5. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA NAS AÇÕES DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
A problemática apresentada neste trabalho tem como objeto uma modernização científica que, inexoravelmente, estende seus efeitos no mundo jurídico.
Com a descoberta do exame de ADN, podem-se perceber injustiças praticadas em alguns processos, por não haver, à época da decisão, elementos suficientes para caracterização da paternidade, ou pela impossibilidade financeira de as partes o realizarem, mesmo hoje em dia.
Moderna doutrina trata do assunto concernente à relativização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade. Cuida-se, como apontado, de uma confrontação da justiça com a segurança jurídica, ou com a lei propriamente.
Vê-se em contraposição o comando legal, determinando seja respeitada a coisa julgada e, de outro, uma injustiça patente, posto que se demonstra, através de prova irrefutável, o equívoco da decisão.
Dada a confiabilidade da prova apresentada, no caso em tela, o exame de ADN (analisado anteriormente no item 4.1.2.1), a comunidade jurídica depara-se, atualmente, com tal entrave.
Todavia, antes de adentrarmos à conclusão, precisamos descartar a hipótese de cabimento de outro remédio jurídico capaz de solucionar o problema.
5.1. Impossibilidade de ajuizamento de ação rescisória
No caso apresentado neste trabalho, vale dizer, há que se considerar a impossibilidade de ajuizamento de ação rescisória, uma vez que, se assim não fosse, o direito brasileiro já apresentaria solução para o caso.
É que o caput do art. 485 do Código de Processo Civil assim reza: "a sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando" e apresenta hipóteses que autorizam sua propositura.
Trata-se de uma ação autônoma de impugnação que visa a desconstituir a sentença que se deu com ocorrência de alguma das hipóteses dos incisos I a IX do art. 485, do CPC.
É, como dito, uma ação e não – como confundem alguns – recurso. Conforme esclarece Pontes de Miranda: "nunca é demais exprobar-se que advogados, juízes e – até – professores da matéria chamem de recurso ao habeas corpus, à ação rescisória, à revisão criminal e ao mandado de segurança. São ações indubitavelmente". 89
Rescindibilidade, segundo o mesmo autor, não se confunde com sua não-existência, não-eficácia ou invalidade ou anulabilidade. "A parecença maior é com a revogação ou com a retratação". 90 Todavia conclui que revogação e retratação pressupõem que o ato (vox) tenha sido emanado da mesma pessoa.
Frise-se que, como aponta Barbosa Moreira, sentença rescindível não quer dizer nula, nem inexistente. 91 Deve, ao revés, tratar-se de sentença que, não interposta ação rescisória, o defeito deverá convalescer. No caso de nulidade da sentença, porém, esta pode ser declarada a qualquer tempo, vez que nulidade não se pode sanar.
Outro aspecto que, por vezes, gera confusão, é o fato de poder haver uma conclusão precipitada de que as sentenças que podem ser objeto de ação rescisória não fazem coisa julgada. Ao contrário, trata-se de pressuposto para o ajuizamento da ação. 92 Deve, inclusive, haver sido operada a coisa julgada material.
Todavia, o pretenso autor de ação rescisória dispõe de um prazo para sua interposição. O art. 495, do CPC, prevê que "o direito de propor ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão".
Poder-se-ia, em alguns casos de ação de investigação de paternidade, haver uma das hipóteses elencadas nos incisos do art. 485, do CPC.
Trataremos, porém, da possibilidade de isto não ocorrer, posto que, em havendo, já existiria remédio jurídico disponível ao desfazimento da decisão.
Ou mesmo, em ocorrendo qualquer das hipóteses, já houver transcorrido o prazo previsto no art. 495, do CPC. Neste caso, sim, haveria de pairar uma dúvida acerca da solução jurídica a se lançar mão.
5.2. Impossibilidade de ajuizamento de querela nullitatis
Ainda seguindo as mesmas linhas traçadas referentes ao item anterior, poderia haver, em determinada ação de investigação de paternidade, situação propícia ao ajuizamento da ação de querela nullitatis, a fim de se encontrar solução ao problema.
A ação de querela nullitatis se presta à declaração, por parte do órgão jurisdicional acerca de alguma nulidade – como já indica o nome – havida no processo. Diferentemente da ação rescisória, esta outra não tem prazo para sua interposição. 93
Posto tratar-se de nulidade, esta poderá ser declarada a qualquer tempo e tal declaração surtirá efeitos em outra ação, mesmo se esta última já houver transitado em julgado.
Ensina Barbosa Moreira, que a criação da querela nullitatis se deu no "direito intermédio, nos estatutos italianos, por influência dos elementos germânicos misturados aos de origem romana". 94
É cabível, por exemplo, no caso de haver uma nulidade na citação, em que o processo segue até final julgamento com a presunção de que o réu tenha sido citado e este sequer tenha tomado conhecimento de ação proposta contra si.
Sigamos, pois, admitindo a hipótese de ausência de errores in procedendo em dada ação de investigação de paternidade, posto que, se assim não fosse, a ação de querela nullitatis poderia ser meio adequado à solução do problema aventado no presente trabalho.
5.3. Conclusão
Perpassadas todas essas hipóteses sem que o direito positivo brasileiro tenha solução eficaz e atual, façamos a perquirição sobre o tema objeto desta monografia.
Quando se fala em erro na decisão que declara a não paternidade, o que freqüentemente ocorre é a falta de apresentação de provas convincentes, como o ADN.
Já nas sentenças que declaram a paternidade, deve-se lembrar que, muitas das vezes, o que ocorre é um julgamento apressado ou apaixonado por parte do magistrado que se compadece da situação de um filho sem pai.
Sábias as palavras de Belmiro Welter: "o Poder Judiciário, sob pena de perder a razão de ser, tem o dever legal de dar o pai, e não um pai ao investigante". 95
Ocorre que, em muitos casos, há apenas indicações no sentido de que o investigado é o pai do investigante, e o magistrado, a despeito de conter nos autos elementos robustos que provem isso, declara ser pai quem, de fato, não é.
Imagine-se, portanto, alguém passar cinco, seis anos pagando pensão alimentícia a um filho que não é seu, somente porque não houve possibilidade de realizar o teste de ADN.
Essa impossibilidade pode ter ocorrido por dois motivos: ou não havia sido inventada a técnica do teste de paternidade, com uso do ADN, à época do processo, ou o investigado e investigante não possuíam condições financeiras para arcar com o custo do exame, uma vez que este tem um preço elevado para sua realização.
A injustiça é manifesta.
Doutro lado, vê-se alguém protegido sob o pavês da coisa julgada. Alega-se, para a defesa desta corrente, que, durante todo o processo, o investigado dispôs de todos os meios de defesa admitidos no processo civil brasileiro e, ainda assim, saiu-se derrotado. Além disso, defende-se a ordem jurídica vigente e a segurança jurídica.
Entende-se, assim, que um princípio protegido e consagrado pela Constituição Federal não pode ser desatendido por parte do Judiciário, pena de se legar a este poder grande perda de sua confiabilidade e às suas decisões o caráter de fragilidade perene.
O intricado problema afigura-se-nos como uma inquietante provocação ao legislador brasileiro, para que solucione um impasse.
"De um lado, deve ser estabelecido sistema processual que garanta a efetivação do direito e da justiça da forma mais perfeita possível; de outro, deve ser garantida a estabilidade das relações jurídicas, a fim de que não se instaure a insegurança, terrivelmente prejudicial à convivência social". 96
A nosso ver, a solução do problema encontra suas raízes no princípio de toda ciência do direito. Há que se procurar seu próprio sentido. Antes do direito, a justiça. Aquele tem de seguir esta.
Pode-se notar juridicamente possível e razoável a desconstituição desses julgados e, ainda, a modificação da lei, com o fito de se adequar a norma à nova realidade.
Não se pugna, aqui, pela total desmoralização da coisa julgada, uma vez que não se deve conceber a mudança amiúde de sentenças definitivas, por qualquer fato novo. Todavia, trata-se de um caso de evolução tecnológica capaz de se dizer, com certeza científica, o que pretende o juiz com toda a instrução processual.
E, se se disse o contrário, deve prevalecer a justiça, pois que este é o princípio maior do direito.
Outro argumento para a defesa da impossibilidade de desconstituição do julgado, é que, assim não fosse, estaria a função do juiz anulada, visto como o que valeria não seria o que conclui o magistrado, mas o biólogo.
Entendemos descabida esta alegação, face ao poder que possui o juiz de recusar qualquer perícia realizada no curso do processo, se entender de modo contrário ao do laudo.
Ocorre que, para julgar conforme o laudo, o julgador pode motivar sua decisão no resultado da perícia. Ao revés, se quiser decidir contra o exame pericial, deve fundamentar tão robustamente que supra até o resultado do mesmo.
Além disso, na quase totalidade dos casos a ação de investigação de paternidade vem cumulada com pedido de alimentos e, para determinar o quantum da prestação, é imprescindível a atuação do magistrado.
Insistimos, ainda, que não haveria razão por que o juiz não julgar conforme o resultado do teste de paternidade nas ações investigatórias, uma vez que todo o desenvolver do processo se dá com vistas exatamente ao que se vai declarar no exame.
Além do que, a leitura que se deve fazer acerca do teste de ADN é de otimismo, posto que o auxílio prestado pela medicina ao deslinde de casos na vida forense mostra-se, atualmente, de ímpar valia.
Um problema que, de fato, existe quanto aos testes de paternidade consiste nas fraudes ocorridas no fazimento do exame. Quanto a isso, porém, o direito brasileiro já tem seus mecanismos de apuração para solucionar o caso e, sempre que o juiz achar prudente, pode determinar que seja repetido o teste em laboratório diferente, como corolário de seu poder de instrução no processo.
Sedimentando nossa posição, citamos também que a ação de investigação de paternidade não tem natureza patrimonial, mas, sim, é uma ação de estado, que envolve direitos indisponíveis, irrenunciáveis e imprescritíveis.
Não se trata, aqui, de discussão de uma dívida que já foi paga ou de uma partilha realizada injustamente. Trata-se de um direito de filiação. Em se mantendo a decisão que é, à vista de todos, manifestamente injusta, aí, sim, estar-se-á diminuindo a credibilidade dos Poderes Judiciário e Legislativo frente à sociedade.
Quando se fala, portanto, nesta perda de credibilidade no caso da desconstituição das sentenças prolatadas pelo judiciário, seguidas todas as formalidades legais, o que se vê é justamente o contrário, uma vez que descreditante seria um poder julgar uma ação, de modo que se mostre, posteriormente, com certeza científica, o contrário do que se decidiu.
Por outro lado, ataca-se a desconstituição destes julgados, com fulcro na alegação de que a segurança jurídica seria um princípio geral do direito. De fato, trata-se de um princípio e, como tal, deve-se sobrepor às leis.
No entanto, a defesa da relativização da coisa julgada também se funda em princípios do direito. Um deles é o princípio da justiça das decisões judiciais, decorrente da garantia constitucional de acesso à prestação jurisdicional, previsto no art. 5º, XXXV, da Carta Magna. 97 Além desse, pode-se fundamentar esta tese nos princípios da cidadania e dignidade da pessoa humana, previstos como fundamentos da CF, em seu art. 1º, II e III.
Quando ocorre, portanto, choque entre princípios, devem-se harmonizá-los, visto como princípios não se revogam.
Entendemos a fundamentada posição do Prof. José Orlando de Carvalho, o qual declara que hoje experimentamos uma insegurança jurídica ocorrida "sobretudo pela crescente e hemorrágica edição de leis, muitas delas em completo ferimento ao próprio arcabouço jurídico constitucional". 98
Em trecho posterior, declara que esta insegurança é causada justamente pela "instabilidade da coisa julgada ante o contexto de determinadas relações jurídicas". 99
Acatamos, em parte, a lição do citado autor, porque, de fato, há, no Brasil, um amontoado de leis, muitas delas, inócuas. Legisla-se, no nosso país, a qualquer pretexto.
Todavia, não se deve conceber a coisa julgada acima da justiça nas decisões judiciais. A segurança jurídica é um dos princípios que norteiam o direito brasileiro.
A matéria apresentada é objeto de recentes transformações e contribuições, tanto doutrinárias quanto jurisprudenciais. Têm-se percebido mudanças acerca de sua compreensão.
Não há vasta doutrina sobre o assunto, mas se percebem inquietações, a nosso ver, pela injustiça manifesta das decisões contrárias à apuração científica da real paternidade.
Podemos trazer a lição de Reinaldo Pereira e Silva que entende que "sem desconhecer a importância da coisa julgada para a garantia da segurança jurídica, não se pode, no entanto, torná-la uma barreira à persecução da justiça". 100
Em outro trecho, confirma, o mesmo autor, sua posição: "os atributos de não prescrição da ação de investigação de paternidade e de não disponibilidade dos interesses por ela promovidos revelam-se incompatíveis com qualquer restrição decorrente da coisa julgada". 101
Também podemos colacionar as palavras de Cândido Dinamarco acerca da relativização da coisa julgada:
"Deve aplicar-se a todos os casos de ações de investigação de paternidade julgadas procedentes ou improcedentes antes do advento dos modernos testes imunológicos (HLA, DNA), porque do contrário a coisa julgada estaria privando alguém de ter como pai aquele que realmente o é, ou impondo a alguém um suposto filho que realmente não o é". 102
Como explicava Agnes Heller, "as normas e regras que constituem um grupo social podem ser declaradas injustas (...) mesmo se as normas e regras em questão forem consistentemente aplicadas". 103
Porém, conclui o autor que "não se podem criticar normas e regras existentes racionalmente sem propor alternativas, ou, pelo menos, um procedimento alternativo". 104
E, com o fito de contornar o problema, portanto, já se vêem manifestações nesse sentido. Há uma proposta de nova redação do art. 1.606 do Novo Código Civil, in verbis:
"Art. 1.606. A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz.
Parágrafo primeiro. Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo.
Parágrafo segundo. Não fazem coisa julgada as ações de investigação de paternidade decididas sem a realização do exame de DNA" (grifamos). 105
Esta é, no nosso entender, de fato, uma tentativa capaz de solucionar a questão, uma vez que é resultado de uma experimentação prática deste problema e atua pontualmente na questão.
Do Superior Tribunal de Justiça, também podemos notar avanço neste sentido. Vejamos alguns trechos que valem ser trazidos aqui. Esta decisão é no sentido de que a apresentação do teste de ADN não preclui.
"DIREITOS CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PROVA GENÉTICA. DNA. REQUERIMENTO FEITO A DESTEMPO. VALIDADE. NATUREZA DA DEMANDA. AÇÃO DE ESTADO. BUSCA DA VERDADE REAL. PRECLUSÃO. INSTRUÇÃO PROBATÓRIA. INOCORRÊNCIA PARA O JUIZ. PROCESSO CIVIL CONTEMPORÂNEO".
"Na fase atual de evolução do Direito de Família, não se justifica inacolher a produção de prova genética pelo DNA, que a Ciência tem proclamado idônea e eficaz". 106
Este outro acórdão é de uma ação de investigação de paternidade julgada improcedente no juízo a quo, cuja sentença foi desconstituída pelo STJ. A fundamentação é semelhante à dos casos em que se declara e, posteriormente, desconstitui-se.
"Quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior".
"Nos termos da orientação da Turma, sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real".
"A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum". 107
Entendemos que o direito deve acompanhar as transformações experimentadas na sociedade, em permanente adaptação às mudanças no relacionamento entre as pessoas e aos avanços tecnológicos. Em nossa opinião, andou bem o STJ particularmente nesse julgado. Busca-se, assim, a constante atualização dos operadores do direito em perene aplicação da justiça.
A justiça, no dizer de John Rawls:
"É a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade é para o pensamento. Uma teoria que, embora elegante e econômica, não seja verdadeira, deverá ser revista; da mesma forma, leis e instituições, por mais eficientes e engenhosas que sejam, deverão ser reformuladas ou abolidas se forem injustas". 108
E, como afirmava Eduardo Couture, "O direito não é um fim, mas um meio. Na escala dos valores, não aparece o direito. Aparece, no entanto, a justiça, que é um fim em si, e a respeito da qual o direito é tão-somente um meio para atingi-la". 109
E em célebre assertiva assevera: "teu dever é lutar pelo direito; porém, quando encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça". 110