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Conflito de competência em matéria tributária nas operações de industrialização por encomenda

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Agenda 09/09/2020 às 14:20

4 - DO INSTUTITO DA INDUSTRIALIZAÇÃO POR ENCOMENDA E DO ENQUADRAMENTO TRIBUTÁRIO

Antes de iniciar  estudo acerca do enquadramento tributário e das nuances fiscais do tema proposto neste trabalho, imprescindível uma introdução conceitual do que vem a ser industrialização considerando a expressão de maneira ampla, para após adentrarmos sobre o conceito da industrialização por encomenda de terceiros. Aqui, deve-se voltar para o conceito industrial, ligado mais às ciências exatas e à engenharia do que ao direito.

Nos mesmos termos trazidos por Marcellus Serejo Ribeiro[19] (apud Blachere, 1977), pode-se definir industrialização como método que,

[...] "entre as várias modalidades de produção, é baseado essencialmente em processos de natureza repetitiva e nos quais a variabilidade incontrolável e casual de cada fase de trabalho, que caracteriza as ações artesanais, é substituída por graus pré-determinados de uniformidade e continuidade executiva, característica das modalidades operacionais parcial ou totalmente mecanizadas."

Depreende-se desse breve conceito acima que o processo de industrialização possui certas características que o tornam peculiar e único: i) tem natureza repetitiva, inexistindo personalização e/ou individualização do produto final; ii) o produto final resultado do processo industrial segue um padrão e é uniforme, desconectado de qualquer capacidade criativa do executor; iii) está vinculado a processo de produção controlado e tecnológico, desprovido de qualquer fase artesanal, de modo a transformar de maneira massiva os insumos aplicados em um produto final a ser disponibilizado ao mercado; iv) visa à padronização dos processos e etapas, resultando na racionalização da mão-de-obra, na especialização técnica e na redução de custos.

Interessante mencionar que tal instituto é mutável e vem se amoldando à história da humanidade e às inúmeras revoluções industriais ocorridas ao longo dos séculos. Assim, resta claro que, após o desencadeamento da Primeira Revolução Industrial e da invenção das máquinas, o processo industrial tem ficado cada vez mais automatizado (Segunda Revolução Industrial) e tecnológico (Terceiro Revolução Industrial), causando uma crescente segmentação e demandando conhecimentos específicos atrelados a cada uma das fases das etapas produtivas.

Assim, em linha com esse movimento de aperfeiçoamento dos processos produtivos, tem-se cada vez mais buscado especialistas para executar cada etapa do processo, já segmentadas, de modo a conferir aos produtos a melhor qualidade possível, aliada à redução de tempo, de recursos e de custos. Assim, a figura da industrialização por encomenda surge e se desenvolve nesse cenário de crescente complexidade e dinamismo no meio industrial, de modo que o encomendante contrata uma (ou mais) empresa(s), perita(s) em determinada fase do processo industrial, para participar de forma direta no aperfeiçoamento e beneficiamento do produto.

Para trazer luz a esta figura tão difundida hodiernamente nas cadeias produtivas e nos ciclos industriais, o instituto da industrialização por encomenda pode ser conceituado como a operação em que o encomendante, após iniciado o processo de industrialização em seu sítio industrial, endereça insumos para um outro estabelecimento industrializador, dotado de know-how específico, para executar determinada fase do processo produtivo, realizar o beneficiamento do produto por conta e ordem do remetente, e, após, devolver a mercadoria devidamente beneficiada para posterior comercialização ou industrialização por parte do encomendante.

Em linha com tal entendimento, vejamos ensinamento proferido por Roberto Biava Júnior[20] em artigo sobre o tema:

(...) "a pessoa jurídica industrial (‘autor da encomenda’) remete a esta pessoa jurídica (‘industrializador por encomenda’) determinados insumos de sua propriedade para que este industrializador proceda com os chamados ‘serviços de industrialização’, podendo este último também agregar novos insumos ao processo industrial. Ao final desta etapa produtiva a pessoa jurídica (‘industrializador por encomenda’) remete o produto industrializado à pessoa jurídica industrial (‘autor da encomenda’), cobrando desta primeira um determinado preço, que engloba os chamados ‘serviços de industrialização’ e o valor dos produtos (insumos) de propriedade do ‘industrializador por encomenda’ que por ventura foram aplicados neste processo produtivo."

Devidamente conceituado, convém tecer comentários acerca das peculiaridades atreladas à industrialização por encomenda, de modo a edificar de maneira firme a base para opinar, mais a frente, sobre a tributação mais adequada vinculada a tais operações.

Inicialmente, é imediatamente constatado que a contratação da industrialização pelo encomendante não guarda relação com a execução de serviços personalizados. Enquanto na industrialização por encomenda o processo de produção é repetitivo, gerando produtos finais padronizados e produzidos em massa, o processo de personalização é atrelado a um processo criativo e intelectual por parte do contratado, resultando em produtos únicos, individualizados e que não podem ser reproduzidos de maneira sistemática.

Assim sendo, ainda que no processo de industrialização por encomenda o produto final seja produzido nos termos pactuados em contrato e sob especificações exigidas pela empresa encomendante, não há que se falar em personalização deste produto final – aqui, deve-se deixar claro que o ato de personalização/individualização é diferente do simples atendimento às exigências e necessidades do contratante.

Para que fique claro, personalizar é tornar o produto final único e irreproduzível, individualizando-o. Não é, nem nunca será, o objetivo final de um processo industrial, em que o foco é a repetição dos processos e produção em massa, onde o produto final é resultado de uma série repetitiva e pré-estabelecida de fases, de modo a chegar em um produto final padronizado, mas não individualizado.

Fica eminentemente constatado, portanto, que a capacidade criativa e intelectual do industrializador é subjugada à necessidade de entrega do produto final – por mais que o executor da encomenda tenha liberdade para modificar o processo industrial, os produtos finais terão que ser entregues de acordo com as especificações técnicas acordadas entre as partes. Assim, resta claro que o objeto desta relação jurídica entre autor e encomendante é a entrega do bem beneficiado (obrigação de dar, portanto) nos termos esperados e exigidos pelo contratante.

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O segundo ponto de atenção a ser abordado é a localização da industrialização por encomenda na cadeia industrial. É de se observar que, do ponto de vista do encomendante, a etapa desempenhado pela empresa contratada ocupa sempre posição intermediária quando analisado o processo global, iniciado no encomendante. Assim, notório que o objetivo da contratação é beneficiar o item (insumo para o contratado, e produto para o encomendante) remetido para industrialização, retornando logo após ao estabelecimento do encomendante para posterior industrialização ou comercialização ao consumidor final. Logo, não há que se falar em relação do autor da encomenda com o consumidor final, uma vez que a relação jurídica neste caso se dá exclusivamente entre as empresas industriais.

Importante pontuar que essa peculiaridade afasta ainda mais uma eventual classificação dessa fase como uma personalização do produto final. Como pode o autor da encomenda prestar um serviço personalizado se nem saberá a quem se destina o produto final a ser colocado no mercado pelo encomendante? Assim, não restam dúvidas de que o produto desta fase intermediária obrigatoriamente voltará ao estabelecimento industrial contratante, para que encerre o processo de industrialização, e, após, ser posto no mercado.

Dito isto, conclui-se que o processo de industrialização por encomenda é uma fase da cadeia produtiva, objetivando agregar valor à mercadoria durante o ciclo industrial para que, após conclusão da industrialização pelo encomendante, seja colocada por este no mercado com maior qualidade e menor custo possível.

Um outro ponto relativo às operações de industrialização de encomenda diz respeito à necessidade (ou não) de o encomendante remeter insumos a serem industrializados pelo autor, e em que percentual. Neste diapasão, merece destaque o Ato Declaratório Interpretativo nº 20/2007, em que a Receita Federal indica a necessidade de haver preponderância dos custos dos insumos fornecidos pelo encomendante – todavia, este ato foi revogado em 2008, inexistindo até a presente data qualquer outra regra ou ato que expresse o entendimento da Administração Pública acerca do fornecimento de insumos relativos às operações de industrialização por encomenda.

Diante da ausência de disposição legal e analisando o instituto já conceituado acima, entende-se que sempre deverá haver a remessa do produto oriundo da primeira fase, industrializado pelo encomendante, bem como existir também o emprego de insumos por parte do industrializador responsável pela etapa intermediária. Entretanto, não há que se falar em preponderância de um ou outro produto, tendo em vista que tal proporcionalidade não resultará em um ou outro enquadramento. Ao invés da preponderância, deve-se observar as características da operação.

Assinala-se, contudo, que haverá obrigatoriedade do executor da etapa intermediária, enquanto industrial, empregar insumos próprios para consecução de sua atividade; se assim não o fosse, não poderia ser enquadrado como empresa industrial – ao menos ao executar esta operação específica. Portanto, empregar insumos próprios durante a cadeia intermediária é obrigação do autor da encomenda – sejam matérias-primas, produtos intermediários, ou embalagens, sob pena de desconfigurar uma operação de industrialização e executar um mero serviço.

Por óbvio que se deve observar a preponderância da operação no processo global e focar no objetivo dos participantes, especialmente para fins tributários. De modo a ilustrar a necessidade de se observar essa preponderância – apesar de não ser o tema deste trabalho – pode-se citar o benefício de suspensão do IPI[21] conferido às operações de industrialização por encomenda nas remessas de insumos a serem industrializados por terceiros. Tal suspensão é garantida quando se executa uma industrialização por encomenda. Entretanto, caso a operação executada por esse terceiro abranja grande parte do processo industrial, tem-se um desvirtuamento da obrigação e a participação do remetente fica reduzida a um simples fornecimento de insumos, motivo pelo qual esta operação não deverá ser classificada como industrialização por encomenda nem será beneficiada pela suspensão garantida pelo Regulamento do IPI.

Deste modo, consolida-se que, para uma determinada operação ser classificada como industrialização por encomenda, deverá guardar – ao menos preponderantemente – todas as características mencionadas alhures, respeitando-se sempre a destinação do produto industrializado e a sistematização do processo produtivo de modo a beneficiar produtos de forma massiva, não personalizada. Afastada qualquer das características reportadas acima, não há que se falar em industrialização por conta e ordem de terceiro – ou porque não se configura industrialização (nos casos de processos personalizados), ou porque não foram executadas por conta e ordem de terceiro (nos casos em que há uma participação desproporcional do autor da encomenda).

Assim sendo, fazendo-se um contraponto entre tais características e os comentários tecidos a respeito das obrigações de dare e facere, incontroversa a segmentação entre a incidência do ISS e do IPI nos serviços ligados ao processo de transformação e beneficiamento de produtos: na prestação de serviços voltados à fabricação de itens individualizados e/ou personalizados, não reproduzíveis, há a preponderância da obrigação de facere e estará sujeita à tributação do ISS; por outro lado, na industrialização por encomenda, quando o produto em processo de industrialização é remetido a terceiro para executar uma fase do processo industrial, executada de forma massiva e padronizada, ocorre a predominância da  obrigação de dare, sujeitando-se à tributação pelo IPI. Inequívoco, pois, que a ação de industrializar é um serviço – todavia, o objetivo desta ação não é prestar um serviço individualizado ao contratante, e sim fornecer determinado produto nos termos e condições pactuadas em contrato.

Tendo em vista todo o ora exposto, conclui-se que a industrialização por encomenda deve ser tributada pelo IPI, considerando:

  1. a prevalência da obrigação de dar à de fazer, uma vez que a obrigação do autor é entregar a mercadoria beneficiada/transformada para o encomendante, não se falando em individualização ou personalização do produto final resultado do processo industrial e;
  2. a localização da operação na cadeia produtiva para se realizar a devida classificação: somente são enquadrados como serviços aqueles prestados a consumidor final, no momento em que a prestação se materializa e atende o objeto da contratação. Assim, a industrialização por encomenda, por se localizar no meio da cadeia produtiva e não ser prestada a consumidor final, não poderá ser tributada pelo ISS.

Neste cerne, se a operação executada pela empresa industrializadora estiver localizada no meio da cadeia produtiva, destinando os produtos fabricados a subsequente processo de industrialização ou a posterior comercialização, não poderá ser classificada como serviço – já que não é prestada a consumidor final. Corroborando com tal entendimento, vejamos trecho presente no manual “IPI e ICMS para a Indústria e o Comércio”[22]:

(...) "um serviço estará plenamente caracterizado na hipótese em que for prestado a usuário final. Assim, não poderiam ser considerados como serviços, aqueles realizados no meio de uma cadeia produtiva ou comercial, ou seja, em relação a produtos ou operações não destinadas a usuário final, mas destinadas a posterior comercialização ou industrialização."

Neste mesmo diapasão, vejamos opinião de Condorcet Rezende e Gustavo Brigagão acerca do conflito de competência entre o IPI e o ISS e a localização do serviço na cadeia produtiva:

"O que permite essa definição é a constatação de tais atividades estarem sendo exercidas no ciclo de industrialização do produto. Se for esse caso, o tributo incidente será o IPI, em razão da expressa atribuição de competência à União para tributar os produtos decorrentes daquele ciclo. Nas demais hipóteses, em que aquelas atividades estejam sendo exercidas por encomenda de um usuário final, o imposto incidente será o ISS."[23]

Por fim, admitir a incidência do ISS em face da incidência do ICMS e do IPI, caso a etapa de industrialização promovida pelo contribuinte se encontre no meio do ciclo de fabricação do produto final vendido pela empresa encomendante, acarretaria distorções ao princípio da não-cumulatividade e aumento dos custos vinculados à fabricação da mercadoria que será posta à venda, tendo em vista o condão cumulativo do ISS e a impossibilidade do industrial apurar créditos para abater os custos de produção. Corroborando com tal conclusão, merece destacar trecho do voto proferido pela Ministra Ellen Gracie na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI nº 4.389/STF, abaixo colacionado:

(...) "evento que se encontra no meio do ciclo de fabricação do produto final a ser colocado no mercado, sendo que a sua caracterização como simples prestação de serviços (...), geraria uma distorção na não-cumulatividade do ICMS; a rigor, frustra o objetivo constitucional desse mecanismo (diluir a exigência do ICMS por todo o ciclo econômico de circulação de mercadorias), pois introduz um imposto cumulativo (ISS) no ciclo econômico de mercadorias sujeitas a um imposto não-cumulativo (ICMS). Rompe-se a sequência da não-cumulatividade e oneram-se os custos de ambos (fabricantes e adquirentes de embalagens)."

Desse modo, é de se concluir que, caso a operação seja classificada como industrialização por encomenda, sujeitando o produto a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, nos termos do parágrafo único do art. 46 do CTN, e executada por encomenda em etapa intermediária da cadeia, deverá ser tributada unicamente pelo IPI (e pelo ICMS, se houver circulação da mercadoria) – estando fora, indubitavelmente, do campo de incidência do ISS.

Ocorre que, apesar da clara preponderância da obrigação de dar e da sua subsunção ao campo de incidência do IPI, o legislador infraconstitucional fez questão de inserir as operações de industrialização em bens de terceiros em uma área cinzenta, deixando propositadamente de incluir o critério de destinação da obrigação para distinguir a incidência do IPI e do ISS, dando margem à ilegal tributação desta operação pelos Municípios, em flagrante infração às regras constitucionais e em completo desrespeito aos limites de competência da União.

Impende mencionar que este movimento de aproximar as incidências do IPI e do ISS se deu muito em razão da alteração do texto constitucional. Em que pese a cisão feita pela Constituição atual entre as regras-matrizes de incidência tributária do IPI e do ISS, já destacada no tópico anterior, a redação extensiva e ampla do Constituinte de 1988[24] fez surgir interpretações controversas durante o enquadramento tributário da industrialização por encomenda, tendo em vista o caráter complexo e dinâmico dessa operação. Em linha com tal exercício equivocado do hermeneuta, foram editadas leis complementares que, ao invés de mitigar conflitos de competência, os criava mediante edição de regras distorcidas e omissas.

Neste contexto histórico e utilizando a mudança promovida pela Constituição Federal, foi editada a Lei Complementar nº 116/2003, substituindo o Decreto nº 406/1968, de modo a definir as regulamentar a tributação do ISS e definir, nos termos previstos constitucionalmente, os serviços tributáveis por tal tributo. Ocorre que, além do aumento da quantidade de serviços tributáveis pelo ISS[25], tal legislação estendeu o campo de incidência do ISS para além de sua competência, especialmente no caso dos serviços conectados às operações de industrialização por encomenda. Aqui, nada melhor do que comparar as listas anterior e corrente, na íntegra:

"Lista de Serviços anexa ao Decreto nº 406/1968

72. Recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de objetos não destinados à industrialização ou comercialização;

(...)

74. Instalação e montagem de aparelhos, máquinas e equipamentos, prestados ao usuário final do serviço, exclusivamente com material por ele fornecido;

75. Montagem industrial, prestado ao usuário final do serviço, exclusivamente com material por ele fornecido;

____________________________________________________________________

Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003

14.05 - Restauração, recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, tingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, plastificação, costura, acabamento, polimento e congêneres de objetos quaisquer.

14.06 – Instalação e montagem de aparelhos, máquinas e equipamentos, inclusive montagem industrial, prestados ao usuário final, exclusivamente com material por ele fornecido."

Resta claro, após uma breve análise textual, o objetivo do legislador – expliquemos, aqui, utilizando lição irreparável do mestre Alexandre Macedo Tavares e do excelentíssimo ex-Ministro José Delgado: "Ocorre que a lista anexa à LC nº 116/2003 não utilizou expressamente o critério da destinação para definir o âmbito da incidência do ISS, do ICMS e do IPI, já que houve supressão da expressão “de objetos não destinados à industrialização ou comercialização”, na parte final do item 14.05.

Justamente esse silêncio normativo passou a ser interpretado pelos Municípios como uma franca e implícita autorização de fazer incidir ISS sobre as operações de beneficiamento, ainda que realizadas nas etapas que integram o ciclo industrial....

Não se deve prestigiar canhestro raciocínio jurídico, pois, a toda evidência, afigura-se incompatível com o critério residual pressuposto constitucionalmente para se extremar os campos materiais de incidência do IPI e do ISS, à medida que a Lei Complementar (LC nº 116/2003) não se revela a via legislativa apta à inserção ou exclusão de certa situação fática no figurino constitucional de incidência do ISS, do ICMS, do IPI ou de qualquer outro imposto.

Em outros termos, inexiste impedimento para que conste, abstratamente na lista de serviços tributáveis pelo ISS, atividades que, objetivamente consideradas, tenham as mesmas características daquelas que configuram industrialização, nos moldes das regras disciplinadoras do IPI (v.g., lavagem, beneficiamento, tingimento). Mas, obviamente, por imperativo constitucional, tais atividades jamais poderão sujeitar-se ao imposto municipal se realizadas numa das etapas do ciclo de industrialização (=industrialização intermediária)" [26]

Assim, há de se criticar a alteração promovida pela Lei Complementar nº 116/2003, uma vez que tal mudança, além de alargar irrazoavelmente o fato gerador do ISS, confundindo-se com o do IPI e do ICMS, acabou por materializar (ao invés de afastar, conforme previsto no art. 146 da Constituição Federal) conflitos de competência tributária, trazendo insegurança jurídica e atingindo sobremaneira o direito do industrial ao onerar pelo ISS, tributo não recuperável, a operação por ele praticada.

Além disso, merece destacar a total incongruência da Lei Complementar nº 116/2003 ao redigir os subitens relacionados às operações de industrialização por encomenda, arrolados majoritariamente no item 14 – Serviços relativos a bens de terceiros. Enquanto o item 14.06 considerada a destinação do serviço, mencionando expressamente que somente serão tributáveis pelo ISS os serviços prestados à usuário final, a redação dos demais itens é omissa, não fazendo qualquer distinção expressa. É de uma heterogeneidade sem razão, uma vez que se está falando de serviços englobados dentro de um mesmo item da lista anexa.

Assim, resta claro que, apesar de a infelicidade praticada pelo legislador ao redigir a Lei Complementar nº 116/2003 causar outras incoerências, este trabalho destaca apenas as relacionadas às operações de industrialização por encomenda, o hermeneuta deve basear toda sua interpretação nas regras basilares da Constituição Federal, para somente então preencher as lacunas com as disposições infraconstitucionais.

Deste modo, analisada a complexidade atrelada a tal instituto e minuciosamente abordado cada um dos detalhes acima discutidos, é de se concluir que as operações de industrialização por encomenda devem ser enquadradas como fato gerador do IPI, afastando-se consequentemente a incidência do ISS. Assim, inequívoco que os entes políticos devem seguir a orientação constitucional, especialmente nos casos em que a legislação infraconstitucional é omissa e obscura, de modo a evitar que o conflito de competência vislumbrado às operações de industrialização por encomenda, e reforçado pelas  interpretações irrazoadas e distorcidas, prejudique o contribuinte e o exponha, enquanto polo hipossuficiente na relação tributária, sujeitando-o ao apetite de mais de um sujeito ativo e a interpretações ilegais que visam unicamente à finalidade arrecadatória dos tributos.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, André Gomes. Conflito de competência em matéria tributária nas operações de industrialização por encomenda. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6279, 9 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71118. Acesso em: 23 dez. 2024.

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