

Jussara Maria Leal de Meirelles, A vida humana embrionária e sua proteção jurídica, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 154, nota 164.

            09

Maria Garcia, op. cit., p. 208.

            10

Fábio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 21/22.

            11

Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, tradução de Leopoldo Holzbach, São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 52.

            12

Immanuel Kant, op. cit., p. 58.

            13

Immanuel Kant, op. cit., p. 59.

            14

Immanuel Kant, op. cit., p. 60.

            15

Immanuel Kant, op. cit., p. 64.

            16

Immanuel Kant, op. cit., p. 65.

            17

Immanuel Kant, op. cit., p. 66.

            18

Immanuel Kant, op. cit., p. 70.

            19

Immanuel Kant, Doutrina do direito; tradução de Edson Bini – São Paulo: Ícone, 1993, p. 46.

            20

Immanuel Kant, op. cit., p. 47.

            21

Immanuel Kant, op. cit., p. 55.

            22

Immanuel Kant, op. cit., p. 67.

            23

Immanuel Kant, op. cit., p. 75.

            24

Immanuel Kant, op. cit., p. 105.

            25

Immanuel Kant, op. cit., p. 106/107.

            26

Immanuel Kant, op. cit., p. 113.

            27

Immanuel Kant, op. cit., p. 114.

            28

Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, tomo IV, 2. ed. – Coimbra Editora, 1993, p. 169.

            29

José Cláudio Monteiro de Brito Filho, Trabalho com redução do homem à condição análoga a de escravo e dignidade da pessoa humana, in http://www.pgt.mpt.gov.br/publicacoes/escravo.html, p. 7/8, acesso em 6 de junho de 2005.

            30

Fábio Konder Comparato, op. cit., p. 291.

            31

Cláudio de Cicco, Doutrina do direito (cit.); prefácio – São Paulo: Ícone, 1993, p. 9.
Sobre o autor
Victor Santos Queiroz

promotor de Justiça no Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Victor Santos. A dignidade da pessoa humana no pensamento de Kant.: Da fundamentação da metafísica dos costumes à doutrina do direito. Uma reflexão crítica para os dias atuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 757, 31 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7069. Acesso em: 23 abr. 2024.

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